Desde a primeira vez que assisti ao trailer de Bloomtown: A Different Story, sua proposta de juntar o cenário de uma simpática cidade repleta de eventos sobrenaturais com alguns elementos de jogabilidade de conhecidos RPGs foi o suficiente para despertar meu interesse.
Claro que muitas inspirações foram buscadas em séries famosas, como Stranger Things e Gravity Falls, além de jogos como Persona, Shin Megami Tensei e até um pouco de Stardew Valley. No entanto, a maneira como a história foi usada para abordar alguns temas importantes é o que definitivamente fez de Bloomtown: A Different Story um jogo especial.
Férias nada frustradas
Tudo começa quando os irmãos Emília e Sérgio são enviados por sua mãe em uma viagem de verão forçada para casa do seu avô na pequena cidade de Bloomtown. Para eles, aquilo significava o início de um pesadelo. Afinal, que criança com idade entre os 10 e 12 anos ficaria contente em perder as férias escolares em uma cidade do interior, não é mesmo?
Porém, o motivo principal da viagem ia além de uma visita indesejada. Era também uma forma para que os irmãos ficassem sob os cuidados de um adulto enquanto sua mãe se dedicava ao trabalho após passar por um processo de divórcio.
Ao chegarem à casa de seu avô e serem recepcionados sob uma série de regras, os dois saem para cumprir algumas tarefas. Ao final do dia, cansados, recolhem-se em seus quartos. É a partir daí que tudo começa a mudar.
Durante seu sono, Emília é convocada para o mundo inferior por ninguém mais, ninguém menos que o próprio Lúcifer. O demônio explica para ela que Bloomtown é uma cidade ameaçada por outras entidades sobrenaturais. Com medo de perder sua posição como o superior de sua raça, Lúcifer propõe à Emília um pacto: um poder especial e a proteção de um guardião a troco da ajuda da garota para derrotar essas criaturas.
De volta ao mundo superior, a menina é incapaz de compreender se o encontro foi real ou apenas um sonho ruim. Porém, ao sair para conhecer a vizinhança com Sérgio, ela se depara com um grupo de crianças que alegam estar procurando por sua amiga desaparecida.
Os irmãos, então, decidem ajudá-las na busca. Só que durante o processo, Emília encontra um objeto que revela uma porta secreta para o submundo. Ao acessar esse ambiente escuro, ela avista a garota desaparecida. Neste momento, a jovem percebe que as férias de verão em Bloomtown seriam mais animadas do que jamais imaginara.
Os dois lados da história
A constante alternância entre os mundos superior e inferior é um dos grandes trunfos do jogo. A quantidade de detalhes nos belos gráficos pixelados surpreende a cada novo lugar encontrado. E como há muitas diferenças na composição dos cenários dessas realidades, a ambientação jamais se torna cansativa.
No mundo superior, Bloomtown se caracteriza como uma cidade tranquila, na qual seus moradores seguem com uma pacata rotina. O comércio local está dividido entre as mais variadas atividades, de lojas de mantimentos, uma livraria, uma loja de discos, uma casa de penhores, a um clube de jazz e uma área rural.
O clima típico do verão resulta em cores variadas e alegres, inclusive durante os poucos dias de chuva. O jogo se passa durante a década de 1960, portanto espere encontrar muitas referências ao período por meio da citação de artistas, livros, na ótima trilha sonora e até colecionáveis em forma de palavras cruzadas que fazem menção aos temas da época.
Já no mundo inferior, a ambientação muda drasticamente. Não apenas por suas características sombrias e tudo mais que compõe as versões alternativas de dungeons como uma floresta e até de um sanatório, mas também pela forma com que o jogo usa efeitos visuais para criar essa atmosfera. A presença de granulação na tela e de bordas que ficam alternando entre tons escuros enfatizam a ideia de uma realidade totalmente distorcida.
