Crônica

Jogar é sentir-se em casa

Uma narrativa sobre como os jogos habitaram minha vida.


Há muito tempo, tive meus primeiros contatos com videogame. Isso aconteceu em um período tão inicial da vida que não guardo memória de absolutamente nada desses momentos, tudo que eu sei é por conta dos relatos de parentes próximos.
 

O motivo pra esse contato tão precoce é o fato de que meu pai havia sido dono de uma locadora de Super Nintendo. Ou seja, vivi o sonho de muita garotada da década de 90 e, ironicamente, não lembro de coisa alguma. Lembrando ou não, a verdade é que minha sorte tinha sido lançada e cabia a mim aproveitar aquela herança familiar: o amor pelos jogos.

A disputa como epicentro da experiência

Na verdade, essa não foi a única herança deixada, isso porque boa parte das jogatinas familiares envolviam um sucesso das locadoras: International Superstar Soccer. Sendo assim, a competitividade acabou vindo no pacote. Eu não precisava ir longe para ver essas rivalidades. Meu pai e meu tio viviam jogando, e com eles aprendi várias desculpas para dar frente à derrota: controle não estar funcionando; juiz privilegiando um time ao invés do outro; cores das camisas dos times dificultando a visibilidade.

Em suma, cresci em meio à disputa, vendo e disputando alguns torneios organizados pelo meu pai com amigos e vizinhos. Infelizmente, isso explica a razão pela qual a maioria das minhas lembranças envolvendo jogos na infância são de choradeiras após ser derrotado. Demorei bastante para aprender a lidar bem com a derrota, mas isso é tema para outro texto.


União familiar

Se com meu pai e meu tio a tônica eram os títulos de futebol, com minha mãe, o interesse era mais variado. Amávamos desde os títulos de aventura/plataforma até os de luta e corrida. Aliás, na minha enganosa lembrança, Top Gear era o nosso preferido, sempre jogávamos juntos, a clássica tela dividida, creio que esse era o meu carinho de mãe preferido.




Com o passar do tempo, a artrite acabou fazendo-a abrir mão do controle. Mas isso nunca a impediu de continuar sendo a minha espectadora mais assídua, estando ao meu lado em vários momentos de conquistas e finalizações, principalmente quando elas envolviam as produções da Disney para o Super Nintendo, como Aladdin e Rei Leão.

Para encerrar esse ciclo de memórias familiares envolvendo os jogos, lembro de um momento bastante singular quando tinha em torno de 6 ou 7 anos. Num dia absolutamente ordinário, eu estava fortemente entretido com Donkey Kong Country 2, quando repentinamente minha vó paterna chegou ao quarto e começou a assistir. Normalmente, ela nunca incentivava que jogássemos, nem eu, nem meu pai e nem meu tio.



Para ela, nunca foi uma questão de idade. O medo um tanto irracional surgia por acreditar que a TV fosse parar de funcionar, então ela sempre repetia algo como "tá bom de jogo, a TV vai pifar". Mas naquele preciso momento ela não me disse isso, me viu transformado em uma cobrinha pulando e catando as bananas enquanto dizia "come a bananinha, Beto", sem dúvidas uma das minhas melhores memórias da infância.

Tempo de conhecer o novo

Chegada a pré-adolescência, o quarto cedeu espaço ao computador que rapidamente teve seus incríveis 80 gigabytes ocupados por vários emuladores e roms. Foi quando tive meu primeiro contato com diversas franquias às quais não tive acesso na infância: Zelda, Mario Party, Star Fox, Pokémon FireRed etc. Era incrível que, em títulos mais complicados, como era o caso de Zelda, pouco ou nada me importava a gameplay, controlar um personagem 3D já era catártico o suficiente.

Quando penso sobre esses jogos, acredito que as memórias não giram em torno especificamente das jogatinas, mas ora da família, ora do momento, ora de quem eu era enquanto eu descobria esse mundo. É impossível não relacionar essas coisas com outros produtos culturais que consumi na época; pensar nos filmes, séries, livros, músicas, enfim, todo um universo que se abria e desenvolvia ao passo que eu me formava enquanto pessoa.

Destrinchando a rede

Outro momento importante foi quando descobri os jogos online. Tenho vívida recordação de um amigo do colégio falando com entusiasmo sobre o Club Penguin. Consigo recordar perfeitamente a ocasião: ambos em chamada pelo Skype, tentando descobrir se efetivamente cada pinguinzinho era uma pessoa real ou apenas um NPC. Foi então que nos conectamos no mesmo servidor e a mágica aconteceu! Conseguimos jogar vários minigames juntos e passear pelo mapa.

