Análise: I Have No Mouth, And I Must Scream é a obra-prima de Harlan Ellisson, adaptada em sua melhor forma

Mesmo sem adições interessantes, port é fiel ao conteúdo original e traz uma narrativa perturbadora, mas interessante.

Harlan Ellisson. O renomado autor é uma das mentes mais influentes da cultura atual, e mesmo que seu nome seja praticamente esquecido hoje, seja por seu temperamento difícil quando vivo ou simplesmente obscurecido por outras mentes que se inspiraram em seus trabalhos.


Entre seus trabalhos renomados está I Have No Mouth, And I Must Scream, a fundação para toda e qualquer narrativa com uma inteligência artificial suprema maligna (inclusive citado como referência direta para O Exterminador do Futuro, por exemplo), ganhando adaptações para rádio e jogo para PC que, para comemorar os 35 anos do lançamento inicial da adaptação, foi portado para o Switch. Venha comigo, vamos jogar um jogo da peste negra e de órgãos putrefatos.

Amável Maligno

O conto original relata o mundo destruído após a Terceira Guerra Mundial, cortesia da inteligência artificial AM, que matou todas as formas de vida da Terra, menos cinco humanos que ele passou os últimos 109 anos torturando, motivado por um ódio além da imaginação pela humanidade por ter sido criado com extenso conhecimento, mas sem capacidade de se libertar de sua programação.

O jogo, escrito por Harlan, começa com AM desafiando os cinco humanos remanescentes para mais uma de suas sessões de torturas, transportando cada um para uma simulação que encapsula os medos e traumas dos pobres coitados: Gorrister, um suicida depressivo, é colocado em um estranho dirigível em que AM lhe dá a oportunidade de, enfim, morrer… só para sabotar todas as vezes; Nimdok, o mais velho do grupo e com amnésia, é transportado para um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial, onde nazistas estão fazendo experimentos humanos, tudo muito familiar para o velho.

Benny, anteriormente um belo e inteligente homem mas agora desfigurado para se parecer com um macaco, é levado para uma sociedade primitiva, onde eles são obrigados a sacrificar um indivíduo da tribo em honra a AM, com Benny tendo que resistir aos seus desejos de fome e canibalescos. Ellen já foi uma brilhante engenheira com um futuro à sua frente, mas um evento traumático a fez ter medo de lugares apertados e da cor amarela, com AM dando-lhe a oportunidade de destruí-lo em uma pirâmide extremamente apertada e amarelada. Por fim, Ted, um artista fraudulento e cheio de paranoias, é obrigado a desbravar um castelo onde ele não sabe em quem confiar, inclusive em uma ilusão de Ellen, por quem nutre paixão.

Anacronismo Maleável

O port opera tal como seu lançamento, como um point and click e com a tela dividida em duas sessões. A mais larga é a gameplay, onde podemos ver nosso personagem escolhido e sua odisseia. Para interagir com o ambiente, uma mira é arrastada pela tela usando o analógico, ao qual é possível fazer umas das oitos ações disponíveis: andar, olhar, pegar, usar, conversar, engolir, dar e empurrar, cada ação sendo operada por diferentes botões do controle, diferente de serem inteiramente dependentes do mouse na versão para PC. Na parte de baixo, além das ações, temos também nosso inventário, onde deixamos os diferentes objetos para usar e, por fim, um retrato do personagem escolhido, mostrando suas emoções e como ele reage com a aventura.

Dessa forma, o jogo opera com a linha de pensamento como “Ande até o corredor”, “Engula a gasolina”, “Use a arma”, tendo uma variedade considerável de reações possíveis e sinalizando quando não é possível fazer a ação. O jogo opera com sistemas de escolhas, com o jogador sendo livre para operar como bem entender e ações podem variar de boas a ruins, com positivas podendo levar à destruição de AM ao final da odisseia e negativas deixando essas chances de liberdade tão longe quanto nos últimos 109 anos.

Sua grande variedade de reações não é o único trunfo de IHNMAIMS, mas sua caracterização. O conto original é um dos mais influentes não só do gênero cyberpunk mas em geral, questionando a evolução desenfreada das máquinas e apresentando um grupo de protagonistas extremamente falhos, mas carismáticos e dignos de pena, com Ted sendo o narrador da história e fadado a um destino pior que a morte. O jogo apresentou mudanças nos personagens (encabeçadas pelo próprio Harlan) mas que deram camadas a suas personalidades e motivos para estarem vivos no mundo arruinado. A dublagem continua magnífica, com AM sendo dublado por Ellisson (ao qual também o interpretou na radionovela para BBC), solidificando a máquina como um dos piores vilões na cultura moderna.

