A mudança do estilo de direção musical na série The Legend of Zelda

Entenda como e por que as músicas em Tears of the Kingdom e Breath of the Wild estão se tornando mais incidentais, imersivas e expressivas.

em 27/05/2023

Muitas franquias da Nintendo são fortemente lembradas por suas músicas. A identidade musical em algumas delas chega a ser tão importante quanto à marca visual, e o cuidado e polimento colocado em sua produção é uma das razões para o sucesso. Entre essas, talvez a IP que mais se destaca seja The Legend of Zelda.


As aventuras de Link desde o NES não somente possuem épicas peças orquestrais, ritmos marcantes e melodias memoráveis, mas também numerosas peças usadas como efeitos sonoros e até mesmo instrumentos musicais que recorrentemente são componentes importantes para suas histórias. Hoje vamos observar esses aspectos musicais em The Legend of Zelda e analisar como e por que o estilo de direção musical de seus últimos títulos tem mudado.

Músicas incidentais em The Legend of Zelda

Músicas incidentais são músicas utilizadas como “função acessória” ou “ornamento” em um jogo, filme ou outros tipos de mídia. Uma marca tradicional em várias IPs da Nintendo é utilizar músicas desse jeito como efeitos sonoros. Lembre-se do som de quando Mario cresce ao comer um cogumelo ou de quando você pega um item com Link. The Legend of Zelda e Super Mario Bros. são exemplos de séries da Big N que possuem melodias muito icônicas sendo utilizadas como efeitos desse modo desde a era 8-bits.

As várias “musiquinhas” desse tipo inicialmente se resumiam a uma única linha melódica executada rapidamente (algo em torno de cinco segundos). Essas peças ganharam algumas camadas de edição e timbres novos nos títulos posteriores, mas continuam até hoje bem minimalistas, igualmente breves e com o tema idêntico àquele que podíamos ouvir na década de 1980. Isso também se aplica aos últimos lançamentos da série no Switch.


Inicialmente, essas composições eram feitas com a função de passar um estímulo de tensão, curiosidade ou alívio. Isso tem a ver com o que em teoria musical chamamos de Funções Harmônicas.

Em algumas construções melódicas (como quando ganhamos um coração extra para Link) predomina a função tônica, o que provoca uma sensação de estabilidade; em outras construções, predomina a função dominante, que, ao contrário, incita tensão e instabilidade no ouvinte (como quando estamos com pouco coração de vida ou quando morremos); e há vezes em que predomina a função subdominante, a qual sugere relaxamento e uma estabilidade parcial — muitas vezes usada em momentos relacionados a segredos e curiosidades.

Com o tempo, essas melodias ganharam também uma função nostálgica para os fãs da série. Além disso, e por fim, tornaram-se o que chamamos em semiótica de “índices”, ou seja, signos que sugerem algo específico, e não apenas um sentimento. Por exemplo, ao ouvirmos em uma dungeon a clássica musiquinha de quando desbloqueamos uma passagem, não apenas temos uma sensação engajante, mas a tomamos como um indício de que uma porta ou outra coisa foi desbloqueada, mesmo que não a estejamos vendo.


É interessante notar como todas essas funções se acumulam nos jogos mais recentes da série The Legend of Zelda. Porém, duas coisas novas devem ser notadas. A primeira delas é que quando essas “músicas indiciárias” tocam, agora a câmera é imediatamente direcionada para o baú, porta ou outra coisa relacionada, para garantir que mesmo novatos na série saibam facilmente do que se trata e façam a associação desejada.

E a segunda mudança é direcionada aos fãs. Algumas vezes vemos novos arranjos de melodias conhecidas sutilmente diferentes, brincando com a tradição ao mesmo tempo que sugerindo um novo sentimento. Um exemplo está no começo de Tears of the Kingdom, quando pegamos a espada quebrada do jogo anterior.

Nesse momento, nós ouvimos a música de quando pegamos um item novo, mas nesta parte a melodia está diferente, ela tem uma aura de mistério em seu ritmo e timbre, e não termina com função tônica (como na versão padrão), provocando curiosidade e incerteza. Confira no trecho de vídeo abaixo essa sonoridade ao final e como a transição in-game para cutscene aproveita o silêncio.


Contudo, as músicas incidentais não se resumem à função de efeito sonoro. Na verdade, o uso mais comum delas em jogos e filmes está em “música de fundo”, ou background music, o que não é exatamente a mesma coisa de “música ambiente” (ambient music). A série The Legend of Zelda é também muito lembrada por seus temas icônicos de músicas de fundo que tradicionalmente tocam em loop quando exploramos o mundo exterior ou seus interiores, em vilarejos, templos e dungeons.

Grande parte desse legado musical icônico vem de Koji Kondo, e é utilizado até hoje em novos arranjos. Contudo, desde Breath of the Wild a série tem optado por evitar música de fundo na maior parte do jogo e substituí-la por música ambiente, o que tem a ver com seu empenho em aumentar a imersão em um mundo aberto e natural.

Koji Kondo (compositor) e Eiji Aonuma (diretor/produtor)

A imersão musical em Breath of the Wild e Tears of the Kingdom

Assim como Shigeru Miyamoto passou as rédeas da produção da série para Eiji Aonuma, também Koji Kondo passou a batuta para outros compositores darem sequência ao seu legado musical. Em meu texto recente sobre mudanças de level design após Breath of the Wild, mostrei como Aonuma está levando a série para uma nova era, e isso também vem acompanhado de uma reforma no estilo de direção de música e som.

