Blast from the Past

Série Mother/Earthbound Beginnings: 35 anos de simplicidade, confusão e amor

O primeiro filho, o começo de um legado.

Produtor, dublador, publicitário e tantos outros trabalhos, Shigesato Itoi é uma lenda no Japão. Seu nome sozinho vende produtos a rodo na Terra do Sol Nascente e, em 1989, ele decidiu que seu próximo projeto seria no crescente mundo dos games. Inspirado por suas próprias experiências na infância e em outras obras como Os Peanuts, ele daria luz ao que seria sua obra-prima: a trilogia Mother.


Em comemoração aos 35 anos da trilogia, eu resolvi fazer uma trilogia de posts para apresentar meus sentimentos sobre os jogos. Ontem, eu falei um pouco da minha relação com a série, remontando lembranças e sentimentos com as duas entradas mais populares e omitindo a gênese da série. Eu fiz de propósito porque eu queria deixar o primeiro título, Earthbound Beginnings, à parte, dando um foco e carinho extra que ele tanto merece. Pegue seu taco de baseball, coloque um canário no bolso e prepare sua bomba de asma, pois vamos dar uma volta.

Pollyanna (I Believe in You)

Há muito tempo, no começo do século XX, vivia um casal: George e Maria. Eles estavam felizes na pacata cidade de Podunk quando, na calada da noite, foram abduzidos por alienígenas. Dois anos depois, George voltou à Terra, mas nunca mais falou sobre Maria, nem o que tinha acontecido no espaço. 80 anos depois, conhecemos o descendente do casal: Ninten, vivendo em paz com seus pais e suas irmãs na mesma casa que seus avós. 

Seria mais um dia normal na vida do jovem garoto quando o abajur em seu quarto decidiu que era hora de apagar Ninten! Um poltergeist atingiu a casa, fazendo as coisas ficarem de pernas pro ar, inclusive uma das bonecas das meninas que, ao ser derrotada, revelou uma pequena caixa de música.

Quando a situação se controlou, o pai de Ninten, que estava fora de casa por causa do trabalho, ligou para o garoto e deu-lhe a missão de descobrir a fonte de toda a confusão que assolava o país. Quando sai de casa com nada mais que o diário de George, seu taco de baseball e um monte de suco de laranja, Ninten inicialmente enfrenta inimigos terríveis como corvos fumantes, cobras constritoras, hippies mal educados e o temível Wally, o Fazendeiro.

Wisdom of the World

Depois de desventuras com zumbis no cemitério para salvar sua vizinha Pippi, tigres e ursos no zoológico (sem tempo para ver os pinguins que tanto ama) e outras bizarrices, Ninten chega ao reino rosado de Magicant, habitado por seres mágicos. No castelo, ele conhece a soberana do lugar, Rainha Mary, que lhe confere a tarefa de encontrar as oito notas musicais de uma antiga que ela esqueceu.

Aproximando-se da cidade vizinha de Merrysville, Ninten entrou na escola e descobriu uma lata de lixo estranha no terraço. Lá, um garoto tímido e genial, mas que sofria bastante bullying, estava se escondendo. Seu nome era Lloyd e, depois de uma tarefa um tanto ingrata na péssima Duncan Factory, ele se alia ao nosso protagonista para investigar os eventos.

Uma coisa leva a outra e os dois rapazes acham um chapéu endereçado a uma garota chamada Ana, residente da cidade nevada de Snowman. Eles chegam ao lugar de trem e logo descobrem que o lugar estava sofrendo uma epidemia de gripe (resolvida com flúor oral, obviamente). Na igreja, Ninten conhece a garota (e na novel, ele a acha muito atraente, o que a faz ficar bastante envergonhada pois ela leu seus pensamentos), uma pessoa gentil, mas que estava bastante preocupada com sua mãe, que fora sequestrada. Com isso, o trio estava concluído, com Ninten no comando dos pequenos heróis.

Um dos pontos altos da jornada de Ninten o levou a Ellay, uma distante cidade ao leste, tomada pela temível gangue de punks Bla-Bla Gang… que não são páreos para o trio de crianças. Após fazer uma apresentação digna da Broadway no teatro Live House, o chefe da gangue, Teddy, aparece, e desafia o garoto para uma luta. 

Quando perde, ele reconhece a força de Ninten e revela ser uma pessoa gentil e sensível, solitário pela morte dos pais e escondendo suas inseguranças com violência. Assim, ele se junta ao grupo e eles partem para o destino final: Monte Itoi.

The Paradise Line

Em dado momento, o grupo precisa descansar em uma casa na montanha. Ana pediu para Ninten um pouco de seu tempo, desfrutando de um momento de paz e para respirar em meio a tanta confusão. Sozinhos no quarto, eles compartilham uma dança e revelam seus sentimentos um para o outro. Ele, o garoto asmático e popular, mas que não se conectava com as garotas de sua escola; ela, a filha do pastor que era vista por todos como uma flor delicada e amável, mas que queria mostrar além disso. Amor jovem, amor secreto entre duas pessoas descobrindo sentimentos.

