A Science Adventure Series é uma sequência de visual novels de ficção científica produzidas pelo estúdio japonês MAGES, com parceria frequente da Nitroplus e do Chiyomaru Studio. Seus títulos figuram histórias interconectadas que fazem parte de um mesmo universo, cujas temáticas principais envolvem tecnologia, ciência, mistério e investigações.
A mais recente dessas obras a ver a luz do dia é ANONYMOUS;CODE, que chegou em julho de 2022 no Japão e somente agora ganhou uma versão ocidental publicada pela Spike Chunsoft, devidamente conhecida pela franquia Danganronpa e mais recentemente por Master Detective Archives: RAIN CODE.
Como diria o filósofo: só sei que nada sei, e tá tudo bem
Antes de começar a análise em si, acho que cabe um breve (vou tentar) resumo do meu histórico com visual novels. Perdoem o momento palestrinha e continuem comigo, ok?
Pra ser bem sincero, Anonymous;Code é o meu primeiro contato com uma VN mais tradicional. Até então, minhas únicas jornadas com foco na narrativa e quantidades massivas de texto foram os supracitados Rain Code e a trilogia Danganronpa, que, ainda que tenham entre os principais atrativos suas tramas, diálogos e personagens, se afastam o suficiente da parte “novel” do gênero para adentrar outras categorias de games.
Sim, isso significa que não só eu não tenho na bagagem outras VNs “raiz”, como não possuo qualquer conhecimento sobre as entradas prévias da Science Adventure Series; no máximo, posso dizer que conheço Steins;Gate de nome, mas para por aí. Portanto, se a perspectiva de um leigo da franquia é o que você busca, seja muito bem-vindo ou bem-vinda!
Feita a explicação, fiquei muito feliz ao constatar que Anonymous;Code não tem qualquer dificuldade em brilhar por conta própria, como um produto independente de seus antecessores. É claro que os fãs de longa data da franquia terão uma experiência mais completa, identificando referências e conexões com as entradas anteriores, mas o conteúdo apresentado aqui abraça com carinho os leitores de primeira viagem.
Um começo digno de comédia romântica
No futuro de 2037, Pollon Takaoka é um adolescente que vive no bairro de Nakano, Tóquio. Com seu colega Cross Yumikawa, ele integra a Nakano Symphonies, grupo de hackers profissionais dedicado a ajudar clientes em necessidade. O norte da dupla é o forte senso de justiça de Pollon, que odeia ser um hacker e só exerce a profissão para pagar as contas, mas que deseja se tornar famoso como um herói incapaz de ficar parado quando alguém está em apuros.
Durante uma conversa no local de trabalho da Nakano Symphonies, Pollon acaba falando mais do que devia para Wind Maki, um fã do grupo, o que resulta no jovem inconsequente inventando que tem uma namorada e está planejando fugir com ela. Na maior inocência, Wind exige ver os pombinhos consumando a fuga, o que leva nosso protagonista a ter que encontrar no meio da rua uma namorada chamada Momo Aizaki, já que até o nome da garota o paspalho tinha que inventar.
E não é que dá certo? Quando Pollon está prestes a contar a verdade, uma jovem estranhamente vestida surge na sua frente e pede para que ele a acompanhe. Porém, a moça tem segundas intenções, e acaba por levar o relutante hacker rumo a uma jornada tão complicada quanto inacreditável.
O jardineiro é o protagonista, e os hackers somos nozes
Conforme Pollon não demora a descobrir, Momo é o alvo de uma busca incansável que envolve até mesmo a presença de forças militares. Em um momento crucial desta caçada humana, nosso protagonista, movido pelo desespero, realiza uma façanha que deveria ser impossível: ele volta no tempo até pouco antes de a desgraça acontecer e, munido do conhecimento prévio de fatos que já havia visto acontecerem, consegue evitar o pior.
Até aí, parece o típico clichê de viagem no tempo, mas o curioso é a maneira como Pollon retorna ao passado: o rapaz involuntariamente abriu o menu de arquivos salvos do jogo e carregou um arquivo de salvamento automático de uma hora atrás, efetivando o salto temporal!
