O Gamecube foi, no mínimo, um console controverso, mas não há dúvidas de que ele tinha uma biblioteca de exclusivos rica, com jogos que são lembrados até hoje por sua qualidade e inovação. Eternal Darkness certamente é um dos que, apesar de ter passado batido por muitos na época, hoje é um exemplo de inovação no gênero de terror.
Lançado para o Nintendo GameCube em 2002, Eternal Darkness: Sanity's Requiem é um dos títulos de horror psicológico que ganhou status de clássico por ser uma experiência única e ousada em diversos aspectos.
Desenvolvido pela Silicon Knights e publicado pela Nintendo, o game se destacou não só por seu enredo envolvente e mecânicas inovadoras como também por seu tom sombrio e uma narrativa que explorava temas raros no gênero até então, como a decadência mental e a insignificância do ser humano diante de horrores cósmicos.
Uma Narrativa Ambiciosa e um Universo Intrincado
A trama de Eternal Darkness é centrada em Alexandra Roivas, uma jovem que investiga o assassinato misterioso de seu avô e descobre um livro antigo e macabro, o Tome of Eternal Darkness. Este artefato a conecta a uma narrativa épica e perturbadora que se estende por mais de dois milênios, envolvendo múltiplos protagonistas de diferentes épocas e lugares — desde o Império Romano até uma mansão na era moderna. Cada personagem enfrenta forças sobrenaturais e busca fragmentos de um mistério ligado a deuses ancestrais, conhecidos como "Antigos" — bem Lovecraftiano, não? —, cujo objetivo é subjugar a humanidade.
Essa estrutura narrativa ambiciosa é um dos pontos altos do jogo. O jogador alterna entre diferentes personagens em épocas diversas, o que dá uma profundidade única à lore do game. Essa variedade não só enriquece o enredo, mas cria uma conexão com cada um dos heróis que enfrenta seu destino sombrio. Além disso, Eternal Darkness foi pioneiro ao apostar em temas de terror cósmico e misticismo, onde a sanidade e a percepção da realidade são constantemente questionadas. Influências literárias de H.P. Lovecraft são claras, porém o jogo consegue balanceá-las com uma trama própria e uma imersão poderosa.
...Eis a questão. |
Contudo, Lovecraft não é o único membro do mundo literário que aparece nas entrelinhas de Eternal Darkness. Edgar Allan Poe é citado diretamente no game através de um de seus poemas mais famosos, O Corvo. Poderíamos dizer que há menção de elementos de várias obras góticas, ou de gênero gótico, tanto na estrutura quanto na narrativa do jogo, por exemplo, o mal que atravessa gerações, de Drácula, ou a ideia de conhecimentos e habilidades proibidos em Frankenstein. E para além do terror, temos também trechos de Shakespeare no game.
O Sistema de Sanidade: Quebrando a Quarta Parede com Horror Psicológico
Uma das mecânicas mais interessantes de Eternal Darkness é seu sistema de sanidade, algo totalmente inovador para a época. Sempre que o personagem é exposto a eventos sobrenaturais ou criaturas grotescas, ele perde sanidade. Com a sanidade reduzida, o jogo começa a pregar "peças" não apenas no personagem, mas também no jogador. O sistema gera alucinações progressivas, como sons inexplicáveis, efeitos visuais bizarros, ou até ilusões de que o console travou ou desligou sozinho. Em alguns casos, o jogo finge diminuir o volume da TV ou exibir uma tela de erro.
Esses "ataques mentais" fazem o jogador questionar sua própria experiência e aumentam o clima de paranoia e tensão, aproximando-o do estado psicológico de quem enfrenta as forças do jogo. Essa quebra da quarta parede elevou o horror psicológico a um novo patamar e ainda hoje é lembrada como uma das mecânicas mais criativas e imersivas de um jogo de terror.
