Expectativa e realidade muitas vezes caminham por uma linha tênue. Quando uma corresponde à outra, a sensação obtida costuma ser das melhores. Já o contrário pode levar a uma grande decepção.
O Escudeiro Valente (ou The Plucky Squire, em seu título original) curiosamente representa para mim um pouco dos dois lados. Enquanto sua proposta e apresentação o confirmaram como um dos jogos mais criativos dos últimos anos, deslizes na parte técnica prejudicaram uma parte da experiência.
A vida como um livro aberto e vice-versa
O Escudeiro Valente conta a história do reino de Mana, um mundo mágico estampado nas páginas de um famoso livro infantil. O personagem principal deste conto é Pontinho, um herói aventureiro que durante muito tempo lutou para conter as armações do atrapalhado mago Enfezaldo.
Um belo dia, cansado de ser derrotado, Enfezaldo põe em prática seu plano mais diabólico: canalizar uma metamagia capaz de expulsar Pontinho do livro, assim alterando sua história. Com o poder do feitiço se espalhando pelo Reino, cabe agora ao intrépido escudeiro e a seus amigos, a bruxinha Violeta e o troll Batera, embarcar em uma jornada por páginas desconhecidas para derrotar o vilão.
Só que além de colocar o reino de Mana sob risco, a metamagia de Enfezaldo acha o caminho para o mundo exterior. Essa com certeza é a principal sacada da história: ao levar Pontinho para o ambiente do leitor, O Escudeiro Valente estabelece um elo para que um conto infantil se converta em uma espécie de livro interativo.
Mais do que isso, a maneira como a história trata dos benefícios que a literatura proporciona às crianças é quase um apelo para que os pais cuidem para que essa prática tão importante para o desenvolvimento infantil — e que vem se tornando cada vez mais rara — não se perca em um mundo repleto de modernidade.
Acompanhar as peripécias de Pontinho pelas páginas do livro e suas aventuras pelo desconhecido ambiente de um quarto cheio de obstáculos criados pela mente de uma criança são os principais fatores que fazem de O Escudeiro Valente uma obra tão cativante.
Viajando entre dois mundos
São essas mudanças entre os ambientes 2D e 3D que marcam a jogabilidade de O Escudeiro Valente. Enquanto está nas páginas do livro, a gameplay assume a perspectiva quase sempre vista de cima e que se caracteriza por gráficos belíssimos similares aos desenhos animados.
O jogo conta com um humor equilibrado, sem que se torne forçado demais ou ultrapasse limites do tolerável. Isso está presente não apenas nos diálogos, mas também na ambientação, através de cenários como uma praia com árvores e pássaros dançantes, uma cidade onde a magia é usada como fonte de inspiração para a arte e até uma montanha de trolls com um talento especial para o Heavy Metal.
Tudo isso se torna ainda mais divertido com a ótima localização em português brasileiro, capitaneada pela narração do excelente Mauro Ramos. O trabalho realizado é tão bem-feito que, por mais que a história funcione bem quando contada do ponto de vista do narrador, fiquei imaginando como seria se os demais personagens também se comunicassem por voz. Ademais, a decisão de fazer de Pontinho um protagonista mudo é, no mínimo, curiosa. Com todo o heroísmo creditado ao personagem, seria mais interessante que ele possuísse linhas de diálogo ao invés de só observar tudo sem esboçar reações.
Já quando o jogo transita para o mundo exterior ao livro, além dos gráficos assumirem um visual mais realista, é quando surgem alguns problemas. Ainda que a ambientação de tudo que compõe o quarto seja excepcional, me lembrando inclusive uma de minhas animações favoritas, Toy Story, a resolução gráfica ficou bem abaixo no Switch quando comparada às outras plataformas.
É claro que isso é até aceitável em se tratando de um console cujo sucessor aparenta estar cada vez mais próximo; entretanto, além do aspecto visual ter sido prejudicado, boa parte das sessões em 3D são permeadas por problemas de performance como engasgos e quedas na taxa de frames por segundo. Esses atrasos também estão presentes mesmo em ambientes 2D, porém com um impacto menor na jogabilidade.
Vale ressaltar que cerca de 75% do jogo se passa nas páginas do livro; portanto, o prejuízo visual e na performance nos ambientes 3D não afeta drasticamente a experiência. Ainda assim, é sempre importante apontar esses detalhes para que você tire sua própria conclusão; afinal, o nível de exigência de cada jogador pode variar. Mesmo que haja um prejuízo visual durante as passagens pelo quarto, é inegável como a direção de arte foi capaz de criar ambientes incríveis que representam muito bem cada situação encontrada.
