Discussão

O passado é o futuro que nos resta

Como produções contemporâneas fazem uso do passado para (re)construir suas histórias.



Quando procuramos o que há de comum entre Dead Cells, Slipstream, Sea of Stars, Chained Echoes, algumas coisas poderiam vir à mente, como o fato de todos serem jogos indies ou de todos terem gráficos pixelados. O que também não se pode ignorar é o elemento nostálgico atrelado a todas essas produções.


Todos esses exemplos, em alguma medida, fazem referência a alguma franquia que os antecede: Dead Cells moderniza os antigos Castlevania 2D; Slipstream poderia ser associado ao clássico OutRun; Sea of Stars e Chained Echoes têm familiaridade com Chrono Trigger e mais um monte de outros RPGs que vieram antes. Apesar de toda ressonância, esses jogos continuam sendo contemporâneos. Mas será que podemos investigar o motivo do sucesso de títulos como esses?

Para falar sobre isso, podemos pensar antes sobre a cultura dos remakes/remasters nos jogos. O remake de Resident Evil 2, por exemplo, fez bastante sucesso em 2019. Há mais de 20 anos, o título original foi lançado, em 1998, para algumas plataformas da época, como PS1, GameCube, Nintendo 64 etc. O jogo cumpria com o seu papel de survival horror, mas algumas coisas dificultavam a sua jogabilidade, talvez a principal seja a câmera travada em pontos estratégicos dos ambientes. Mesmo que a visibilidade gerada intensificasse o suspense/medo, ideal para jogos desse tipo, o prejuízo que se colocava à percepção de quem jogava era grande.

Naquele tempo era bom

Ainda assim, naquele momento, apesar de dificultar a jogabilidade, isso não era necessariamente visto como um problema. Com o avanço das tecnologias e do desenvolvimento dos jogos, a câmera travada em locais estratégicos caiu em desuso para esse gênero de jogo, dando lugar à visão dinâmica situada atrás do personagem (apenas para jogos em terceira pessoa). Nesse caso, o elemento da câmera, ao lado da questão gráfica, talvez seja o maior responsável por fazer o jogo original ter ficado “datado”, isto é, quando a experiência nos dias atuais é comprometida por limitações da produção no contexto em que foi produzido.

Essas limitações impedem que produtos culturais antigos sejam desfrutados de modo satisfatório na contemporaneidade, o que abre margem para criação de remakes. Utilizamos precisamente o termo “produtos culturais” em função dessa cultura ir muito além da esfera dos jogos. Basta olharmos para algumas produções contemporâneas de filmes que veremos essa onda de retorno ao passado. 


Uma história que se reconta

Pensando em alguns exemplos, Nada de novo no front é um livro que foi publicado pela primeira vez em 1928, e já teve várias adaptações para o cinema, entre elas temos desde a de 1930 até a mais recente, de 2022. A Fantástica Fábrica de Chocolate é outro filme que foi adaptado mais de uma vez, a primeira em 1971, outra em 2005; já no dia 7 desse mês foi lançado Wonka, um filme que conta a história de origem do protagonista desses filmes anteriores. Neste último caso, não se trata de um remake, mas de uma produção que, de alguma forma, dá continuidade a um universo criado anteriormente. Um último exemplo cinematográfico é o de Top Gun: Ases Indomáveis, o filme lançado em 1986 ganhou uma continuação em 2022, Top Gun: Maverick.

Às vezes, o caminho para entendermos a crescente dessas produções é bem simples: o lucro. Para algumas empresas manterem o lucro com franquias gigantescas, a melhor opção é nunca deixar aquele produto morrer. Star Wars talvez seja o melhor exemplo disso: a todo momento, somos bombardeados com algum conteúdo novo desse gigante da cultura pop. A maioria das vezes são spin-offs, animações, tudo a fim de expandir um pouquinho mais desse universo. Será que é muito cedo para falar em Velozes e Furiosos...?

Remake: um horizonte possível

Voltando aos jogos, a Capcom, que produziu o remake de Resident Evil 2, visualizou um sucesso estrondoso. O jogo foi indicado a vários prêmios e ganhou alguns deles. Era óbvio que não precisavam de outra estratégia: a resposta era produzir mais e mais remakes. O de Resident Evil 3 foi lançado com bem menos tempo de desenvolvimento e teve uma grande parcela de fãs que não se sentiu satisfeita com o apagamento de áreas e conteúdos presentes no jogo clássico de 1999. Por último, o remake de Resident Evil 4 conseguiu repetir o sucesso do primeiro título dessa nova série. Conseguiram reconstruir o jogo clássico trazendo elementos novos que fossem verossímeis para o universo da saga. Além de ter sido muito bem avaliado pela crítica.

Para além do lucro, poderíamos dizer que a produção de um remake e de um remaster são significativamente mais fáceis que a criação de algo do zero. No caso da produção de um remake, os custos continuam sendo incrivelmente altos, a aposta nesse caso não é de um barateamento do valor de desenvolvimento, mas numa diminuição do risco. Vale lembrar que, nesses casos, o roteiro, bem como outros constituintes da produção, já existem, apenas precisam ser adaptados.


