Estereótipos não são necessariamente ruins. Óbvio, existem os exemplos negativos, como clichês racistas e sexistas, mas, de certo modo, funcionam como guias: barril vermelho é explosivo, raposas são trapaceiras, corujas são espertas, bruxas são verde, vermelho é amor ou violência, e por aí vai.
Resgatar a princesa está no meio-termo. Pode ser tanto algo heroico, como também perpetuar visões machistas ultrapassadas. Bom, e se em vez de resgatá-la, tivéssemos que matá-la? Slay the Princess - The Pristine Cut brinca com esse estereótipo e outros em uma narrativa densa sobre identidade, liberdade e moral.
Você está em uma mata fechada, a caminho de uma cabana isolada no topo de um morro. No porão da casa está uma princesa, e sua tarefa é matá-la ou ela irá destruir o mundo. Suas únicas companhias são o Herói, ao qual você controla, e o Narrador, seu guia que descreve as ações e eventos que ocorrem.
Falar mais estragaria a trama, tirando boa parte do fator-surpresa. Mas saiba de uma coisa: escolhas importam e não importam. Fatos ocorrem e não existem. Paradoxo e liberdade são pilares do jogo, influenciando cada ação que você toma (ou se recusa a tomar). Como manda a terceira lei de Newton: toda ação tem uma reação.
Eu sou bastante familiarizado com histórias de “Homem vs. Deus”, onde o protagonista tenta sair da roda da história e confrontar o andar da narrativa: Show de Truman, The Stanley Parable, Undertale, Mais Estranho que a Ficção, e algumas obras de Machado de Assis são exemplos perfeitos para isso e posso dizer com bastante firmeza que Slay the Princess se junta a esse grupo.
Sua história pode parecer super simples, porém as reviravoltas e o desenrolar da trama são muito interessantes, tocando em temas como culpa, confiança, paixão, medo, individualidade e, como mencionado, liberdade. A forma como cada um dos três personagens (Herói, Narrador e Princesa) reagem diante das ações são claras e bastante naturais, fazendo totalmente sentido cada uma de suas expressões e como se sentem diante dos atos.
Exemplo: o Narrador, a todo custo, quer seguir o roteiro e cumprir o título, ou seja, matar a princesa. Ele faz questão de dizer que ela não é o que parece ser e fará de tudo para sair de suas correntes, podendo mentir e atacar. Mas será que precisa ser assim? Ele não dá muitos detalhes de como ela irá destruir o mundo e muito menos outros motivos. Tudo é tão vago… Se Você (e, assim, o Herói) tentar desviar desse objetivo de visão de túnel, ele ficará obviamente frustrado e começará a dar detalhes sarcásticos e descontentes para novas ações.
A Princesa, por outro lado, agirá com calma e simpatia se interagida com gentileza ou cautela e frieza se for acuada. Exemplo: se Você agir com gentileza e se dispor a resgatá-la, mas logo a atacar, ela não vai gostar nada disso e reagirá. Quando se encontrarem mais uma vez, Você poderá optar em ser mais agressivo ou tentar fazer as pazes, com ela mudando dependendo da rota que tomar.
Por fim, o Herói é passivo, mas, ao mesmo tempo, consciente. Ele entende que tem um dever, porém também pondera nas inúmeras possibilidades que podem ter, conversando consigo sobre o que fazer e como seguir, sendo moldado pelos pensamentos que podem surgir, sejam cautelosos, apaixonados, traiçoeiros ou até apáticos.
Um roteiro bem escrito vale de nada se a apresentação e entrega das palavras forem porcamente executadas, e Slay the Princess consegue entregar tudo (praticamente) sem erros. Para começar, a produção sonora é de ponta, com atuações de vozes fenomenais (com o Narrador e o Herói tendo a mesma voz, mas intrinsecamente diferentes, inclusive para novas ocasiões. Enquanto isso, as diversas facetas da Princesa ecoam gloriosamente com as diferentes entonações da voz), efeitos sonoros imersivos e músicas impactantes e coesas com os eventos ocorridos.
Fica ainda melhor porque as legendas estão totalmente traduzidas para o português, muito bem feitas e emanando os diferentes sentimentos da obra. Consegui encontrar apenas um único erro bobo, não de tradução, mas de escrita, que pode ser facilmente corrigido com um patch. Outro ponto alto de seu roteiro está no balanceamento entre comédia e tragédia, com situações viscerais e impactantes para causar horror, medo e pena… ou momentos totalmente descontraídos, trazidos pelas discussões absurdamente engraçadas entre o Narrador e o Herói.
O design de Slay the Princess é belíssimo, um mundo desenhado a mão e monocromático (com algumas pinceladas de vermelho, só por precaução), emotivo e mutante, convertendo-se de uma pintura horrível para a beleza feia do universo. Ainda existe a opção de ter efeito de parallax, podendo criar uma sensação de profundidade e movimento muito legais. Existe também a possibilidade de uso do recurso touch, podendo clicar nas escolhas e salvar diretamente sem nem precisar mexer no controle.
Tamanha ambição, no entanto, tem um preço: o tempo de carregamento inicial é absurdamente longo, podendo demorar alguns minutos para começar o jogo. Depois disso, existem poucos carregamentos e mais um problema com o engasgo do jogo em alguns momentos, me dando mais medo de o software fechar do que com o terror da cena, especialmente na belíssima cena final (bom, de um dos finais. O jogo é curto e preza pela rejogabilidade por causa de suas inúmeras escolhas).
E viveram para sempre
Slay the Princess - The Pristine Cut brinca, destrói, joga e reconstrói estereótipos e outros elementos. Erros bobos que podem ser facilmente corrigidos não tiram o valor dessa visual novel criativa e impactante.
Em quem Você vai acreditar? Vai salvar o mundo ou fazer o que ela quer? Ou Ele? Viver ou morrer, faça sua escolha.
- História simples ao primeiro olhar, mas com temas profundos;
- Trio de personagens interessantes;
- Metanarrativa peculiar com reviravoltas espertas;
- Curta duração que preza pela repetição para descobrir novas rotas;
- Design de personagens gloriosamente belo;
- Direção sonora de ponta, com atuação de voz bem feita, excelente música e efeitos sonoros imersivos;
- Traduzido para português brasileiro.
Contras
- Alguns erros de português;
- Carregamento inicial absurdamente longo;
- Alguns engasgos de performance.
Slay the Princess - The Pristine Cut - PC/Switch - Nota: 9.5Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Alessandra Ribeiro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Black Tabby Games