Ainda que a proposta não seja de um jogo de suspense ou terror, tudo funciona muito bem de acordo com o desenvolvimento da história. Mas o que mais me chamou atenção em Bloomtown: A Different Story foi como toda essa dicotomia entre o bem e o mal é usada para abordar temas relevantes.
A história da menina acanhada que não consegue fazer amizades, do garoto que sofre bullying de um grupo de arruaceiros, a família que enfrenta a dor da perda de um ente querido e até conflitos entre ciência e religião são alguns dos temas presentes no jogo.
Cultivando laços
Obviamente, as funções de jogabilidade também são bastante influenciadas pelo sistema das realidades. A começar pelo mundo superior, no qual é possível explorar a cidade para interagir com personagens, completar missões secundárias e até participar de atividades comuns aos jogos de gestão e também aos chamados cozy games.
Conforme explora os bairros e conhece melhor os moradores, Emília cria laços de amizade que serão fundamentais para ajudá-la em sua jornada. Um deles é Ramona, uma menina que sofre maus-tratos de seu pai. O outro é Hugo, um cachorro com poderes especiais e a capacidade de se comunicar com humanos.
Esses personagens, juntamente com Sérgio, formarão o grupo que Emília terá sempre consigo ao longo das incursões para o subverso. Além disso, concluir as missões secundárias de cada um deles garante novas habilidades passivas para o grupo.
Outras atividades incluem cultivar uma horta, ler alguns livros, trabalhar na venda do Sr. Amoroso para conseguir dinheiro para adquirir itens e equipamentos, e até criar ferramentas e preparar refeições para serem levadas para as batalhas no subverso.
Cada atividade realizada demanda um tempo específico para ser concluída. O horário também influencia no funcionamento das lojas e na disponibilidade de algumas missões. Esse sistema é interessante por estar de acordo com a regra do toque de recolher que a cidade possui. No entanto, na parte final do jogo, algumas missões demandam muitas voltas pelo mapa, além de visitas a lugares que só estão disponíveis em dias restritos.
Durante a exploração e os diálogos haverá casos em que uma decisão poderá ser tomada com base em alguns atributos de Emília. Essas situações são definidas aleatoriamente por um arremesso de dados, uma função muito divertida e que remete aos tradicionais RPGs de mesa. Para aumentar suas chances, os atributos podem ser melhorados ao concluir eventos encontrados pelos mapas.
Combate e exploração de dungeons
Quando o grupo vai para o subverso, entram em cena o combate por turnos e a exploração das dungeons. O level design dos mapas é composto por salas que precisam ser exploradas para encontrar chaves, completar eventos e resolver alguns quebra-cabeças.
No geral, os puzzles são bem interessantes. Porém, um bug em uma das dungeons finais acabou me fazendo perder mais de uma hora tentando encontrar uma solução para um quebra-cabeça, quando, na verdade, o problema era um item que não havia aparecido no inventário de um vendedor.
Além disso, as salas adjacentes podem conter baús com consumíveis e itens para o arsenal dos personagens. Essa é uma parte da exploração que se torna importante, ao passo que a vida do grupo não se regenera após as batalhas.
Algumas salas seguras são encontradas ao longo das dungeons e são usadas para retornar à cidade para reabastecer os itens e recuperar pontos de vida e de magia. Essa também é uma forma de alternar a jogabilidade com as funções do mundo superior para que o combate não se torne repetitivo.
No entanto, o fato dos demônios renascerem toda vez que você volta para cidade acaba indo na contramão dessa proposta. Isso fica ainda mais evidente pelo jogo não possuir uma maneira de fugir das batalhas, algo que deixa seu ritmo inconsistente.
O sistema de combate é compatível com as regras da maioria dos jogos do gênero de RPG por turnos, com cada rodada sendo definida ao usar uma das habilidades dos personagens ou um consumível.