Seria tão belo e memorável por si só… até um robô assassino e gigante aparecer e decidir estragar a festa, quase matando Teddy (por sorte, Lloyd trouxe um tanque superpotente com ele). As crianças sobem a montanha, encarando os piores desafios e, praticamente no topo, Ninten descobre o legado de seu tataravô, George: escondida em um laboratório submarino, estava a colossal robô EVE, construída para proteger todos os descendentes do velho escritor.

Depois de terem sido atacados por um robô poderoso EVE deu sua vida para proteger seu novo amor, revelando a penúltima melodia em seu núcleo. Ao topo da montanha, Ninten encontrou uma lápide solitária, onde George descansava e que continha a última melodia. Seu espírito pediu, do fundo do seu coração, que cantasse para a rainha e, assim, ele descansou em paz. 

Teleportados automaticamente para Magicant, Ninten e seus amigos ficaram de frente para a rainha, e então ele tocou sua ocarina. Mary se lembrou de quem era: Maria, eternamente jovem pela energia PSI que fora imbuída em seu ser pelo transgressor de todo o caos: Giygas. Não como forma de tortura, mas de salvação.

Magicant

80 anos atrás, o casal George e Maria foi escolhido para cuidar do jovem Giygas, e eles lhe deram muito amor. No entanto, George começou a investigar a força psíquica misteriosa dos raptores, o PSI, e escapou de volta ao planeta com estudos e informações roubadas, sem conseguir levar Maria ou Giygas com ele. Seu povo ficou furioso com isso e planejou uma invasão de extermínio, com Giygas à frente do genocídio.

O jovem, no entanto, não queria fazer mal ao casal que cuidou tão bem dele em seu momento de solidão, especialmente Maria. Ele forçou-se a se separar dela, lobotomizando-a, mas imbuindo-a do poder de PSI, terraformando uma dimensão paralela chamada Magicant, onde ela seria Rainha Mary e poderia viver em paz e segura, rodeada por seres adoráveis e inofensivos.



Maria, em seus últimos momentos de vida, se lembrou de Giygas com amor e saudades, além de se lembrar de George em um momento de nostalgia. Com isso, oito décadas pareceram ser oito segundos para Maria, fazendo a mulher e seu reino imaginário desaparecerem. De volta à montanha, Ninten encontrou os humanos raptados (incluindo a mãe de Ana) e, ao lado de seus amigos, enfrentou Giygas. 

O alienígena era poderoso, mas disposto a salvar apenas Ninten do fogo que engoliria o mundo. E, quando todas as esperanças acabaram, o trio cantou a canção. Preenchido por sentimentos poderosos que há tanto tempo negligenciava, Giygas se exilou no espaço.

A humanidade foi salva. Os adultos de Youngtown voltaram; Teddy se reabilitou e iniciou uma carreira de músico no Live House; Lloyd foi agraciado como herói; Ana se reuniu com sua mãe e sempre aguarda ver Ninten… E nosso herói? Voltou para casa, onde deu um grande abraço em sua mãe, comeu seu prato preferido e foi dormir.

Bein’ Friends

Os personagens de Earthbound Beginnings podem não ser tão coloridos quanto seus dois sucessores, mas eles são memoráveis e possuem suas respectivas camadas. Pippi (baseada na clássica personagem Pippi das Meias Altas) é a vizinha de Ninten que fora raptada e auxilia no começo de sua jornada, infelizmente não ficando até o resto do jogo, (mas providenciando a icônica Franklin Badge.

Lloyd é um genial, mas extremamente tímido e humilhado habitante de Marysville, encontrando força e coragem no rapaz de Podunk e sendo figura icônica em um dos momentos mais valentes da franquia. Existem teorias que dizem que ele é o Dr. Andonuts de Earthbound e Mother 3, primariamente por sua genialidade e por seu afeto em se esconder em latas de lixo. As datas não fazem muito sentido, mas, considerando que viagem do tempo existe no universo da franquia, não seria surpreendente.


Ana é a filha do pastor da cidade invernal de Snowman, tendo sua mãe sequestrada pelas forças inimigas e possuindo habilidades psíquicas absurdamente poderosas, tanto quanto as de Ninten. Da mesma forma que existem teorias de que Lloyd aparece na sequência, também se discute a possibilidade de a mãe de Ness ser Ana, o que seria muito adorável, mas novamente precisaria de ginástica mental e viagem no tempo para funcionar.

Teddy é o jovem punk de Ellay, revoltado com o mundo e líder da Bla-Bla Gang, inicialmente um inimigo intimidador, mas que revela um enorme coração e carinho por aqueles que ama. Além de EVE e Pippi, Ninten também conta com a ajuda temporária (apenas em Magicant) de cinco pessoas pássaro chamadas Flying Men, que representam sua coragem (estes que também apareceriam em Earthbound, ajudando Ness).

