H. P. Lovecraft. A mente insana por trás de Cthulhu, Necronomicon, Azathoth e tantos outros nomes profanos que causam insanidade só de mencionar ou pensar. Atualmente, sua reputação está mais atrelada às suas visões erradas sobre raça, mas este não é o assunto da análise.
Em sua rápida incursão pela Terra, Lovecraft aterrorizou as revistas pulp e seus amigos com contos de seu imaginário e cartas detalhando pesadelos. Em Dagon - Complete Edition, quatro narrativas de Howard tornam-se interativas para antigos e novos fãs da trama. Venha comigo, sinta o cheiro do sal oceânico e boa sorte.
Talassofobia
Dagon começa com a carta de suicidio de um viciado em morfina. Tendo fugido dos alemães na primeira guerra mundial, ele ficou à deriva no mar por dias, até acordar em uma ilha grotesca. Com terra ensopada, cefalópodes se debatendo e outras criaturas marítimas mortas, ele ficou um tempo até descobrir um monólito com escritos confusos e uma criatura pavorosa.A Pequena Garrafa de Vidro é uma caça ao tesouro, com um capitão e sua tripulação descobrindo um mapa na garrafa e zarpando até o fundo do mar para clamar pela recompensa. Já O Horror da Ferrovia é a jornada vazia de um homem por uma montanha, andando sem rumo até chegar a uma linha férrea e aguardar o retorno do maquinista.
Por fim, O Que A Lua Traz Consigo conta um pouco do desdém do narrador contra a Lua e os caminhos aquáticos que ela guia, de forma bastante niilista e pessimista, até que o corpo celeste começa a crescer exponencialmente.
Deus cego idiota
O único objetivo de todas as aventuras é seguir o roteiro e apertar o botão para a próxima sessão interativa, na qual os sentimentos serão narrados e algo pode ocorrer. Perceba que, até agora, eu não descrevi Dagon como um jogo porque, na minha opinião, não é. Isento absolutamente de todo tipo de jogabilidade além de mover a câmera, dar zoom e apertar um botão, eu acredito que o melhor termo para este produto seja “experiência interativa” — e isso não é uma coisa ruim.
Na verdade, essa proposta singular o torna único. Cada uma das narrativas é supercurta, podendo concluir a experiência em até duas horas, contando com a busca pelos Easter eggs. Espalhados por três histórias, estão Símbolos Ancestrais que, se interagidos, revelam curiosidades da época que foram escritas, inspirações para as obras e fatos sobre Lovecraft, bastante interessantes e bem charmosos.
A escolha das quatro histórias é muito esperta também. Dagon foi um dos primeiros contos de Lovecraft, sendo reinserido nos mitos de Cthulhu depois; Garrafa foi escrito quando ele era criança, antes dos temores sobrenaturais; Ferrovia é, na verdade, um pesadelo que ele escreveu em uma carta para um amigo; e Lua é um conto menos conhecido do autor e um agrado para quem deu suporte ao projeto da coletânea.
O Rei Amarelo
Visualmente, Dagon é uma experiência mista. Os gráficos são estilizados, com linhas pretas fortes que evocam uma sensação de desenho, me lembrando do jogo inspirado no mito lovecraftiano Forgive Me, Father, além de ser uma possível homenagem às revistas pulp nas quais Howard publicava suas histórias.
Dagon preza por ser extremamente fiel aos relatos de Lovecraft e eu posso averiguar isso, sendo dono de alguns livros com contos do autor. A adaptação é excelente e encapsula bem o imaginário dele. A tradução está excelente, sem nenhum erro de português. Porém, quando eu estava experimentando Garrafa, teve um momento em que achei um erro de português, e, ao mudar o idioma para inglês, constatei a mesma situação.
Como dito no começo da aventura, trata-se de uma fiel adaptação dos escritos de uma criança de sete anos, inclusive dentro do próprio jogo (como Australia estar escrito Australlia). É um trabalho cheio de amor e carinho do time de desenvolvimento, inclusive conversando com o espectador por meio das curiosidades em um tom mais informal. Seria legal ter mais uma ou duas incursões pela mente de Lovecraft, mas quatro odisseias bem-feitas já valem a pena.
Sua composição sonora, no entanto, é um tanto decepcionante. A narração é excelente, trazendo com bastante força as emoções e pavores nojentos que somente a escrita de Lovecraft consegue causar.
Os efeitos sonoros são muito bons, trazendo a viscosidade das abominações marítimas dos mitos. Por outro lado, a música é pouco imersiva e inclusive com erros de corte; em dado momento, jogando a primeira história, a música abruptamente se interrompia e recomeçava.
O erro mais agravante, porém, é o tempo de carregamento. Para começar, abrir o software leva até dois minutos. Para começar uma narrativa, leva um minuto. Dentro das histórias, felizmente, não existe tempo de carregamento, mas a espera para começar pode ser um incômodo para os mais apressados.
O cheiro do mar
Dagon - Complete Edition é uma das melhores obras que se inspiram no polêmico autor, inclusive o humanizandoe com relatos curiosos de sua vida, como brincadeiras e hobbies com amigos (sem entrar em seus pensamentos retrógrados, no entanto).
Mesmo com uma direção sonora um tanto decepcionante, carregamentos longos e um preço um tanto abusivo (atualmente, está sendo vendido por 50 reais na eShop), é um pesadelo que fãs, novos ou velhos, vão querer revisitar para sentir um calafrio viciante.
Prós
- Quatro histórias muito bem adaptadas, curtas e que prezam pela repetitividade;
- Narração imersiva, evocando os sentimentos de aventura e horror;
- Gráficos relativamente bonitos;
- Curiosidades interessantes sobre o autor e suas obras para coletar;
- Excelente tradução para português brasileiro.
Contras
- Direção sonora falha, com músicas mal editadas;
- Carregamentos longos;
- Mais um ou dois contos seriam bem-vindos.
Dagon: Complete Edition — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 8.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Feardemic