Na primeira parte, vimos que a lore cíclica de The Legend of Zelda foi construída retroativamente. Não houve um superplano de várias fases em que tudo finalmente se encaixaria após décadas de mistérios, ganchos e cenas pós-créditos. Temos na tríade Zelda-Link-Ganondorf um ótimo exemplo desse processo criativo que evoluiu ao longo dos jogos. Veremos alguns pontos importantes adiante.
Quem conta um conto…
The Legend of Zelda (NES)
No começo, havia Ganon, o vilão do jogo original de 1986. O Rei da Escuridão era o portador da Triforce do Poder e tinha forma monstruosa com traços suínos. Zelda fragmentou a Triforce da Sabedoria e escondeu os pedaços na esperança de que o Herói os reuniria para usar o artefato contra o inimigo.
Aqui já vemos o caráter determinado de Zelda. Não sendo uma guerreira, ela depende de Link para lutar contra Ganon e salvá-la, mas resistiu ao rei maligno escondendo o triângulo sagrado para preparar o caminho do Herói. Em vários outros títulos vemos Zelda como figura de resistência essencial para a história, como em Ocarina of Time, The Wind Waker, Twilight Princess e, principalmente, Breath of the Wild, mantendo o reino com sua mágica da Sabedoria e provendo o campeão com flechas de luz.
Zelda II: The Adventure of Link (NES)
O segundo game, de 1988, deixa explícito no título que foi desenvolvido como uma continuação direta, um formato que foi imediatamente abandonado em todas as sequências da série.
É nesse jogo que o símbolo da Triforce manifesta-se na mão de Link, revelando que ele é o escolhido pelo triângulo da Coragem. Essa força vem da deusa Farore, uma divindade envolta por uma aura verde, a mesma cor que marca as vestes de sua linhagem de Heróis escolhidos. É nesse jogo que Link enfrenta sua própria Sombra do Herói pela primeira vez, um nêmesis sombrio que voltaria a atormentá-lo em outras vidas.
A Link to the Past (SNES)
O terceiro jogo, de 1991, trouxe como novidade a menção à forma humana do Rei Demônio: ele foi um ladrão chamado Ganondorf, que invadiu a Terra Sagrada para roubar a Triforce. Foi lá que sua forma tornou-se monstruosa, com o nome Ganon, como um reflexo do seu coração sombrio, ainda mais distorcido pela força transbordante da Triforce do Poder.
Ocarina of TIme (N64/3DS)
O jogo que levou a saga ao 3D em 1998 e ainda hoje mora no coração de muita gente deu maior participação a Ganondorf e o desenvolveu como vilão. Sua origem é na tribo Gerudo, um povo de mulheres em que, diz a lenda, só nasce um homem a cada século, devendo se tornar o líder do grupo. Foi nesse jogo que vimos a forma humana do vilão pela primeira vez e o momento em que ele perde o controle da Triforce do Poder e encarna o demônio Ganon.
Desfazendo o passado para refazer o futuro
Como eu disse na parte anterior, Ocarina of Time dividiu a cronologia em três linhas do tempo:
- O Herói é derrotado por Ganondorf, levando a eras de trevas.
- O Herói permanece adulto, Ganondorf é aprisionado no Reino do Mal e ecoa a maldição de Demise ao jurar voltar por seu ódio:
"Maldita Zelda! Malditos sábios! Maldito Link! Um dia este selo será quebrado e eu exterminarei seus descendentes! Enquanto a Triforce do Poder estiver em minha mão!"
- Por último, há a linha do tempo retratada no final do jogo: a princesa Zelda usa a Ocarina do Tempo para fazer Link retornar aos anos de sua infância e viver como se tudo aquilo não tivesse acontecido. No entanto, o pequeno Link lembra do que viveu e volta ao castelo de Hyrule para reencontrar Zelda. Aqui, o jogo acaba e fica um gancho que seria retomado muitos anos depois, como veremos em seguida.
O prisioneiro do crepúsculo
Twilight Princess (Multi), de 2006, foi o último grande título a colocar os três portadores da Triforce cara a cara. Com tom mais sombrio e cores menos brilhantes, Twilight Princess marcou um ponto de virada nas conexões com títulos anteriores por trazer um personagem chamado Sombra do Herói (Hero’s Shade), um stalfos sobre quem se diz ser, na verdade, o Herói do Tempo. Amargurado por não ter tido a oportunidade de passar suas técnicas de luta para um aprendiz, ele as ensina a Link para ajudá-lo a superar o nêmesis de ambos e restaurar Hyrule.
Nesse jogo, Ganondorf é um antigo rebelde que foi aprisionado pela família real de Hyrule para ser executado, mas a sentença falhou devido à proteção da Triforce do Poder. A solução foi bani-lo para o Reino do Crepúsculo, de onde consegue escapar para assolar Hyrule mais uma vez, na época em que Twilight Princess se passa.