Reescrevendo sua história
Detalhando mais a jogabilidade, pode-se dizer que há um pouco de tudo em O Escudeiro Valente. A maior parte da campanha é centrada em avançar pelas páginas do livro solucionando puzzles e eliminando inimigos para liberar portas que bloqueiam o acesso até a próxima área.
O combate é bem simples, contando apenas com algumas poucas variações de ataques de espada que podem ser adquiridos e melhorados com uma vendedora. Há algumas sessões de minigames aqui e ali, de furtividade e até uma parte em que controlamos um jetpack para atirar em naves inimigas no melhor estilo shmup. Por sinal, muitas referências também estão presentes. De forma geral, o combate é divertido, mas não oferece desafios e se torna repetitivo ao chegar aos últimos capítulos.
A solução dos puzzles também não é das mais difíceis, mas tira um ótimo proveito da proposta do jogo de usar o livro para apresentar ideias únicas. Uma delas é a possibilidade de rearranjar frases movimentando palavras, assim alterando as características dos objetos e dos ambientes para avançar pelos cenários.
Outra mecânica envolve a manipulação do livro, só que da perspectiva do lado de fora. Toda vez que Pontinho encontrar um portal de metamagia, ele pode utilizá-lo para deixar a história. Com algumas ferramentas criadas por seu amigo, o excêntrico mago Barbaluar, o herói pode revirar as páginas do livro para mover objetos, encontrar palavras, chaves e outras formas de solucionar os puzzles.
Outra maneira de interferir no livro acontece ao incliná-lo. Isso faz com que objetos se desloquem de uma página para outra. Além disso, carimbos são disponibilizados para fixar um objeto em seu lugar ou colocar uma bomba capaz de destruir inimigos e movimentar coisas pesadas.
Já as fases mais longas pelo quarto envolvem bastantes sessões de plataforma e um pouco de combate. O que faz com que isso se torne mais interessante é que, mesmo durante as partes nos ambientes 3D, ainda será necessário transitar por planos 2D em recortes, canecas e outros objetos para conseguir acessar novas áreas do quarto e coletar itens para prosseguir pela história. Com isso, o jogo constantemente brinca com essas mudanças para reforçar o conceito de interatividade entre os mundos.
Pontinho sacudiu a poeira e se levantou para lutar outra vez
O Escudeiro Valente está entre os títulos mais simpáticos e criativos dos últimos anos. Por mais que a ausência de desafios e de um combate com mais alternativas atrapalhem um pouco, a excelente ambientação e a maneira como a história é capaz de cativar diversos públicos o tornam um ótimo jogo para toda a família.
A ressalva está na parte técnica. Apesar de não chegar ao ponto de estragar a experiência, tanto rodando no modo portátil do Switch quanto na base, o jogo se comporta de maneira instável em algumas situações e apresenta um visual questionável quando está no plano 3D. Ao concluir a campanha, a impressão que tive é que o modo portátil se comportou melhor em ambos os aspectos.
Por fim, creio que, com tudo que O Escudeiro Valente oferece, optar por jogá-lo no Switch acaba sendo uma questão pessoal. Caso você seja mais exigente no que diz respeito ao quesito performance, talvez o melhor a se fazer seja aguardar algumas atualizações ou adquiri-lo em outra plataforma. Caso o Switch seja seu console principal e você ainda queira viver essa incrível aventura, acredito que suas qualidades superam facilmente seus problemas.
Prós:
- A forma com que o jogo transita entre ambientes 2D e 3D traz uma abordagem única para a jogabilidade;
- A direção de arte em ambos os planos apresenta características distintas e que representam muito bem a realidade de cada mundo.
- A localização em português brasileiro é leve e bem-adaptada;
- A proposta de transformar um livro em um ambiente interativo é um convite para incentivar as crianças à leitura.
Contras:
- O sistema de combate, os puzzles e os minigames se tornam repetitivos facilmente;
- Problemas de performance afetam parte da jogabilidade;
- A baixa resolução gráfica no plano 3D prejudica o aspecto visual.
O Escudeiro Valente (The Plucky Squire) — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 7.5Versão utilizada para análise — Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Devolver Digital