Apesar de ser bem infantil, o Club Penguin me acompanhou durante boa parte da pré-adolescência, além de ter me apresentado às maravilhas dos jogos online. Cheguei até mesmo a ter um blog em que postava atualizações sobre o jogo. Na escola, até confeccionava as cartas utilizadas no minigame do dojo ninja.

Por conta disso, reitero que essas lembranças vão muito além de meras recordações sobre games. Quando lembro do Club Penguin, a memória não se situa apenas naquele ambiente restrito do jogo, mas remonta a um momento muito específico da vida, uma infinidade de novidades, o período de natal, a descoberta de uma das minhas bandas preferidas em um canal de TV.

Era apenas o começo: com maior ou menor frequência, os jogos online se tornaram presentes na minha vida. Naquele momento, a internet efervescia com minigames disponibilizados no Orkut, a rede social que precedeu o Facebook. E tínhamos de tudo: Colheita Feliz, Mini Fazenda, Café Mania; dentre eles, o meu preferido: DDTank.


DDtank era um jogo de combate em turno que não tinha absolutamente nada de verdadeiramente novo, mas combinava aspectos de jogos já consagrados. Trazendo elementos dos bem conhecidos Worms e Gunbound, o título tinha uma estética de anime, com personagens cabeçudos. Talvez seu maior atrativo fosse a facilidade, afinal, não precisávamos baixar nada para jogar. Mais uma febre entre meus amigos do colégio.

Seguíamos nesse rumo, saltando de jogo em jogo, todos entusiasmados com as novidades que descobríamos. Adventure Quest World, Ragnarok, Transformice, Point Blank, Counter-Strike 1.6… a lista era extensa e a todo momento se renovava. Já decorridos alguns anos, League of Legends surgiu e nós, que éramos tão nômades, achamos um terreno para nos fixar.


Primeiras expectativas

Bem antes de viver o hype gerado por Cyberpunk 2077, a expectativa gerada pelos trailers iniciais de Counter-Strike: Global Offensive e Pokémon GO já tinha me impactado muito mais. Lembro de dormir e acordar pensando nesses jogos.

Além disso, eu também não entendia muito bem a diferença entre a jogabilidade e os trailers; diante dessa inocência, acabava acreditando que tudo mostrado nos vídeos de apresentação era real e traduziria a nossa experiência final. Certamente, isso amplificava ainda mais a minha ansiedade para o lançamento desses títulos.

Dia de mudança

É certo que os videogames nunca deixaram de ser uma constante na minha vida, mas, para encerrar esse texto carregado de memórias e que já se alonga, concluo voltando mais uma vez para quando tinha 6 anos. A ocasião em questão foi a primeira e única vez em que mudei de casa. Havia uma correria, os móveis espremidos no caminhão, a pressa para colocá-los em casa. Eu ainda era bastante novo, então as coisas mais pesadas que carregava eram apenas cadeiras.

O dia se passou rapidamente, a tarde já caía e a casa simulava qualquer coisa de organização, bem distante do ideal, mas já era um começo. Foi quando aproveitei para me ausentar por alguns instantes do vai-e-vem, cheguei ao meu quarto e verifiquei que o que eu mais gostava já estava ali: o meu Super Nintendo. 


Conectei tudo às pressas, naquele momento a TV ainda estava no chão, botei um jogo qualquer que, lembrando hoje, penso ter sido Mega Man X. Testei por pouco tempo, suficiente para saber que deu tudo certo. Não demorou muito para minha mãe me chamar dizendo que a mudança não tinha terminado, que ainda não era o momento certo para jogar. 

Obediente, larguei o controle, desliguei o videogame e a TV, e finalmente voltei a ajudar. Na minha cabeça, nada mais importava, meus jogos ainda estariam me aguardando quando eu voltasse. Era o que precisava saber, o novo e o desconhecido não assustavam, tive plena consciência: eu estava em casa.

Revisão: Davi Sousa


Conhecido como Bebeto entre os amigos, sou recém-formado em Letras e amo literatura brasileira contemporânea. Além disso, tenho uma grande paixão por jogos retro, minha coletânea preferida é a de SNES. Oscilando constantemente entre o antigo e o moderno, vou adquirindo um pouquinho de conhecimento na tentativa de ser menos ignorante.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.


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