Temos aqui então o grande diferencial metalinguístico de Anonymous;Code: nós, no papel de jogadores, vamos ajudar o protagonista da história a navegar pelos perigos que surgem em seu caminho.
Em uma divertida quebra de quarta parede, Pollon acredita que seu novo “poder” é fruto de um poderosíssimo hacker que invadiu o equipamento dele e instalou um aplicativo que possibilita as funções de salvar e recarregar seu progresso; o hacker, é claro, é o jogador que acompanha a aventura passivamente, mas claramente nem tanto.
Adentrando um novo tipo de ambiente virtual
Talvez a maior consequência da minha falta de experiência com visual novels majoritariamente concentradas em leitura seja um estranhamento inicial com relação a essa passividade à qual Anonymous;Code nos submete.
Por ter as referências que eu tenho no gênero, demorei a entender que o papel do jogador passa bem longe de ser ativo com o desenrolar da história. Como eu estava, até então, acostumado a tomar as rédeas e literalmente controlar o protagonista para progredir nas campanhas, levou algumas poucas horas para que eu de fato entendesse que esta é uma obra de muitas qualidades, mas não de ação e raciocínio rápido.
Sendo bem direto, os únicos momentos em que precisamos intervir, além de passar os diálogos, é quando Pollon chega a um beco sem saída e o resultado é uma tragédia que ele precisa evitar a qualquer custo; nessas horas, cabe ao jogador perceber o ponto certo para ativar o Hacking Trigger, que permite ao herói de cabelo azul voltar no tempo um tiquinho mais sábio. Graças a essa “correção de curso”, digamos assim, ele consegue ser bem-sucedido e salvar o dia.
Eu poderia dizer que se você não for muito chegado a visual novels desta natureza, Anonymous;Code é facilmente evitável, mas eu não estaria sendo sincero, porque, feitas todas essas considerações sobre a gameplay (ou a ausência dela), o que eu posso dizer é: dê uma chance à história do jogo! Por quê? Segue a leitura, que a resposta está bem aí no horizonte.
Gostar ou não gostar? Eis a questão
A quebra da quarta parede destacada na interação entre o protagonista e o jogador representa um dos atrativos de Anonymous;Code, mas em um jogo cuja campanha dura umas boas 15 horas em média e o máximo que fazemos é sacar os momentos em que a viagem no tempo é necessária, naturalmente a joia da coroa fica por conta da qualidade do enredo. Afinal, a trama de uma visual novel nesses moldes precisa constantemente despertar interesse de quem a está acompanhando; caso contrário, onde estão seus méritos?
É claro que esse é um aspecto extremamente subjetivo. Quando analisamos um game de plataforma ou de ação, por exemplo, a história pode acabar se tornando completamente dispensável e os jogadores não se importarão, desde que a gameplay prática seja satisfatória; neste caso, trata-se de um denominador de qualidade bem objetivo, em que opiniões pessoais têm menos influência.
Aqui, esse certamente não é o que acontece. Se você vai gostar ou não do que Pollon e o resto do elenco de personagens têm a entregar em um universo futurístico nos moldes típicos de um anime, depende muito, entre outros fatores, da sua tolerância a clichês das animações japonesas como a hiperssexualização feminina, o irritante estereótipo do personagem nerd pervertido e a criança superdotada.
Anonymous;Code tem muitos desses clichês e lugares-comuns que incomodam, mas até os melhores animes e VNs apresentam tais problemas, e os contratempos no enredo ficam pequenos em comparação com toda a carga narrativa da campanha. A pluralidade de temas apresentados consegue cativar o espectador cena após cena, ainda que a sobrecarga de informações seja inevitável em alguns momentos.
Depois de tantas reflexões, não julgo quem evitar espelhos por um tempo
Eu poderia estender ainda mais esta análise listando os inúmeros assuntos abordados, e esticar ainda mais a baladeira falando sobre como o jogo lida com cada um deles, mas vou me limitar a alguns dos mais importantes, como religião e fanatismo religioso; conspirações; jogos de poderes e influência política; vida real versus simulação; o avanço da tecnologia e sua relação com a sociedade; profecias; inteligência artificial; realidade virtual; e ética.