Por fim, vale destacar mais dois personagens. A elusiva Rainha Mary, figura de maior destaque em Magicant e o objetivo principal da jornada, emana uma aura poderosa, gentil, mas ao mesmo tempo trágica para quem conhece sua história. Enquanto isso, o arquiteto de todo caos, Giygas, descansa no intimidador Monte Itoi, espalhando sua energia enlouquecedora pelo país, mas, quando descobrimos mais sobre ele, é bem normal quem jogar não sentir mais raiva dele, mas sim… pena. (Se quiser saber mais sobre Giygas, leia o número mais recente de nossa revista).

All That I Needed (Was You)

À época, Earthbound Beginnings foi pioneira no gênero RPG por trazer um mundo atual com problemas atuais em comparação com o ambiente medieval imposto por franquias como Dragon Slayer, Final Fantasy e Dragon Quest. Poções de mana foram substituídas por sucos e lanches, machados agora eram frigideiras e arcos foram trocados por bumerangues. A realidade também é explorada nos ambientes do jogo: cidades, cavernas, cemitérios, paisagens de neve, laboratórios, montanhas e desertos são alguns dos cenários que colorem o mundo de Mother.

Um grande mal do qual jogos antigos sofrem é não envelhecer bem, mostrando fortemente as marcas do tempo. Alguns pioneiros do gênero têm sua jogabilidade travada, gráficos pouco apelativos e simplesmente não possuem o mesmo impacto de décadas atrás. O primeiro Metal Gear (NÃO VOCÊ), de MSX-2 é prova disso, enquanto o primeiro Super Mario Bros. é o total oposto, sendo divertido de jogar até hoje.

Para a comunidade gamer inteira, o primeiro jogo da trilogia Mother é injogável. Punitivo por ter inimigos aleatórios a cada três passos; ser bem mais rústico e limitado que seus sucessores; apresentar uma história menos grandiosa; Ninten ser praticamente Ness, mas menos apelativo; o combate ser bem mais arcaico; e parecer esteticamente feio para os padrões do NES.

Bom, eu levanto de minha cadeira, visto um colete a prova de balas e declaro: Earthbound Beginnings não envelheceu TÃO mal assim. Eu concordo que o combate pode ser bastante repetitivo e frustrante e que as dungeons são horríveis (Duncan Factory ainda me assombra nos meus pesadelos), mas honestamente? Desde a primeira vez que joguei, não tive muitos problemas de progressão.

Os inimigos estão fortes demais no começo? Acabe com ratos no porão até chegar a um nível bom. A trilha sonora é tão memorável que foi usada em todos os outros jogos. A história é menos grandiosa, mas criativa e cheia de charme. As mecânicas e controles respondem bem, e Mother é um dos RPGs mais fofos no NES, com gráficos claros e imagens que fazem sentido, um mundo que é natural. Eu me considero o defensor número 1 deste jogo na América porque toda vez que vejo alguém falando sobre ele, são só críticas negativas. Curiosamente, não sou muito fã da versão de GBA de Beginnings e de Earthbound, intitulada Mother 1+ 2, por causa da má compressão dos sprites e também da facilidade adicional no primeiro jogo.

Dando continuidade ao meu artigo de ontem, eu joguei Mother 1 em 2017, pouco depois de zerar Mother 3. Eu havia baixado já o emulador de NES, então peguei uma cópia pelo site Starmen (um ícone da comunidade) e logo comecei a jogar, sendo pego de surpresa como tantos outros com os controles mais simples e as limitações. Mas mesmo assim, o jogo me chamava, eu sentia que não poderia parar. Eu cruzei desertos, batalhei contra olhos de bigode, controlei um tanque enorme e cantei como se minha vida dependesse disso. E, numa tarde chuvosa, sozinho em casa, eu havia terminado a trilogia e, como seus outros irmãos, testemunhei um final poderosíssimo.

Fallin’ Love, And

Depois daquele dia, eu tirei alguns dias para refletir sobre minhas experiências com a trilogia Mother. Refleti sobre como evoluí em dois anos e as decisões que tomei. Ponderei sobre meu futuro e mal sabia eu que o pior ainda estava por vir, mas, ao mesmo tempo… eu tinha encontrado forças. Forças para superar uma relação que estava só me prejudicando. Forças para seguir em frente e, ao lado de um certo jogo que vou apresentar em setembro, me preparar para o pior ano da minha vida.

Earthbound Beginnings não é perfeito, mas também não é um jogo de público limitado. Basta um pouco de inspiração, determinação e fé que qualquer desafio pode ser superado. Isso vale tanto para um jogo tão punitivo quanto este quanto para a vida. Eu recomendo este título fortemente a qualquer um, e todos os tributos que aparecem são belíssimos. Depois de 30 anos, Ninten finalmente saiu do Japão oficialmente e caiu nas graças do mundo, especialmente nas minhas. Ele é um personagem especial e… bom, melhor eu me resguardar até amanhã. Está na hora de dormir.

Revisão: Davi Sousa

Formado em Publicidade e Propaganda na USC e especializado em Marketing Digital, sou Editor de Vídeos também, meu TCC foi sobre a Guerra dos Consoles e evolução da publicidade nos games. Jogo um pouco de tudo e também escrevo. Me descrevo como um artista.
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