Análise: Afterlove EP: uma jornada de ressignificação pessoal e superação do luto

Uma produção com algumas falhas técnicas, mas que não ofuscam o peso e o impacto de sua narrativa.


Afterlove EP
foi inicialmente concebido por Mohammad Fahmi Hasni, que infelizmente faleceu antes de ver seu jogo concluído. Como homenagem ao criador de Coffee Talk, o estúdio Pikeselnesia tocou o projeto até o final, entregando uma experiência que peca em certos aspectos, porém cumpre — e muito bem, por sinal — seu papel de proporcionar uma importante reflexão.


E, claro, como o jogo tem uma forte influência musical, cada tópico desta análise será uma referência a músicas que, na minha opinião, combinam com os aspectos que abordarei no texto.

Why she had to go, I don’t know, she wouldn’t say

A história se passa no ano de 2017, em Jacarta, Indonésia. O protagonista, Rama, é um jovem rapaz com o sonho de se tornar um músico de sucesso. Ele é o compositor, liricista, guitarrista e vocalista da banda Sigmund Feud, na qual toca com seus amigos, Adit e Tasya; apoiando o trio, está Cinta, a namorada de Rama.

Contudo, um ano antes do jogo começar para valer, descobrimos que Cinta morre devido a problemas de saúde — isto é, de acordo com as informações passadas na animação de abertura. Devastado com a perda, Rama se afasta de tudo e todos, tamanha a dor que sente.


Passado esse período, ele decide se reaproximar de Adit e Tasya para colocar a banda sob os holofotes de novo. O tempo, porém, não espera por ninguém: enquanto o jovem ficou parado, isolado em seu refúgio, as pessoas, seus amigos, e até mesmo a cidade mudaram e continuaram com suas vidas.

Desse modo, ao longo do mês de setembro, acompanhamos Rama em uma jornada que se assemelha a um processo de reintegração à sociedade. Infelizmente, este não é um processo fácil para o jovem: não apenas ele não superou a dor da perda e do luto, como também é capaz de ouvir a voz de Cinta, cujas observações e opiniões ele leva a ferro e fogo — tal qual o propósito do Grilo Falante na história de Pinóquio.

You know how the time flies, only yesterday was the time of our lives

O processo da perda — às vezes nem sempre relacionada à morte — não é fácil, e cada pessoa lida com ele de uma maneira diferente. Talvez eu tenha tido o privilégio de minha mãe ser psicóloga especializada nessa área, e pude crescer com livros e histórias infanto-juvenis que me ensinaram, desde pequena, a compreender e entender esse ciclo de ressignificação.

Diferentemente do que estabeleceu Elisabeth Kübler-Ross, a quem atribuímos os cinco estágios do luto (que a Psicologia moderna já fez cair por terra), vivenciamos com Rama o quão complexo e multifacetado é esse processo. Graças à sua reclusão, ele se vê desconectado da sociedade, não conseguindo se entender com os amigos — e muito menos entendê-los, quase uma situação de “eu contra o mundo”.

É aqui o ponto que concentra todo o mérito de Afterlove EP: a narrativa. Apesar de o círculo social de Rama não ser extenso fora Tasya e Adit, ele aprende as nuances da vida com Kak Mus, dono do café que o protagonista frequenta; Satria, o gerente da loja de discos que também serve de estúdio para a Sigmund Feud; Mira, uma amante de livros e poesia, mas que está sempre fazendo alguma coisa; Regina, uma modelo que também é namorada de Adit; e Sati, a psicóloga que oferece sessões de terapia para Rama (se ele vai a elas ou não, cabe a nós decidir, mas falarei sobre isso mais adiante).


Esses personagens não são meros NPCs: todos eles foram moldados com base em pessoas reais. Ao longo do jogo, conhecemos suas dores, angústias, ambições, aspirações etc. Conhecemos e lidamos com pessoas reais retratadas em um estilo artístico simples, mas vivas e críveis; claro, Rama e companhia não são baseados em pessoas reais, o jogo não é uma obra biográfica, mas a experiência não deixa de ser real.

E isso ressoa em nós — digo, ao menos, ressoou em mim. Em muitos momentos, me senti abraçando a dor de Rama; em outros, senti a dor de Satria por não ter uma relação boa com sua família; e por vezes entendi que sou similar a Mira no quesito de estar sempre precisando se manter ocupada; e a lista segue. E, claro, não foram poucas as vezes em que pedi para Cinta simplesmente calar a boca e deixar Rama seguir em frente.

