Lil’ Guardsman é um jogo que me fez pensar em como dois produtos com um mesmo objetivo principal podem ser tão diferentes devido à forma como seus demais aspectos são trabalhados. Digo isso, pois a comparação com Papers, Please é inevitável para qualquer um que ao menos tenha ouvido falar do título do desenvolvedor independente Lucas Pope.
Por ora, vamos nos concentrar na obra da Hilltop Studios, que sem a menor dúvida consegue se diferenciar do seu colega mais conhecido no mundo dos indies.
Quem diria que trabalho infantil poderia ser tão divertido?
Apesar de se tratar de uma questão que deve ser levada muito a sério, o tema do trabalho infantil é abordado com um eficiente bom humor em Lil’ Guardsman — bom humor que, aliás, é uma das principais características do jogo. Pra deixar as coisas dentro de contexto, vamos à tradicional sinopse.
Assumimos o controle de Lil, uma garotinha de 12 anos cujo pai, Hamish, trabalha na segurança do portão de entrada do reino de Sprawl. Devido a uma “emergência”, este adulto completamente responsável toma a decisão de pedir à filha que cubra seu turno, deixando a pobre criança responsável por decidir quem poderá entrar, de cidadãos comuns a importantes enviados de outras nações.
Felizmente (ou infelizmente), a pequena Lil (ha ha) é tão bem-sucedida como guarda que chama a atenção dos súditos que comandam Sprawl dos bastidores. Estes, por sua vez, dão um jeito de deixar a garota no cargo a longo prazo e, durante um dia de trabalho aparentemente comum, ela é presenteada com um fantástico aparelho que tem o poder de voltar no tempo! Bem conveniente para a função que precisamos desempenhar, não?
Quem não se comportar vai entrar no chicote
Obviamente, essa premissa tem um toque considerável de absurdo, que faz parte do já citado bom humor que é marca da experiência em Lil’ Guardsman. O nonsense se faz presente 100% do tempo, começando pelo fato de uma criança de 12 anos ficar responsável por julgar quem pode entrar ou não em um reino e se estendendo aos diálogos e situações nas quais a protagonista se envolve. Mas é claro que não para por aí.
A maioria das figuras que surgem no portão de Sprawl é tão excêntrica que os poucos cidadãos comuns existentes paradoxalmente se tornam estranhos em meio à bizarrice que parece ser lugar-comum aqui. Essa inversão de valores é parte integral do porquê da comédia do jogo funcionar, ainda que esteja atrelada ao nível de tolerância de cada um a esse tipo de abordagem cômica.
Seguindo para a parte prática da gameplay, temos uma divisão da campanha em estágios, cada um consistindo em um turno de trabalho no portão do reino, com uma quantidade de indivíduos que precisamos entrevistar. Para cada encontro, podemos utilizar até três ações para nos ajudar a decidir se permitiremos ou proibiremos a entrada da pessoa em questão. Ao final de cada dia, recebemos uma recompensa em ouro proporcional ao nível do nosso desempenho.
Além do apetrecho de viagem no tempo, nosso arsenal de ferramentas, herdado do queridíssimo papai Hamish, inclui um detector de metais, um aparelho de raio-x, um decodificador, um perfume da verdade e um chicote — afinal, um pouco de violência sempre vem a calhar. Todos esses dispositivos são abastecidos por cristais rosa, inseridos nos itens correspondentes no começo de cada fase.
Durante as conversas, podemos interagir de algumas maneiras com os entrevistados, concordando, discordando ou os provocando após eles se apresentarem e dizerem a que vieram. Eventualmente, podemos confiscar itens dos cidadãos e vendê-los para obter uma fonte extra de dinheiro. Aliás, é nessa mesma loja que compramos mais cristais rosas (e uma versão amarela de procedência duvidosa que nem sempre funciona) e espaços adicionais para inseri-los nos apetrechos de nossa escolha, permitindo mais usos durante uma fase.
