Construir uma sequência em qualquer mídia de entretenimento não é uma tarefa fácil. O criador deve seguir alguns mandamentos para garantir que ela contenha o mesmo charme e identidade do seu antecessor, ao mesmo tempo que expande o conceito e se justifica como entidade própria. A situação fica ainda mais árdua quando a obra original é icônica e importante — e este é o caso que The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom estava destinado a enfrentar desde seu anúncio em 2019.
O novo jogo de Zelda é uma sequência direta de Breath of the Wild, um dos maiores sucessos do Nintendo Switch e da própria franquia, e já fisgou os donos do console, tendo vendido 10 milhões de unidades em apenas três dias após seu lançamento. Por isso, discutiremos hoje se Tears of the Kingdom conseguiu se justificar como uma sequência válida e, principalmente, como um bom jogo (pequeno spoiler: ele conseguiu).
O retorno a Hyrule
Embora Breath of the Wild tenha sido muito aclamado e se transformado em um dos títulos com mais impacto nos últimos anos, resultando em diversas influências pela indústria, o jogo ainda tinha muito espaço para crescer. Seu foco na exploração intrínseca, conquistando a curiosidade do jogador por meio da construção de um mundo com uma geografia formada por triângulos e pontos de interesse, é o que viciou jogadores por horas a fio em Hyrule. Tears of the Kingdom pega essa filosofia para si, enquanto tenta expandir e polir as arestas deixadas por Breath of the Wild.
Desde os primeiros trailers, víamos Link caindo do céu ao redor de diversas ilhas e terrenos celestes, sugerindo uma maior verticalidade do mundo. Em minhas jogatinas de Breath of the Wild, uma das minhas habilidades preferidas dos campeões era a Revali’s Gale, não só por me sentir um deus dos ventos, mas porque o impulso vertical me fazia conseguir olhar para mais locais de interesse, mais picos de montanhas, mais Shrines, mais irregularidades, etc.
A habilidade, infelizmente, não voltou, mas isso porque Hyrule parece que tomou um sopro de vento. A verticalidade com a existência das ilhas celestes — e também as profundezas — provoca um sentimento ainda maior de curiosidade no jogador, principalmente com as novas opções de navegação, como os impulsos verticais nas torres, o que pode ativar o FOMO de muitas pessoas e viciá-las em horas e horas de gameplay.
Esse tipo de expansão do mapa pelo eixo Y evitou que Tears of the Kingdom caísse na tendência de jogos em mundo aberto de fazerem regiões maiores em área por metro quadrado, muitas vezes pensada até como estratégia de marketing (aquilo de “maior, melhor”). O título, no entanto, ainda tem uma vantagem em utilizar todo o terreno de Hyrule de Breath of the Wild como base da nova aventura.
A reutilização, aliás, era um dos meus maiores pontos de preocupação – era fácil o jogo acabar caindo no “mais do mesmo”, de causar uma sensação de repetição e de falta de identidade própria, mesmo com as expansões verticais. Para evitar que isso acontecesse, o time de desenvolvimento também trouxe novas habilidades ao arsenal de Link e mudanças no loop do jogo, como forma de aproveitar ainda mais as modificações de mapa.
A trama
A aventura em Tears of the Kingdom começa com Link e Zelda realizando uma exploração subterrânea alguns anos após a derrota da Calamidade. Ambos investigam ruínas abaixo do Castelo de Hyrule devido ao surgimento de doenças em habitantes próximos do local, o que eventualmente leva os dois a descobrirem mais informações sobre os Zonai, uma raça extinta de seres descendentes de deuses dos céus.
O mote da trama ocorre quando os protagonistas encontram o esqueleto de Ganondorf e o veem sendo libertado de seu aprisionamento, causando o sumiço de Zelda, danos severos ao braço de Link e à Master Sword, além de mudanças geográficas por Hyrule. É dito que o Demon King participou do que foi conhecido como Imprisoning War, uma guerra no passado envolvendo o primeiro reinado de Hyrule e o próprio vilão.
Link acorda após os acontecimentos do início sem muita direção e entendimento do que está acontecendo, enquanto é guiado pelo espírito do Rei Rauru, um Zonai que foi o primeiro rei de Hyrule. Nisso, temos a sequência de tutorial que segue uma série de desafios dentro de um espaço condensado, desta vez na ilha celeste de Great Sky Island, enquanto Link recebe suas novas habilidades. Seu objetivo final é retornar a Hyrule, impedir Ganondorf e desvendar o paradeiro de Zelda.
A história, embora nova, contém muitos elementos narrativos que estavam presentes em Breath of the Wild. As similaridades vão de desvendar os acontecimentos pouco a pouco de forma não linear por meio das memórias à necessidade de se aliar a personagens influentes das raças mais notórias do jogo enquanto os ajuda a superar as dificuldades de seus respectivos vilarejos.