But I’m a creep, a weirdo. What the hell am I doing here? I don’t belong here

Densidade da narrativa à parte, hora de falar da outra faceta de Afterlove EP: a jogabilidade. Este é um jogo de aventura em sua proposta, no qual cada dia do mês de setembro funciona como um capítulo e, no controle de Rama, podemos explorar Jacarta, interagir com os personagens mais importantes e realizar atividades diversas — algumas obrigatórias e lineares, que servem para dar continuidade à história, vale ressaltar.

Temos também elementos de visual novel, já que algumas interações requerem que façamos escolhas quanto ao que vamos responder aos personagens. Essa mecânica afeta não apenas o modo como Rama passa a se relacionar mais profundamente com certos personagens — sim, nosso protagonista tem três opções de romance, sendo uma delas com outro homem —, mas também impacta no final do jogo.


Sobre isso, quero abrir parênteses e dizer que, de certa forma, fiquei feliz ao obter o final ruim na primeira campanha. Isso demonstra que as escolhas que fazemos são uma prova de que o estado emocional de Rama afeta as pessoas à sua volta, especialmente no que se refere a superar a perda de Cinta e se permitir amar (a si mesmo e a outras pessoas) novamente.

Por fim, não dá para falar de um jogo baseado em música sem porções de ritmo. Na minha opinião, não é uma implementação muito bem-feita, pois foi mais uma tentativa de trazer certa imersão do que fazer um jogo de ritmo; mesmo assim, as músicas são excelentes, especialmente as cantadas (em indonésio, mas com legendas), e uma das opções inclui passar automaticamente essas porções de Afterlove EP, focando apenas na história.

Feel the rain on your skin, no one else can feel it for you

Falando das qualidades para além da história e profundidade de personagens, temos uma direção audiovisual excelente. Em especial, é interessante que, com exceção de certas músicas e um evento específico em uma das atividades que o protagonista pode realizar, apenas Cinta possui dublagem, justamente para reforçar o peso da presença da garota na vida de Rama.

Além disso, temos a presença de um log para rever todos os diálogos do dia (infelizmente, esse histórico não é transportado para a porção seguinte do jogo) e as opções de leitura automática de texto e também de passá-lo rapidamente. Porém, enquanto os acertos são louváveis, não posso deixar de falar dos problemas.

Não sei como funciona a versão de PC, mas, ao jogar no modo portátil no Switch, depois de algumas horas de jogatina ininterruptas, os diálogos começaram a passar mais rápido, especialmente os de Cinta. A princípio, achei que fosse algo proposital, como um indicativo de que a garota estivesse exercendo menor influência sobre Rama, mas, infelizmente, afetou outras conversas.


Contudo, o problema de performance mais crítico foi no último dia do jogo, no qual enfrentei diversos fechamentos abruptos do software ao tentar transitar pelos locais. Não sei dizer se esses erros persistem no modo TV do Switch ou nas outras plataformas, mas torço para que a Pikelsensia lance logo um patch corretivo assim que possível.

Em termos de jogabilidade, a única crítica real é o jogo de ritmo. Ele não traz um medidor de desempenho e, independentemente da nossa performance nessas porções, não há uma consequência direta na história, sem falar que, na minha opinião, essa adição de jogabilidade acabou quebrando a imersão em certos pontos da trama.

There’s always gonna be another mountain, I’m always gonna make it move

Embora Afterlove EP apresente falhas técnicas e algumas inconsistências na jogabilidade — sendo que as primeiras podem ser facilmente corrigidas com um patch —, o saldo é extrema e belamente positivo. Como diria uma cliente assessorada pela agência em que trabalho, este é um jogo com propósito e impacto, capaz de nos marcar com o que realmente importa e, acima de tudo, nos fazer pensar em nossas próprias atitudes.

Prós

  • Excelente história que retrata o peso do luto de modo palpável, não apenas para o personagem principal, mas como esse processo também afeta as pessoas ao redor;
  • Opção de romance gay;
  • A dublagem praticamente exclusiva para Cinta destaca como a garota ainda exerce grande influência sobre Rama;
  • As escolhas em certos diálogos, bem como realizar ou não certas atividades, afetam o modo como Rama se relaciona com outros personagens;
  • Excelente direção audiovisual, em especial as músicas cantadas.

Contras

  • O jogo de ritmo acaba quebrando a imersão devido ao modo como foi implementado;
  • Problemas de performance sérios no Switch, sobretudo crashes repentinos no último dia, que precisam de um patch corretivo urgentemente.
Afterlove EP — PC/PS5/PS4/XSX/Switch — Nota: 9.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida por Fellow Traveller
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Juliana Paiva Zapparoli
Também conhecida como Lilac, é jornalista e atualmente trabalha com assessoria de imprensa. Fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas.
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