Aqui, entra mais uma dose de dedução competente para avaliar os melhores objetos para recolher, já que certas peças podem se provar úteis no futuro, e algumas valem uma bela quantia, enquanto outras literalmente não valem nada. E, ainda no campo da intuição, é importante ter em mente que algumas das decisões que tomamos têm consequências para a trama, então o ideal é sempre pensar duas vezes antes de optar por determinadas abordagens.
Basta sair do posto pras coisas começarem a desandar
Ao longo da campanha, novas mecânicas vão surgindo para aumentar a complexidade do desafio e dar uma variada na gameplay, como o acréscimo da alavanca para jogar os visitantes no calabouço; um minigame simples para escolher um herói que partirá em uma importante missão para o reino; e até um curioso encontro com um organizador de apostas esportivas (sim, você controla uma garota de 12 anos que faz apostas ilegais).
Sendo bem direto, as novidades que envolvem diretamente o trabalho de guarda se encaixam perfeitamente com o fluxo natural da jogatina, enquanto que as atividades paralelas pouco agregam, passando mais a sensação de serem uma encheção de linguiça do que qualquer outra coisa. E isso nos leva a um outro ponto negativo de Lil’ Guardsman: a repetitividade.
É até meio decepcionante que um jogo relativamente curto como esse não escape de se tornar cansativo, mas, como não existe praticamente nada interessante na campanha além dos interrogatórios em frente ao portão (o que, por um lado, faz total sentido), esse é um destino que eu imagino que aguarde a grande maioria dos jogadores. É o famoso “foi eterno enquanto durou”, o que significa dizer que você vai se divertir à beça e botar o cérebro para trabalhar um bocadinho… até o momento em que seguir o mesmo roteiro fique entediante.
O principal culpado por essa sina está relacionado à mecânica de voltar no tempo. Não é muito difícil de deduzir, mas ela existe para que possamos buscar os melhores desempenhos em cada dia de serviço; porém, em alguns casos é complicadíssimo (pra não dizer “chato”) descobrir o que precisamos fazer para ir de uma nota quase perfeita para os 100%, e pode acreditar quando eu digo que, mais cedo ou mais tarde, você vai se cansar de tanto retornar ao passado e tentar de novo.
Pelo menos podemos contar com a tão fofa quanto esperta Lil para sustentar uma parte considerável dos momentos cômicos da campanha. A pequena e cabeluda guarda substituta não é a protagonista à toa: sua sagacidade para lidar com o que deveria ser o trabalho de um adulto minimamente responsável é digna do mais prestigioso respeito, com direito a muitas tiradas em cidadãos trabalhosos e um jogo de cintura que poucos em Sprawl ou fora dele conseguem igualar. Também ajuda o fato de ela ser uma criança em um mundo de gente grande, o que leva a várias situações inusitadamente engraçadas.
Hora de trancar a guarita e voltar pra casa
Lil’ Guardsman é uma aventura divertida, colorida e repleta de personagens carismáticos e cômicos, em absoluto contraste ao tom completamente sério e à paleta de cores sombrias que compõem a atmosfera de Papers, Please, aludindo à comparação feita no início desta análise. Seja como for, o título da Hilltop Studios é uma sensacional opção recente para quem gosta de bancar o investigador especializado em comportamento humano.
Prós:
- O humor cômico e nonsense é aplicado com total êxito ao longo de toda a campanha, casando perfeitamente com o visual colorido e caricato dos personagens e cenários;
- A parte prática da gameplay, de analisar e entrevistar as pessoas que chegam aos portões do reino, é desafiadora e extremamente divertida;
- A protagonista Lil dá um show de carisma e personalidade à parte.
Contras:
- Não há praticamente nada de valor a se fazer além do trabalho de guarda em si, graças a atividades paralelas com pouquíssimo brilho;
- Mesmo não sendo tão longo, acaba se tornando repetitivo, em grande parte devido à mecânica de voltar no tempo, que rapidamente se torna cansativa.
Lil’ Guardsman — Switch/PC/PS4/PS5/XBO/XSX — Nota: 8.5Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Versus Evil