Há uma boa variedade de inimigos e eles estão divididos entre algumas classes, como suporte, vanguarda e tanque. Eles também ficam dispostos em diferentes linhas de combate. Para acertar os suportes, por exemplo, que normalmente ficam protegidos curando e dando benefícios aos outros demônios, é necessário usar um poder ou uma arma secundária de longo alcance.
Cada personagem possui um guardião específico, que é utilizado para conjurar magias de ataque e de apoio. A cada nível alcançado, o poder dos personagens sobe, assim como novas habilidades para os guardiões são liberadas.
Criando demônios
A grande sacada do combate é que os demônios considerados menores podem ser capturados e usados para melhorar as estatísticas dos personagens e também para adicionar mais habilidades mágicas. Cada personagem consegue equipar um desses demônios, sendo que aqueles de nível inferior ou que estiverem sobrando podem ser infundidos aos seus favoritos para melhorá-los.
A mecânica de captura é simples, mas leva certo tempo até que se consiga acessar mais formas de ativá-la. Toda vez que um demônio for atingido por um ataque elemental ao qual ele é fraco, ele pode ficar em um estado de prostração. Nessa situação, você possui a opção de rolar os dados para tentar capturá-lo ou acertá-lo com um golpe combinado de todos os personagens.
Essa é uma boa maneira de acelerar as batalhas também, já que os demônios capturados deixam o combate imediatamente. Há também alguns itens arremessáveis que facilitam a captura, mas sua fabricação requer alguns materiais que são um pouco mais difíceis de serem obtidos.
Essa mecânica de dominação de monstros está longe de ser inédita no gênero, mas funciona bem, principalmente pelas variáveis elementais que cada demônio adiciona. Por sinal, os ataques elementais são o ponto-chave do combate, pois alguns poderes podem ser combinados para causar mais dano quando usados em sequência.
O único porém da mecânica de combate com os demônios é que alguns deles possuem habilidades iguais, portanto, em determinado momento do jogo, capturá-los deixa de ser um atrativo.
Parte técnica e localização
O desempenho de Bloomtown: A Different Story é bem agradável tanto no modo portátil do Switch quanto na dock. Foram notados alguns engasgos em transições de cenários, mas eles não chegaram perto de atrapalhar a experiência.
O maior erro observado foi aquele que me impediu de avançar na história até perceber do que se tratava. Apesar desse problema ter sido solucionado ao carregar um save anterior, isso evidenciou como a falta de um sistema de salvamento manual prejudica um jogo desse gênero.
Por mais que alguns saves sejam criados automaticamente em determinados momentos para servirem de backup, uma decisão malfeita ou um erro simples pode resultar em horas perdidas de gameplay.
Em se tratando da localização em português brasileiro, há alguns erros que já são de conhecimento dos desenvolvedores e que devem ser corrigidos em breve. Mesmo assim, o trabalho feito é digno de elogios por inserir termos da nossa linguagem informal e até adaptar os nomes dos personagens para que se tornem mais familiares.
Um bom destino para sua próxima viagem
Bloomtown: A Different Story une qualidades de diversos gêneros, mas faz isso de forma bastante competente. Com seu sistema de combate por turnos reforçado pelas habilidades dos demônios, uma história que aborda temas importantes de forma leve e uma gestão social bem interessante, ele se torna um RPG que merece a atenção dos fãs do gênero.
Prós:
- A ambientação inspirada pelo período dos anos 1960 traz boas referências culturais;
- A história aborda temas importantes sem que se tornem forçados;
- As funções sociais e o combate por turnos atuam de forma totalmente separada, mas são muito bem inseridas dentro da temática do jogo;
- A constante mudança entre realidades faz com que os cenários jamais fiquem repetitivos.
Contras:
- A dependência do tempo pode gerar frustração durante algumas missões;
- A pouca variedade de habilidades dos demônios capturados deixa o sistema menos atrativo na porção final do jogo;
- A ausência de uma função de salvamento manual atrapalha caso queira refazer algumas escolhas.
Bloomtown: A Different Story — PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch — Nota: 8.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Twin Sails Interactive