Desde o seu surgimento no jogo The Legend of Zelda (1986), a personagem Zelda passou por uma grande transformação, coincidindo muitas vezes mudanças sociais e culturais sobre o papel da mulher nos videogames. Inicialmente retratada como uma princesa vulnerável que precisava ser resgatada, Zelda evoluiu ao longo das décadas, e dos mais de 33 tíitulos da franquia entre a série principal e derivados, para se tornar uma figura central e poderosa na franquia, fazendo valer a presença que nomeia a série: A lenda de Zelda.
O Clichê da donzela em perigo
No início, a narrativa de Zelda seguia um padrão clássico do que se convencionou chamar de "donzela em perigo" — um clichê narrativo comum em diversas narrativas ao longo da história da literatura e entretenimento, especialmente no ocidente. Nessas narrativas, a mulher, geralmente de posição elevada como uma princesa, é sequestrada e mantida refém por um vilão, enquanto o herói, tradicionalmente masculino, deve embarcar em uma jornada para resgatá-la, sendo, quase sempre, um prêmio final para o herói.
Essa fórmula tem raízes nos contos de fadas ocidentais, como Branca de Neve e Cinderela — basta lembrar do status adormecido da princesa Zelda no segundo jogo —, e em mitologias antigas, e encontrou terreno fértil na mídia moderna, incluindo o cinema, os quadrinhos e videogames.
A primeira aparição de Zelda em The Legend of Zelda segue exatamente nesse esquema. Embora ela detenha um papel crucial na história, como guardiã da Triforce da Sabedoria, que a dividiu para protegê-la. Zelda é capturada por Ganon e cabe a Link, o protagonista masculino, ou seja, o herói, salvá-la.
Como destaca Anita Sarkeesian, estudiosa crítica da representação feminina nos videogames, “a donzela em perigo funciona como um troféu para o protagonista masculino, subtraindo qualquer agência feminina e colocando-a como mero objeto da narrativa”. Esse tipo de narrativa reforça estereótipos de passividade e dependência nas figuras femininas.
A transição da passividade para a ação
Conforme os anos avançaram, Zelda passou a ocupar papéis mais ativos e influentes na franquia. Um passo importante dessa transição aconteceu em The Legend of Zelda: Ocarina of Time (1998), onde Zelda assume a identidade secreta de Sheik, um guerreiro ágil e misterioso que auxilia o herói Link ao longo de sua jornada. A figura de Sheik subverte o papel tradicional de Zelda, destacando sua capacidade de ação e protagonismo.
Como Sheik, Zelda abandona sua posição de vulnerabilidade e assume um papel ativo na jornada, ajudando a conduzir Link em sua missão. É difícil saber se esse desenvolvimento pode ter sido uma resposta tanto à evolução das narrativas de videogame quanto à crescente demanda por representações mais complexas de personagens femininas ou apenas surgiu de forma orgânica no processo de desenvolvimento, mas está lá de uma forma fluida e natural, que funcionava dentro da narrativa do jogo.
A estudiosa Carolyn Petit observa que "Zelda como Sheik exemplifica uma mudança de paradigma na representação feminina: ela ainda está ligada à narrativa de Link, mas agora possui uma autonomia que antes lhe era negada”. Ainda assim, foi precisa “encarná-la” como uma figura dúbia e claramente disfarçada de forma masculina para que sua força seja apresentada.
Essa transformação continuou nas entradas seguintes, como The Wind Waker (2002), onde Zelda assume o papel de Tetra, uma pirata independente e destemida, e Twilight Princess (2006), onde sua figura é retratada com maior profundidade emocional e impacto político na história. Em ambos os casos, embora ainda seja capturada ou envolvida em situações de perigo, Zelda é apresentada como uma personagem mais ativa e estratégica.
Zelda: A princesa em primeiro plano
O ponto culminante da evolução da princesa Zelda acontece em The Legend of Zelda: Breath of the Wild (2017) e Tears of the Kingdom (2023), onde a personagem atinge novos níveis de complexidade. Nesta versão, Zelda não só exerce um papel de liderança, mas também apresenta conflitos internos profundos sobre seu destino e suas responsabilidades. Longe de ser apenas um símbolo de fragilidade, ela demonstra força ao confrontar suas dúvidas e assumir a missão de proteger Hyrule com seus próprios poderes.
Zelda, aqui, é apresentada como uma figura multifacetada: estudiosa, guerreira e líder. Em Breath of the Wild, ela luta contra a Calamidade por cem anos, protegendo o reino enquanto Link está em sono profundo. Esse arco mostra Zelda não apenas como uma personagem reativa, mas como alguém que enfrenta diretamente os desafios e carrega o destino de seu povo.