Um dos cernes de Zelda sempre foi a repetição, de como as mesmas histórias ocorrem de novo de tempos em tempos como um ciclo, mas com algumas diferenças entre si. Tomando isso em consideração, não é muito inesperada as diversas similaridades estruturais com os acontecimentos de Breath of the Wild, mas a história de Tears of the Kingdom brilha nos momentos de surpresa, que divergem do esperado e nas pequenas interações com o mundo — que está mais vivo e repleto de side quests mais elaboradas.
A presença de um vilão mais humano como Ganondorf, por exemplo, amplifica o impacto das cenas, principalmente considerando sua boa construção em design e boa dublagem. Quanto às menores interações, o benefício da sequência é de trazer uma curiosidade do jogador em visualizar o impacto das ações do jogo anterior por Hyrule: dos reconhecimentos dos Zora a até mesmo toda Tarrey Town. Embora isso não esteja totalmente ligado à história principal, é outro elemento que ajuda a narrativa a brilhar de forma mais singular.
Entretanto, justamente por ter gostado muito de revisitar lugares e personagens a fim de notar a influência dos acontecimentos do jogo anterior, confesso que Tears poderia ter explorado um pouco mais disso. Em Breath of the Wild, tínhamos muita influência de grandes construções, como as Sheikah Towers e até mesmo as Divine Beasts, mas tudo isso desapareceu e não temos muitas explicações de seus paradeiros — o que temos nesta sequência são apenas suposições de que os artefatos tenham sido destruídos e reconstruídos nas novas Skyview Towers. É notável que poucos anos se passaram na linha do tempo desde os acontecimentos do antecessor, portanto seria razoável esperar que houvéssemos ao menos citações ou diálogos de NPCs nos vilarejos que foram altamente afetados, por exemplo, pelas Divine Beasts.
Habilidades e seu efeito na exploração
A história, embora um elemento interessante e importante, não era o que tornava Breath of the Wild grandioso. A relação entre o design do mundo aberto e as opções de exploração era o verdadeiro cerne da aventura e Tears of the Kingdom traz isso de volta com suas próprias particularidades.
No longo tutorial pela Great Sky Island, nós ganhamos acesso a quase todo o arsenal de novas habilidades que Link utilizará durante sua aventura: Recall, Ultrahand, Fuse e Ascend. Cada uma delas consegue gerar o impacto necessário, seja por meio da exploração ou até mesmo em combate, contendo uma grande versatilidade que nos faz encarar as habilidades de Breath of the Wild como situacionais.
Ascend nos ajuda a movimentar de forma mais conveniente pelo mapa, nos dando a possibilidade de atravessar um teto verticalmente, caso haja um chão a pisar acima. Já Recall nos permite manipular determinados objetos fazendo-os voltar no tempo e repetir sua trajetória de movimentação.
Fuse e Ultrahand, no entanto, são as habilidades que realmente definem o novo ritmo do jogo. Com Fuse, podemos fundir qualquer material com suas armas, escudos ou flechas, o que não são só expande as possibilidades de termos de arsenal, como também ajuda a remediar em um ponto muito criticado por alguns em Breath of the Wild, a durabilidade das armas, pois, ao fundir dois objetos em um novo armamento, sua durabilidade pode ser estendida.
Ultrahand, por outro lado, funciona quase como um Fuse para objetos do cenário. Ao ser utilizada, podemos juntar objetos e criar os mais diversos aparatos possíveis, de locomotivas balões a pontes enormes feitas de troncos de árvores ou das junções mais estranhas possíveis.
A inclusão dessas duas habilidades me remeteu aos vídeos virais de jogadores ultrapassando desafios de Breath of the Wild de formas inesperadas, sempre seguidos de comentários sobre como, mesmo após anos desde seu lançamento, o jogo ainda conseguia ter novos segredos a serem revelados. O time de desenvolvimento parece ter olhado com cuidado para isso e incentivou ainda mais os jogadores a modificar o mundo à sua volta para resolver puzzles, lidar com inimigos ou até mesmo navegar por Hyrule de formas distintas.
Com esse foco em construção, Tears of the Kingdom acaba tendo um arsenal muito grande de itens. A todo momento encontramos algo novo e somos instigados a fundir materiais com alguma arma, das importantes flechas de bomba a até mesmo combinações únicas, como um escudo com um foguete.
Levando isso em conta, boa parte do jogo requer a navegação pelo menu em fileira com os diversos itens para fusão, que vai ficando cada vez mais longo conforme progredimos na campanha. Infelizmente, isso chega a incomodar: até existem alguns filtros que auxiliam a navegação, mas eles são poucos e não há opção de registrar os itens favoritos.
