A franquia de captura de monstrinhos, em sua maioria fofos, sempre foi amplamente considerada como uma franquia mais voltada para o público infantil. No entanto, isso nunca impediu que Pokémon, através de suas diversas mídias, abordasse direta ou sutilmente diversas temáticas sensíveis. Identidade/sexualidade, guerra, envelhecimento e morte, ética da ciência e tecnologia, máfia e apostas são algumas das menções que podem ser encontradas ao longo da franquia.
A guerra e o mundo Pokémon
É muito provável que o tema sensível mais recorrente e conhecido da franquia seja justamente a guerra. A primeira menção de um conflito como esse vem do líder de ginásio de Kanto, Lt. Surge em seu diálogo sobre ter sido salvo por Pokémon elétricos durante uma guerra. Conflito esse que os fãs sempre teorizaram ter sido entre Kanto e Johto, o que explicaria a ausência de adultos, em especial nas primeiras gerações.
Outra menção direta a uma guerra de grande escala é em Kalos, onde conhecemos também a história de Az. Essa guerra causou catástrofes sem tamanho, principalmente após a morte da companheira Floette do Az, fazendo com que o personagem tomasse atitudes drásticas para trazer seu Pokémon de volta à vida e terminar o conflito, utilizando uma arma definitiva que causou danos de proporções devastadoras e sendo responsável por incontáveis mortes, o que, por sua vez, supõe-se também ter dado origem à mega evolução.
Outros conflitos e guerras também são abordados, em especial nos filmes de pokémon, trazendo momentos extremamente tristes e emocionantes.
Morte e luto
Em Pokémon X/Y, o jogador encontra um Floette especial chamado Floette da Luz Eterna, ou Floette Eterna, que pertenceu a um personagem chamado Az. Como mencionado acima, a história sugere que Az, em sua busca por reviver seu falecido Floette, criou a arma definitiva, que custou muitas vidas. Embora Az não tenha morrido, a narrativa envolve temas de luto e perda, ainda mais que seu pokémon de coração tenha partido pelos atos de seu treinador que o abandona.
Mas a primeira vez em que o tema é abordado é na primeira geração. Essa é a amplamente conhecida história de Cubone e Marowak na Torre Pokémon em Lavender Town, local que serve de cemitério para Pokémon, os jogadores encontram o fantasma de um Marowak que foi morto pela Equipe Rocket. Esta é uma das primeiras e mais impactantes referências à morte na franquia.
A trágica história do Marowak, que foi morto tentando proteger seu filhote, é um dos momentos mais sombrios dos jogos. Ainda em Lavender, também nos deparamos com nosso rival que lamenta a perda de seu Raticate. Nos filmes da franquia também vemos a morte de alguns Pokémon, como Celebi, Latios, Lucario entre outros.
No anime de Pokémon Sun/Moon, há um momento em que a morte de um Pokémon é tratada de forma mais indireta, mas ainda assim clara. O Stoutland amigo de Litten é mostrado como idoso e doente. Embora sua morte não seja explicitamente mostrada, é fortemente sugerida quando Litten retorna para encontrar apenas um colar deixado para trás. Este episódio é um dos mais emocionantes da série.
A morte de humanos também é retratada em alguns momentos da série. O protagonista Ash em especial passou por algumas mortes em sua carreira, geralmente sendo trazido de volta pelos sentimentos e aparentes poderes que os misteriosos Pokémon têm. A ocasião mais icônica é certamente quando o personagem se atira em meio ao combate entre Mew e Mewtwo, sendo atingido em cheio pelos ataques de ambos Pokémon .
Outro caso curioso é o de Lysandre, que tanto nos jogos quanto na série animada, fica com seu destino em aberto, após a tragédia de tentar reativar a arma definitiva de AZ, sendo impedido pelos protagonistas, mas permanecendo no colapso da arma. É aceito entre a comunidade que o personagem e provavelmente seus Pokémon morreram.