A professora Bonnie Ruberg, especializada em gênero e sexualidade nos videogames, observa que “o papel de Zelda em Breath of the Wild representa uma das transformações mais significativas em como as mulheres são retratadas em jogos, de personagens dependentes para indivíduos poderosos e complexos".
Em Tears of The Kingdom, Zelda assume um papel ainda mais proeminente, com suas ações e presença profundamente enraizada na jornada do herói e na construção do mundo, não apenas como uma contenção para o mal a ser combatido pelo herói, como em Breath of The Wild, mas a narrativa se basea completamente em sua própria jornada, mesmo que nem sempre observada diretamente.
É claro, poderíamos apontar também a busca da princesa em Skyward Sword (2011), onde há uma rica jornada de descoberta da personagem como reencarnação de uma deusa, seus deveres e sacrifícios. Tal jornada a coloca em ação, embora sempre protegida e seguida por outros personagens.
A lenda da protagonista
Nos últimos anos, já muito se especulava sobre a possibilidade de Zelda se tornar uma personagem jogável, mas como em Spirit Tracks, em que ela apenas podia ser utilizada para resolver puzzles. A ideia da princesa tomar a frente em uma aventura compartilhada com Link ou mesmo sozinha já vinha sendo aventada no desejo do público, dada a personalidade e a força que a personagem já vinha apresentando tanto nos jogos core da franquia, como em spin-off e outros jogos em que apareceu, como em Super Smash Bros. ou Hyrule Warriors.
Eis que o momento finalmente chegou e estamos às vésperas da primeira aventura solo, protagonizada pela princesa como personagem jogável e que, como mostrado nos trailers, a jovem Zelda terá que resolver todos os problemas com suas próprias mãos em Echoes of Wisdom. E apesar da empolgação com essa nova entrada na franquia e o papel protagonismo assumido pela garota, também surgiram dúvidas e preocupações — algumas das quais também compartilhei —, como a trariam para a ação sem que ela se tornasse apenas uma versão feminina de Link e acabando por se tornar um espadachim e guerreira genérica? Como trariam as características únicas da princesa nessa aventura? Mas logo no anúncio e primeiro trailer do jogo a resposta veio e o alívio chegou.
O Impacto cultural e a nova geração de protagonistas femininas
A evolução de Zelda reflete uma mudança mais ampla na maneira como os papéis femininos vêm sendo escritos nos videogames e em outras mídias. Historicamente, personagens femininas em jogos eram, muitas vezes, definidas por sua relação com personagens masculinos — fossem elas interesses amorosos, personagens secundárias ou vítimas que precisavam ser salvas, com poucas exceções. Maz, com o tempo, e sob influência das mudanças sociais e dos movimentos que buscam mais representação e inclusão , essa representação tem se expandido para abarcar personagens femininas como protagonistas autônomas, com jornada, histórias e força próprias.
Um outro exemplo dessa incursão de personagens vistas como frágeis à frente da ação, ao menos em consoles Nintendo, é a princesa Peach, que apesar de já ter protagonizado um jogo no Nintendo DS, em Super Princess Peach, retornou com sua segunda aventura solo em Princess Peach Showtime!.
Essa transformação é um reflexo do debate crescente sobre a necessidade de narrativas mais inclusivas e diversas, tanto em termos de gênero quanto de etnia e orientação sexual. De Samus Aran, em Metroid, Lara Croft, em Tomb Raider, até Aloy, em Horizon Zero Dawn, a presença de personagens femininas fortes e protagonistas se tornou um pouco mais comum e celebrada na cultura dos jogos, oferecendo às jogadoras (e jogadores) uma maior variedade de experiências e identificação.
Protagonismo não é apenas para Femme Fatales
Antigamente, as protagonistas femininas nos videogames eram (e são) frequentemente representadas como femme fatales — personagens altamente sexualizadas e misteriosas, cuja força muitas vezes estava ligada à sua sensualidade, a exemplo de Lara Croft, Ada Wong e Bayonetta. Hoje, vemos protagonistas femininas mais diversas, com histórias profundas, motivações complexas e papéis que vão além dos estereótipos ou da hipersexualização. Esses personagens, como Aloy em Horizon Zero Dawn, Ellie em The Last of Us, a nova versão de Lara Croft, Zelda e Peach, refletem uma mudança importante na indústria, que agora oferece uma maior variedade de representações femininas, incluindo heroínas fortes, vulneráveis, inteligentes e corajosas.
E quem sabe no vindouro do filme da Lenda de Zelda, a exemplo de Peach em Super Mario Bros. O filme., teremos uma Princesa Zelda que lute lado a lado com Link e não seja apenas uma princesa sequestrada.
Revisão: Cristiane Amarante