Risco sob medida

Nesta perspectiva, o risco está indissociavelmente atrelado à ideia de vender um produto desconhecido pelo público. Essa é uma das principais razões para o selo “Assassin’s Creed” ainda se manter vivo mesmo depois do distanciamento dos jogos recentes em relação à concepção original da franquia. Vender um jogo sob um selo de alguma grande franquia é mais seguro do ponto de vista mercadológico. Vale lembrar que a Capcom também já fez isso com Resident Evil. Inclusive, atualmente, há, nas produções em geral, a noção da existência de arcos, e isso flexibiliza bastante a produção de histórias que não necessariamente têm relações umas com as outras. A Marvel, com seus quadrinhos e filmes, nos mostra isso há anos.

Agora em se tratando de remasters, o custo e o risco são ainda menores, pois normalmente é uma produção feita com vistas a trazer maior facilidade de acesso por meios legais e conseguir lucrar com isso. Metroid Prime é um exemplo de jogo que recebeu remaster para Nintendo Switch e, por conta disso, facilitou o contato de fãs com a vertente FPS da franquia Metroid. Além disso, traz o benefício de preparar o ambiente para o futuro lançamento de Metroid Prime 4. 

Nostalgia, um sentimento ou um produto?

Pensando mais uma vez a respeito de produções cinematográficas que retornam ao passado, podemos citar Stranger Things como um exemplo perfeito para refletir sobre o diálogo que produções contemporâneas estabelecem com vários produtos da chamada indústria cultural.

Em Stranger Things, temos a criação de uma ambientação que se passa durante a década de 1980; isso, por si só, já estabelece um vínculo com diversas produções que marcaram essa geração, algumas referências são mais óbvias, como Os Goonies, ou Ghostbusters. No entanto, o diálogo não está restrito a esses filmes, há uma questão mais ampla relacionada à cultura ocidental americana da época, algo que também vemos em outras produções clássicas, como Clube dos cinco, Curtindo a vida adoidado, De volta para o futuro etc.
 

Essas relações estabelecidas por Stranger Things causam uma sensação de grande familiaridade; estamos habituados a este tipo de história contada desta maneira. A relação com Dungeons & Dragons torna esse universo ainda mais palpável para quem experienciou as mesas de RPG. Mas Stranger Things não é a única obra que volta ao passado para criar esse sentimento nostálgico. Bem menos conhecido, o filme interativo Black Mirror: Bandersnach também estabelece essa ligação com o passado. Também vale mencionar Matrix Ressurections, que não é nada mais que uma homenagem ao Matrix de 1999.

Apesar dessas produções serem atuais, o sentimento que boa parte do público tem ao entrar em contato com elas é de familiaridade, nostalgia, pertencimento. Há uma espécie de “Vale a pena ver de novo” implícito em nosso inconsciente, uma sensação de déjà-vú que se expande para além das obras citadas.

Quando um jogo é uma homenagem

Em relação aos jogos, pensando nessa categoria de produções atuais que vislumbram o passado, Tunic é um ótimo exemplo para observarmos a balança das inovações/referências em diversos aspectos. Na nossa perspectiva, a grande inovação do jogo está no modo de resolução de puzzles, que é, em boa parte, construído em cima da leitura atenta do manual de instruções fornecido pelo próprio jogo. Essa experiência, tão comum para quem vivenciou a época de detonados em revistas, foi adaptada para o jogo e implementada de um modo extremamente singular.


Mas nem só de inovações vive o ser humano, com a bagagem que construímos ao longo de nossas vidas, várias influências acabam sendo captadas quando nos deparamos com algo novo. Mas certamente Andrew Shouldice, principal responsável pelo jogo, não estava preocupado em esconder a sua óbvia referência para construção do personagem. A própria estética já nos direciona ao já bem conhecido Link.


No entanto, o jogo passa longe de ser influenciado somente pela estética. Elementos da jogabilidade e movimentação também fazem menções a jogos da franquia Zelda. Uma referência direta a A Link to the Past é observada na alternância entre o dia e a noite, que é determinante para resolução de puzzles e também para exploração dos ambientes. O combate também guarda relação de proximidade com jogos do gênero Souls Like, exigindo movimentos precisos e bastante timing nos ataques. São várias influências e referências que confluem para a construção de um mundo que, apesar de novo, assim como Stranger Things, soa como um velho conhecido.

Em suma, é evidente que a nostalgia passou a ser vendida em larga escala, essa familiaridade gerada pelas produções contemporâneas evidenciam a tendência: o passado é o futuro que nos resta.

Revisão: Cristiane Amarante

Conhecido como Bebeto entre os amigos, sou recém-formado em Letras e amo literatura brasileira contemporânea. Além disso, tenho uma grande paixão por jogos retro, minha coletânea preferida é a de SNES. Oscilando constantemente entre o antigo e o moderno, vou adquirindo um pouquinho de conhecimento na tentativa de ser menos ignorante.
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