Os jogos não são simplesmente lineares ou não, ao menos não quando nos damos conta da ambiguidade do conceito de “linearidade”. Assim, como veremos, há níveis e modos de não linearidade. Nesta matéria vamos dissecar esse importante conceito para a atual geração de games, conhecida por, entre outras coisas, promessas de mundos abertos com grande liberdade.
Com níveis queremos dizer que há jogos mais ou menos lineares que outros, se observarmos expressões mais fortes e mais fracas do termo. Por outro lado, com modos queremos dizer que há diferentes aspectos a serem observados quando falamos de não linearidade: um jogo pode ser linear em um sentido (como a ter um roteiro guiado e com final único), mas não linear em outro aspecto (como a ter um mundo aberto).
Níveis de não linearidade
Desde que os jogos surgiram, antes mesmo de serem eletrônicos, eles já eram associados à não linearidade em algum sentido, isso porque jogar parece implicar algum sentido de escolha. Essa escolha pode ser uma mera aposta, pode ser uma opção de diálogo, pode ser um comando para um personagem fazer alguma ação, pode ser literalmente controlá-lo em tempo real ou pode estar em uma elaboração abstrata para uma tática ou solução de um puzzle.
Em todos esses casos há um nível mínimo da não linearidade. Mesmo jogos muito simples como dama ou jogo da velha envolvem escolha; escolher parece estar entre as características primárias do ato de jogar. Há outras características, como analisa Huizinga, em seu livro Homo Ludens, mas a escolha está entre elas. Ocorre que a liberdade de escolha possui diferentes níveis.
Para entendermos o que significa níveis de liberdade de escolha, podemos imaginar um jogo de xadrez e compará-lo ao clássico “pedra, papel e tesoura”, ou jokenpô. Note que nenhum desses jogos possui linha alguma de diálogo, mas presumem escolhas dos jogadores, e é só por isso que é possível a competitividade em suas partidas. Entretanto, o jokenpô só permite uma escolha por partida, e a escolha é limitada a três opções, enquanto que o xadrez possui um leque de opções muito maior e as escolhas possuem consequências para as opções seguintes, ou seja, são cumulativas a cada nova rodada.
Como podemos ver, é possível analisar objetivamente o nível de liberdade de um jogo por seu número de opções simultâneas e por suas repercussões a médio e longo prazo. Quando estamos analisando o primeiro aspecto (opções simultâneas), estamos observando a não linearidade de um ponto de vista horizontal, enquanto que quando estamos analisando o segundo termo (consequências em uma timeline), estamos observando a não linearidade de um ponto de vista vertical.
Como estamos fazendo uma abordagem introdutória, para facilitar a exposição, vamos considerar aqui apenas três níveis discretos de não linearidade. Podemos dizer que o nível básico (N0) refere-se àquele que todo jogo tem em alguma medida, mesmo os mais simples, como Tetris. Como este nível da não linearidade é pressuposto nas mecânicas e no ato de jogar, chamaremos de “não linearidade trivial”.
Por sua vez, o segundo nível (N1) refere-se a jogos que possuem não linearidade pontual para além das mecânicas. Por exemplo: quando você pode optar por escolhas de diálogo no decorrer do roteiro ou quando você pode optar por quests alternativas para avançar no jogo.
Um bom exemplo são os jogos da série Persona. Esses games são repletos de escolhas pontuais de diálogo e ação que levam a sidequests, mas inevitavelmente costumam levar o jogador ao mesmo circuito de dungeons e eventos principais da trama. Esse tipo de design narrativo normalmente é descrito com o que Chris Stone chama de timeline em forma de “colar de pérolas” (string of pearls).
Por fim, o terceiro nível (N2) é dedicado a jogos cujas escolhas não apenas funcionam de maneira pontual na aventura, mas elas se acumulam, levando a ramos totalmente diferentes da história, eventualmente perda de personagens e sequências distintas de quests principais. No aspecto narrativo, um exemplo simples desse fenômeno pode ser observado em casos de jogos com timeline ramificada em ramos de ramos, como Tactics Ogre: Reborn. Nesses casos, há decisões irreversíveis que limitam as próximas opções que você pode tomar para o rumo da história.
Modos de não linearidade
Contudo, a não linearidade não se vê simplesmente em níveis ou graus de complexidade e interação, mas também pode ser observada em diferentes aspectos do game design. Os principais aspectos que precisamos considerar para além das mecânicas em si são a narrativa e o level design. A narrativa está ligada à capacidade dos jogos de contar histórias por meio de palavras e atos; o level design, à capacidade dos games de arquitetar um mundo e permitir exploração com base nas mecânicas.
Essa divisão frequentemente cria uma tensão entre o que Henry Jenkins chama de “a tensão entre performance (ou gameplay) e exposição (ou história)”. Quando um jogo é linear em um desses aspectos, mas não linear no outro, dizemos que possui uma não linearidade assimétrica. Por exemplo: The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom possui um roteiro que pode ser traçado de forma linear, mas o level design é aberto, projetado para uma exploração altamente não linear.
Inversamente, quando um jogo é não linear em ambos os aspectos podemos dizer que possui não linearidade simétrica. Um exemplo é a série Fallout. Os jogos dessa série possuem geralmente não apenas roteiros ramificados, mas também um mundo aberto a uma razoavelmente livre exploração.
Mas também precisamos considerar ao menos um outro aspecto: o fatalismo. Alguns jogos não lineares, apesar de terem escolhas (pontuais ou cumulativas) levam inevitavelmente a um mesmo final; isso é o que chamamos de fatalismo. Bons exemplos são os jogos da série Octopath Traveler. Neles, você pode começar com personagens diferentes, fazer escolhas com repercussões a médio prazo e montar grupos distintos, mas inevitavelmente o jogador chegará a um núcleo comum de eventos e a um único final (e talvez ao true ending depois).
Por outro lado, temos jogos não lineares não fatalistas, os quais podem ser de dois tipos: (i) com muitos finais; (ii) sem final. No primeiro caso, podemos pegar de exemplo principalmente Visual Novels, como Steins Gate, e RPGs como os da série Chrono. Esses são exemplos especialmente claros por envolverem viagem no tempo, mas não necessariamente isso é um requisito para muitos finais. Enquanto que títulos sem final costumam ser jogos com design essencialmente aberto ou procedural. Minecraft e Hades são exemplos. Eles possuem um certo “final”, porém o jogo continua após esse fim, havendo uma premissa narrativa que o sustente para além do término da main quest.
Em resumo, temos os seguintes aspectos de design não linear:
Simetrismo:
- não linearidade assimétrica (ou só em narrativa ou só em level design);
- não linearidade simétrica (narrativa + level design).
Fatalismo:
- não linearidade fatalista (final determinado);
- não linearidade não fatalista com pluralismo de finais;
- não linearidade não fatalista com ausência de final verdadeiro.
Como identificar um jogo não linear
Em linhas gerais, o que então é um jogo não linear? Como podemos identificar um jogo não linear? Bem, basicamente precisamos considerar pelo menos três camadas de análise. Primeiramente, se estamos comparando com outras mídias, qualquer jogo é não linear em um nível básico (N0). Em segundo lugar, se estamos comparando com outros jogos, então podemos dizer que um jogo não linear (em sentido não trivial) é um jogo com não linearidade de nível N1 ou superior. Por fim, podemos nos perguntar se a não linearidade do jogo é parcial ou total. Caso a não linearidade seja assimétrica ou fatalista, é parcial; caso seja simétrica e não fatalista, é total.
Revisão: Vitor Tibério