Abandono
Abandono de animais/Pokémon também é um tema recorrente, em especial no anime. Pokémon icônicos do Ash compartilham o mesmo destino. Charmander, Chimchar e Gengar têm um mesmo plano de fundo, todos foram destratados e eventualmente abandonados pelos seus treinadores originais.
Ocasionalmente Centros Pokémon também são mostrados como locais onde Pokémon abandonados são deixados. Esses Pokémon muitas vezes sofrem com sentimentos de rejeição, mas eventualmente encontram novos treinadores que os acolhem e cuidam deles.
Em outras ocasiões, tanto nos jogos quanto no anime, são mencionados Pokémon de rua que são mostrados como abandonados ou perdidos. Esses Pokémon muitas vezes têm dificuldade em confiar em humanos novamente, mas eventualmente encontram novos lares com treinadores bondosos.
O uso abusivo dos Pokémon
A relação entre humanos e Pokémon é um tema recorrente de debate e polêmica, tanto que desde os primórdios da série, a franquia é criticada por ongs como a PETA, que acusam a franquia de incentivar, entre outros, abuso e violência contra animais.
Os jogos Pokémon Black & White introduzem a Equipe Plasma e N, que questionam a relação entre humanos e Pokémon e se os monstrinhos devem ser mantidos por treinadores ou se estão sendo explorados. Essa temática também reflete no filme Mewtwo Contra-Ataca, que mostra o sofrimento de Mewtwo ao descobrir que foi criado como experiência e usado como uma ferramenta de batalha.
O questionamento sobre a relação entre humanos e Pokémon também aparece em outros momentos da franquia, como em Detetive Pikachu. Em Ryme City o uso de pokébolas e batalhas são proíbidas, acontecendo apenas no submundo da cidade. Isso reflete a filosofia da cidade e utópica em que humanos e Pokémon devem existir em harmonia livremente.
Mas o abuso na franquia se reflete muitas vezes na atitude de treinadores que forçam seus pokémon além dos limites ou os obrigam a entrar em batalhas sem preocupação com os monstrinhos. O que é visto tanto nos animes, jogos e por aí vai.
A ética da ciência e tecnologia em Pokémon
O caso de Mewtwo é um dos mais icônicos. Resultado de experimentos de clonagem realizados por cientistas que buscavam criar o Pokémon mais poderoso do mundo. O filme questiona a ética da clonagem e da manipulação genética, mostrando as consequências emocionais e morais de tais ações. Mewtwo luta contra sua própria existência e o propósito para o qual foi criado, levantando questões sobre o direito dos humanos de "brincar de Deus".
Diversas vezes instituições do mundo Pokémon, inicialmente apresentadas como altruístas e positivas, revelam facetas sombrias. A Aether Foundation, inicialmente apresentada como uma organização benevolente, é revelada como uma fachada para os experimentos antiéticos de Lusamine com as Ultra Beasts. Ela manipula e aprisiona Pokémon para seus próprios fins, mostrando os perigos da ciência sem supervisão ética.
Em Sword & Shield, o fenômeno Dynamax e Gigantamax é estudado por cientistas em Galar, mas seu uso excessivo pode desequilibrar o ecossistema. A história dos jogos questiona levemente os limites éticos do uso de tecnologia que altera a natureza dos Pokémon.
Mais recentemente, Pokémon Scarlet/Violet também aborda os limites da ciência e seu impacto no ecossistema. Ao trazer Pokémon do passado ou do futuro, os professores além de acabarem perdendo a vida no processo, também colocam em risco toda a região de Paldea. E, para piorar, criam inteligências artificiais para proteger seus objetivos mesmo depois de mortos.
Team Rocket — O crime organizado no mundo pokémon
A Team Rocket é, na maior parte das vezes, lembrada de forma cômica, muito graças aos carismáticos personagens Jessy, James e Meowth do anime. Mas tanto nos jogos quanto em algumas outras mídias, eles são mostrados como uma organização criminosa extremamente cruel.