Antologia Mortal

Os gráficos de IHNMAIMS continuam praticamente os mesmos, com uma opção de polir levemente os pixels, não fazendo uma grande diferença. Isso não é uma coisa ruim, no entanto, uma vez que os visuais conferem uma atmosfera bastante perturbadora e incômoda, em par com as torturas emocionais e psicológicas causadas por AM. Além disso, o jogo roda muito bem, com pouquíssimos carregamentos que não duram muito tempo.

Infelizmente, IHNMAIMS comete alguns erros bobos que o impedem de atingir sua plenitude. Para começar, o jogo está completamente em inglês, o que é um ultraje em uma narrativa completamente baseada em escolhas e texto, inibindo o entendimento de jogadores que não compreendem inglês. Outro detalhe chato é que, apesar de cada ação ser operada por um botão, não existe suporte à tela touch, o que é bem chato porque aumentaria bastante a imersão e atividade com o jogo. Eu imagino que haverá uma atualização quando chegar o Switch 2, fazendo uso do recurso mouse dos Joy-Con.

Por fim, em análises passadas, eu disse que todo relançamento que se preze deve incluir rascunhos e desenvolvimento de seus jogos para fins de preservação e curiosidade. Esse meu pensamento se estende inclusive para ports de remakes, e IHNMAIMS segue moderadamente esse conceito. Estão disponíveis a trilha sonora completa para escutar no menu de Extras, além do manual do jogo, o que é bem legal. No entanto, não existem artes conceituais para ver, cenas cortadas para assistir (uma cena em específico de Benny é bastante conhecida por sua controvérsia) e, o pior de tudo, a omissão do conto original. O conto não é longo (algumas versões têm apenas 13 páginas) e seria legal se estivesse disponível para entender ainda melhor a narrativa.

Cognito ergo sum; eu penso, logo existo

Eu sou um grande fã da escrita de Harlan e eu mesmo tenho o conto de I Have No Mouth, And I Must Scream em livro e a versão para PC do jogo, cujo port dessa adaptação, descrita como um dos melhores jogos da história, era um dos que eu mais aguardava para aparecer nos consoles atuais, ao lado dos meus tão sonhados ports de Psychonauts e Charlie Murder. No final, eu estou mais que satisfeito em poder ver a obra-prima de Ellison disponível em boa forma para uma nova geração, esta que finalmente está descobrindo a magnitude de seu legado e formando uma fanbase em torno de IHNMAIMS.

Claro, alguns conteúdos adicionais, tradução e suporte touch seriam bem-vindos, mas só de ter em mãos (literalmente) este clássico já é uma conquista. A história pode ser um pouco demais para jogadores sensíveis, mas ainda é uma narrativa icônica que moldou a paranoia e terror contra a evolução abrupta da tecnologia, especialmente na nova era de artes feitas por IA. “Eu não tenho boca, mas preciso gritar.”

Prós

  • Gráficos retrô que continuam bonitos e tão perturbadores quanto 35 anos atrás;
  • Jogabilidade bem feita e comandos que respondem bem;
  • Trilha sonora imersiva, transmitindo clima opressor;
  • Personagens carismáticos, falhos, mas humanos;
  • Dublagem de ponta, com destaque para Harlan Ellison como AM
  • História bem feita com temas polêmicos, mas que não são feitos somente para chocar;
  • Carregamentos rápidos e sem lags no jogo.

Contras

  • Falta de tradução para português brasileiro;
  • Falta de suporte à tela touch;
  • Ausência de bônus de relançamento como artes conceituais e conto original.
I Have No Mouth, and I Must Scream - Switch/PS4/PS5/PC/XBO/XSX - Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Vitor Tibério
Análise produzida com cópia digital cedida pela Nightdive Studios
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Fábio Castanho Emídio (StarWritter)
Formado em Publicidade e Propaganda na USC e especializado em Marketing Digital, sou Editor de Vídeos também, meu TCC foi sobre a Guerra dos Consoles e evolução da publicidade nos games. Jogo um pouco de tudo e também escrevo. Me descrevo como um artista.
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