As músicas de fundo ainda estão presentes, sobretudo em momentos-chave no jogo, como quando estamos em cidades ou em batalhas, principalmente em lutas contra chefes. Nessas ocasiões, composições específicas em loop garantem nostalgia e estabilidade em vilas ou maior engajamento emocional em combate. Para isso, contamos principalmente com trabalhos de Hajime Wakai, o qual também foi compositor em The Wind Waker e Skyward Sword, dos jogos em que Aonuma foi um membro-chave como diretor e produtor.


Por outro lado, Aonuma e Hidemaro Fujibayashi (diretor dos dois últimos The Legend of Zelda) trouxeram dois novos compositores que causaram uma pequena revolução na experiência musical da franquia: Yasuaki Iwata e Manaka Kataoka. Esses nomes são principalmente conhecidos por músicas mais relaxantes, interativas e sutis. Além de Breath of the Wild, ambos trabalharam em Animal Crossing: New Horizons, e mais recentemente no indie Blanc.

Como Breath of the Wild veio com uma proposta ambiciosa de mundo aberto em que o jogador possui uma experiência íntima com a natureza em uma exploração livre do começo ao fim, Aonuma e Fujibayashi pensaram em reformular o estilo de direção de música e de som para esse fim. Essa mudança já se vê pela maior riqueza de efeitos sonoros para o vento, a água, o fogo, os passos e muitas outras coisas.


Nesse contexto, a música, agora melodicamente menos marcante, tornou-se mais sutil, esparsa e minimalista para que o jogador não enjoe dela durante seções longas de exploração no mundo aberto. Também, isso garante que o jogador preste mais atenção na crocância dos efeitos sonoros e se sinta mais imerso na natureza do mundo ficcional.

Nos jogos anteriores da série, temos quase sempre alguma música tocando ao fundo, “fora da ficção” e repetidamente, lembrando o jogador de que está em um videogame. Por outro lado, em Breath of the Wild e Tears of the Kingdom nós temos uma experiência ficcional imersiva em que as músicas são geralmente integradas ao ambiente, e nos poucos momentos em que ouvimos uma melodia marcada, geralmente ela é tocada por um personagem ficcional dentro do próprio mundo, como Kass com seu acordeão.

Caso tenha interesse, você pode ver mais detalhes da diferença entre música de fundo e música ambiente em Breath of the Wild em meu texto de 2021 sobre esse tema. O mesmo que comentei por lá se aplica a Tears of the Kingdom, com a diferença de que esse último lançamento possui uma presença musical mais forte. Ele é menos minimalista e contemplativo que Breath of the Wild, mas ainda está longe da experiência musical tradicional da série.

A nova expressão musical durante a exploração em mundo aberto

Por fim, mas não menos importante, temos a questão da expressão musical, ou seja, a parte da dinâmica e do andamento. Essa é minha parte favorita da nova direção musical de The Legend of Zelda. A “dinâmica” de uma música tem a ver com suas alterações de intensidade.

Uma mesma melodia pode ser executada de forma mais forte ou mais fraca, por exemplo. Enquanto que o andamento tem a ver com como uma melodia pode ser executada de forma mais rápida, mais lentamente ou acelerando e desacelerando. Por fim, a expressão musical também se refere a como as notas são tocadas; elas podem ser tocadas de forma bem ligada ou de forma “saltitada” (com pizzicato em violino, por exemplo), entre outras possibilidades.


Tradicionalmente em The Legend of Zelda, nós ouvíamos músicas de fundo em um estilo padronizado em loop, com raras variações de expressão, como por exemplo efeito de abafamento ao estarmos submersos. Porém mesmo com música de fundo a série brincava com a interação do jogador. Em The Legend of Zelda: Spirit Tracks, por exemplo, enquanto subíamos uma torre, a música ficava progressivamente mais intensa, aparecendo novos instrumentos. Curiosamente, Kataoka (a compositora que há pouco mencionei de Breath of the Wild) também trabalhou nesse jogo.

Contudo, agora temos uma riqueza muito maior de dinamismo musical na série. Quando corremos ou andamos a cavalo com Link, a melodia acelera; quando entramos em batalha, automaticamente começa uma música de fundo que se sobrepõe à música ambiente; e quando ouvimos alguém tocando um instrumento, a música possui maior espacialidade, de modo que possamos ter noção da distância e da direção do som.

A dinâmica da nova direção musical tem a ver também com a proposta de mundo aberto que falávamos no tópico anterior. O aproveitamento do silêncio e da forma orgânica como as diferentes camadas de sons se sobrepõem e/ou se alternam (efeitos sonoros, música ambiente e música de fundo) trazem maior imersão com a natureza e maior integração com o mundo ficcional.


Por todas essas mudanças, é compreensível que os fãs estranhem as mudanças e até mesmo sintam falta de peças mais marcantes durante sua aventura. Contudo, a nostalgia e os tã-nã-nã-nãs ainda estão lá para nos sentirmos em The Legend of Zelda, mas agora mais do que nunca a sonoplastia coloca-nos na pele de Link enquanto desbrava o mundo em vez de nos fazer sentir apenas como alguém que o controla do outro lado da tela.

Revisão: Vitor Tibério 


Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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