Essas situações de interação, ou simulação, com elementos externos ao próprio jogo já eram raros, mas indiscutivelmente icônicos. No entanto, era isso que tornava o jogo tão mais imersivo e instigava sensações diversas e que foi ficando cada vez mais raro, até hoje ser quase inexistente, o que torna Eternal Darkness, entre outros títulos que iam além do que pensávamos sobre videogames, tão icônico e importante — e que faz falta hoje.
Magia e o Sistema de Runas: Estratégia e Complexidade
Outro diferencial de Eternal Darkness é o sistema de runas, que permite conjurar feitiços ao combinar símbolos específicos encontrados ao longo do jogo. O jogador pode criar feitiços customizados, que oferecem uma boa dose de estratégia e requerem uma compreensão dos poderes e efeitos de cada runa. No início, a mecânica encanta pela novidade e a variedade de feitiços possíveis, que incluem desde habilidades ofensivas até proteção e cura.
Infelizmente, esse sistema se torna repetitivo à medida que o jogo progride, especialmente por exigir que o jogador pause frequentemente para acessar e conjurar as magias. Mais para a parte final do game, a constante pausa para conjuração, apesar da capacidade de dedicar alguns atalhos para as conjurações, acaba quebrando o ritmo e pode tornar a experiência um pouco cansativa. Ainda assim, a complexidade e a liberdade criativa das runas são uma adição única e impressionante, que poucos jogos da época ousaram oferecer.
Pontos Fortes e Negativos de uma Experiência Singular
Entre os pontos fortes de Eternal Darkness estão sua narrativa complexa e bem escrita, os personagens cativantes e o uso do sistema de sanidade para aumentar a imersão e o terror psicológico. Esses elementos, junto ao universo sombrio e detalhado, tornam o jogo uma experiência inesquecível. A ambientação e a trilha sonora também contribuem para o clima de mistério e opressão, transportando o jogador para uma realidade onde o sobrenatural é uma ameaça constante.
Contudo, alguns aspectos do jogo podem frustrar, especialmente para quem busca uma experiência mais fluida. Além do sistema de runas, que perde o impacto ao exigir repetição no final do jogo, os gráficos e a jogabilidade estão, hoje, um pouco datados. A movimentação dos personagens e as animações de combate podem parecer limitadas em comparação aos padrões atuais, o que pode atrapalhar a imersão para novos jogadores. Porém, o contexto e a ambição do jogo superam esses detalhes técnicos, e eles se tornam pequenos diante da inovação e do impacto que ele trouxe para o gênero de horror.
Horror e suspense que fazem falta
Eternal Darkness surgiu sem nenhum apego aos jogos do mesmo gênero da época: nNada de pânico por escassez de suprimentos e munição. Nada de bizarrices aleatórias e sem contexto apenas para causar desconforto, mas sem grande relevância geral no jogo. A experiência que a Silicon Knights parecia quererm entregar era outra, mais arraigada na construção da experiência do jogador com o caos mental, surreal e de horror da narrativa dos diversos personagens que conhecemos em seu decorrer. Não saber o que é real ou o que é o puro suco do pavor e pânico diante do desconhecido como Eternal Darkness fez uso é um tempero que faze falta. Infelizmente, com a falência de seu estúdio, é muito pouco provável vermos um remake atualizado dessa joia.
Um Clássico Atemporal do Horror Psicológico
Para os fãs de horror, Eternal Darkness: Sanity's Requiem é uma experiência obrigatória, não só por sua narrativa rica e mecânicas inovadoras, mas também por ter introduzido um novo padrão para o horror psicológico nos videogames. Mesmo com algumas limitações e pequenos problemas de gameplay, ele se mantém como uma joia rara que soube combinar narrativa, atmosfera e inovação de forma singular..
Em tempos de Halloween, revisitar esse jogo é mais do que apenas uma experiência nostálgica; é uma chance de experimentar um dos melhores exemplos de como o terror nos games pode ser criativo, intenso e inesquecível.
Revisor: Alessandra Ribeiro.