Quem se aventurar por Anonymous;Code certamente fará suas próprias reflexões sobre muitas outras temáticas, mas eu quis citar essas em particular porque as considero as mais preponderantes na construção dos personagens, cenários e pontos-chave da trama. Há muito aqui para apreciar e pensar sobre enquanto conferimos aonde Pollon e seus amigos chegarão.
As ideias e opiniões expressadas por meio de um rico e plural elenco de personagens ressoam com força em nossa própria sociedade no mundo real, nos fazendo questionar, por exemplo, para onde estamos caminhando e se esse tipo de futuro é plausível, dado o ponto evolutivo e tecnológico em que nos encontramos.
Uma beleza inacessível a muitos
No aspecto visual, Anonymous;Code faz uso de uma colorida estética futurista, com cenários cheios de detalhes, às vezes até excessivamente poluídos visualmente; tudo isso se reflete nas interfaces de jogo, que de vez em quando ficam um pouco confusas de interpretar.
A animação está excelente, tanto nos diálogos mais cotidianos quanto nos momentos de grande impacto à trama, que lançam mão de recursos como a passagem de cena no formato de uma história em quadrinhos, com um traço que pende muito mais para as obras ocidentais que para os mangás, mas que preserva uma beleza única.
Em relação à quantidade de conteúdo e à já mencionada sobrecarga de informações, destaco a existência positiva da aba de Dicas, que funciona como um glossário com verbetes sobre vários assuntos pertinentes aos temas do jogo.
Na minha análise de Oaken, falei sobre como esse roguelike falha miseravelmente na missão de introduzir o jogador às suas mecânicas e conceitos narrativos, o que inclui uma tentativa própria de glossário, mas na nova entrada da Science Adventure Series, o aprendizado é muito bem-feito, nos incentivando a aprender cada novo termo que aparece para que possamos permanecer a par do que está sendo discutido.
O que não deve ser uma surpresa para ninguém é a ausência do português entre as opções de legenda. Se o seu conhecimento de inglês (ou de japonês, o que imagino que seja improvável) não for muito bom, qualquer possibilidade mínima de compreensão da obra se torna inviável.
Sim, game de ler também é game!
ANONYMOUS;CODE é a mais recente entrada de uma série que já dura 15 anos e conta com seis títulos principais, mas pode ser desfrutada de forma individual sem problema algum. Sua pluralidade de temas magnificamente abordados, seu rico elenco de personagens e a mecânica metalinguística de interação entre o protagonista e o jogador formam um trio que cativam e conseguem manter o interesse até do menos acostumado a visual novels tão focadas exclusivamente na leitura.
Prós:
- Brilha por conta própria, com um conteúdo que abraça com carinho os leitores de primeira viagem da Science Adventure Series;
- Uma divertida e criativa quebra de quarta parede na mecânica de interação metalinguística entre o protagonista e o jogador;
- A pluralidade de temas apresentados consegue cativar o espectador cena após cena e trazer reflexões profundas e instigantes;
- A aba de Dicas é bem-vinda e eficiente, incentivando o jogador a aprender cada novo termo que aparece para que possa permanecer a par do que está sendo discutido;
- Animação excelente tanto nos diálogos cotidianos quanto nos momentos de grande impacto, que usam recursos como a passagem de cena no formato de uma história em quadrinhos mais ocidental que mangá, mas ainda com uma beleza única.
Contras:
- Apesar da excelente qualidade textual, uma ocasional sobrecarga de informações é inevitável;
- A excessiva poluição visual da estética futurística adotada se reflete nas interfaces do jogo, que ficam bastante confusas em alguns momentos;
- Ausência do português entre as opções de legenda, praticamente inviabilizando a experiência de quem não souber inglês.
ANONYMOUS;CODE — Switch/PC/PS4 — Nota: 9.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Thais Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Spike Chunsoft