Cinco anos depois do jogo, Hyrule Historia trouxe mais detalhes que confirmaram as teorias: o Herói do Tempo e Ganondorf são os mesmos indivíduos de Ocarina of Time. Sabe o reencontro entre as crianças Link e Zelda que mencionei alguns parágrafos acima? O gancho explicado no livro diz que o menino retornou para contar à princesa o mal que afligiria o reino pela mão de Ganondorf. Ela providenciou que o rebelde Gerudo fosse preso para evitar todos os futuros acontecimentos trágicos. Banido para o Crepúsculo, Ganondorf jurou voltar e vingar-se do reino, da princesa e do Herói, mantendo a roda do destino girando ao redor dos três.
Ao ser mais uma vez derrotado pela Master Sword de Link e as flechas de luz de Zelda, o imponente rei da escuridão renova o juramento maldito que fez em Ocarina of Time:
“Não pense que isso acaba aqui. A história de luz e sombra será escrita com sangue.”
A dinâmica do trio escolhido é muito bem desenvolvida no mangá de Twilight Princess, criado por Akira Himekawa. Ainda inédito no Brasil, é fácil obter a edição norte americana da editora Viz. Terminei de lê-lo recentemente e em breve prepararei uma resenha desse que é o maior e melhor mangá de Zelda. Himekawa aproveitou os detalhes de Hyrule Historia para encenar momentos que aprofundam os personagens além de qualquer um dos jogos, mas isso ficará para um próximo artigo.
O Herói do Vento
Antes de finalizarmos, devemos relembrar mais um embate entre os três destinados. Em uma linha temporal diferente, The Wind Waker (GC/WII U), de 2002, fala do Gerudo raptando jovens em busca da reencarnação de Zelda para obter a Triforce da Sabedoria. Existe aqui também uma conexão com Ocarina of Time, uma vez que Link deve procurar os fragmentos da Triforce da Coragem, que foi usada pelo antigo Herói do Tempo, como é chamado o protagonista do clássico do Nintendo 64.
Esse Ganondorf é diferente de antes e permanece poderoso como humano, sem se transformar em Ganon na batalha final. Ele não parece carregado do ódio mortal da maldição de Demise, chegando a dizer que poupará a vida do rapaz de verde, pois sua obsessão real é conquistar Hyrule de uma vez por todas e romper o vínculo que o une aos outros escolhidos pela Triforce.
A aventura de Toon-Link coloca o antigo ladrão muito perto de alcançar o fim do ciclo ao derrotar seus oponentes e formar o artefato sagrado completo para si, mas é impedido de concluir seu desejo, pois é petrificado pela Master Sword do herói e pelas flechas da princesa. Juntos, eles vencem uma vez mais, em uma incrível boss fight em meio a paredes de água que se fecham para inundar toda a terra.
O fim é o começo?
Eu disse na primeira parte que a linha temporal “termina em Breath of the Wild” porque foi assim que o jogo foi oficialmente encaixado na cronologia: o fim único para o qual as linhas convergem. No entanto, derrotar Dark Beast Ganon não era o final verdadeiro e a saga continua em Tears of the Kingdom.
É o título da série que mais configura continuação direta de um predecessor, seguindo o mesmo Link e a mesma Zelda pelo mesmo reino de Hyrule. Portanto, se a continuação de BotW seria o verdadeiro ponto final da cronologia, ela precisaria fechar o ponto onde tudo começou: a maldição de Demise, que colocou Ganondorf, Zelda e Link em um conflito que atravessa as eras.
O ressurgimento do ladrão era necessário ao novo jogo, talvez inevitável, e também aponta para o fim. Não, não o fim da série, é claro, mas do ciclo temporal. A logo de TotK contém um duplo ouroboros: ao invés de uma serpente que come a própria cauda, há duas devorando uma à da outra (Zelda e Link vs Ganondorf?), em estado de perpétua tensão em que nenhuma delas pode ceder.
Será realmente o fim? Aonde a Nintendo levará a série com seu método de criação retroativa? Ficará livre para reinterpretar ainda mais a essência de Zelda? Ela sempre teve essa liberdade e fez bastante uso dela, mas talvez, com a sensação do dever cumprido ao encerrar o ciclo, a Big N veja que o horizonte guarda novos pontos de partida para as lendas da monarca de Hyrule e do seu campeão.
Ainda sem Tears of the Kingdom em mãos, não tenho como descobrir minhas respostas para algumas dessas perguntas, mas, com o jogo já lançado desde o dia 12, cada um pode desbravar Hyrule por terra e céu em busca de pistas para sua própria interpretação.
Revisão: Cristiane Amarante