Eles são responsáveis pelo roubo e tráfico de Pokémon, ocasionando a morte de muitos deles pelo processo — basta lembrar da Marowak. E em algumas das suas várias encenações, a Team Rocket é envolvida e usa diversos negócios, por exemplo, cassinos como fachada para suas atividades.
Apesar de ter sido muito eclipsada pelas diversas outras equipes vilãs, o fato de ser uma das mais realistas, refletindo o traáfico de animais e as mais diversas atividades mafiosas do mundo real torna a Team Rocket uma das mais pesadas da franquia.
Identidade de gênero
Esse talvez seja um dos pontos mais polêmicos dentro da franquia nos últimos tempos, apesar de há muito tempo haver rumores e especulações de fãs sobre a identidade de gênero de diversos personagens, principais ou npcs ao longo da franquia. É fato que (quase) nunca a franquia abordou nada do tipo abertamente. Há algumas linhas de diálogo, que por vezes são alteradas para outras regiões, como a treinadora Beauty Nova que em japonês o diálogo é: “Eu era um Rei do Karatê há apenas meio ano; o poder da ciência médica é incrível, você não acha?!”
Outros detalhes além do visual e caracterização geral de diversos personagens, a linguagem parecem sugerir fortemente um não binarismo na franquia, como o exemplo do líder de ginásio Grusha, que além de sua aparência, é tratado por They/Them, pronomes que em inglês são usados para tratar pessoas de gênero não-binário etc.
O mesmo uso da língua acontece no caso de Cassiopeia (Penny), mas no caso dessa personagem, o uso dos pronomes podem estar ligados ao fato do mistério por trás da identidade do líder da Team Stars. Mas Penny por si só, assim como muitos personagens da franquia, é parte de teorias e discussões sobre sua identidade de gênero e ou sexualidade.
A franquia também é repleta de personagens andróginos e de aparência dúbia por diversos fatores. No entanto, como sabemos, personagens andróginos são muito populares tanto em animes quanto jogos, o que acaba não podendo servir como muito além de especulações.
Scarlet & Violet: bullying e a resposta opressiva
Pokémon Scarlet Violet é o maior título da franquia em vários sentidos. E seu tamanho imenso também permitiu abordar diversas jornadas dentro dele. Em um de seus caminhos principais, conhecemos a Team Star e recebemos o pedido de Cassiopeia para detê-los.
Em resumo: a Team Stars surgiu em resposta ao bullying escolar, que inclusive era ignorado pela academia. Mas a coisa saiu do controle e a Team Stars se tornou uma gangue violenta e opressora e acabou praticando ela mesma o mesmo problema para o qual ela nasceu para enfrentar, forçando sua líder a ter que buscar ajuda externa para acabar com sua própria equipe.
Essa linha narrativa foi uma das retomadas de Pokémon a assuntos mais mundanos e que conversam, em especial, com seu público em idade escolar. E essa abordagem é algo que gostaria de ver em futuros títulos da série.
Abordagens sutis, mas presentes
A franquia Pokémon já tocou em diversos assuntos sensíveis durante sua longa trajetória midiática. O que citei nesse artigo são apenas alguns entre eles. Ainda que na maior parte das vezes a abordagem tenha sido singela, em pequenos diálogos, vindo por vezes de npcs que sequer estão em locais óbvios, Pokémon sempre se mostrou um espaço amplo para todos os tipos de pessoas e assuntos.
E conforme as gerações avançam, a franquia se mostra mais confiante em abordar esses assuntos abertamente e em narrativas muito mais ricas e impactantes. E vocês, gostam das abordagens da franquia Pokémon a esses temas? Você se lembra de alguma outra? Ou alguma te tocou em especial? Deixe a gente saber.
Revisão: Beatriz Castro