Por fim, Hyrule e toda a nova geografia contêm o mesmo charme e beleza apresentados em Breath of the Wild, utilizando um estilo visual mais puxado ao cel-shading. Senti apenas que algumas vezes o jogo demandava mais processamento do que o Switch conseguia aguentar, principalmente quando há interação entre muitos objetos no uso da Ultrahand, levando a quedas bruscas da taxa de quadros por segundo.
O loop de atividades
Não é somente Hyrule que está de volta em Tears of the Kingdom: o loop de gameplay do jogo também é bem remanescente de seu antecessor. Nós temos mais uma vez o retorno das Shrines, das torres que liberam os mapas, das ocasionais dungeons maiores, da caça à Korok Seeds para aumento de inventário, entre outros elementos introduzidos no jogo de 2017.
A continuação de Breath of the Wild, porém, utiliza as mudanças geográficas como forma de remexer essa sequência de atividades. Durante minha jogatina, notei que tanto as terras celestes quanto os subterrâneos e cavernas complementam entre si de acordo com as necessidades e curiosidades do jogador.
Por exemplo, as Profundezas são um mapa gigante abaixo de Hyrule, em que a iluminação é reduzida, há um senso maior de tensão e maiores perigos, como a substância Gloom (um líquido que destrói seus corações em contato e é remanescente de Ganondorf). Como todas as armas de Hyrule foram danificadas após os eventos iniciais da história, é nas Profundezas que podemos encontrar equipamentos e recompensas melhores, instigando a exploração do subterrâneo.
Enquanto isso, os céus acabam sendo pontos de curiosidade quando liberamos alguma torre ou quando precisamos abastecer os dispositivos Zonai, itens importantes para a construção de veículos, balões, entre outros. Também são a casa de inimigos conhecidos como Constructs, que, ao morrerem, deixam para trás suas Zonai Charges, pequenos itens utilizados como moeda de troca e bateria dos artefatos Zonai.
Por falar em inimigos, Tears expande a quantidade de adversários que podemos encontrar nas três camadas do mapa. Além de novas adições ao bestiário, temos o retorno de inimigos de títulos anteriores da série, como o dragão Gleeok, e alguns batem muito forte, principalmente nas primeiras horas de jogatina.
Quanto aos inimigos já existentes do jogo anterior, foram incluídos alguns twists, como o trabalho conjunto de Bokoblins e Stone Talus e a existência de “exércitos” de Bokoblins, fazendo com que todos os adversários já conhecidos não caíssem totalmente na mesmice. Ainda fica a sensação de que poderiam ter aumentado um pouco mais o catálogo, tendo em vista que o jogador ainda encontrará Bokoblins, Moblins e Lizalfos na maior parte das horas jogadas, porém os avanços são interessantes.
Falando em avanços, inclusive, outro ponto um tanto comum de reclamação, principalmente dos fãs mais antigos da série, era a falta de dungeons mais tradicionais em Breath of the Wild. A equivalência que tínhamos lá eram atendidas pelas Divine Beasts, mas, dada a natureza mais aberta delas e problemas como repetição de cenário e temática, os jogadores sentiam falta de construções ou templos com desafios mais remanescentes dos títulos antigos.
Tears of the Kingdom carrega consigo dungeons que remetem às tradicionais da franquia e agrada mais aos fãs saudosos da fórmula “Ocarina of Time”. Elas resolvem os problemas citados ao terem estéticas próprias e serem fiéis ao seu tema, além de principalmente trazerem chefes com visuais mais distintos — alguns deles com ótimo capricho no espetáculo da luta.
Entretanto, fora essas melhorias consideráveis, as dungeons de Tears não são tão distantes das Divine Beasts. Os templos majoritariamente ainda envolvem puzzles que requerem a ativação de portais em ordem não linear, sem a presença de mini chefes ou largas construções labirínticas envolvendo muitas portas e fechaduras. Mesmo que o cerne desta nova fórmula seja a não linearidade e total liberdade ao jogador, as dungeons poderiam se beneficiar de desafios um pouco mais lineares, a fim de chegar a uma experiência próxima de como eram na fórmula antiga.
Inclusive, existem desafios mais lineares pelo mundo aberto. As cavernas foram uma adição que serve a esse quesito por geralmente serem espaços mais contidos e, embora não envolvam muitos puzzles, servem de exemplo de como uma mistura delas com as Shrines pode auxiliar a criar dungeons mais criativamente complexas.
É inegável, no entanto, que a liberdade e criatividade trazidas com as novas habilidades, unidas à filosofia de mundo aberto, conseguiram elevar o jogo. As próprias Shrines são muito mais livres na forma como podemos realizar seu puzzles, nos dando uma sensação de poder: é possível combinar duas habilidades, como Ascend e Recall, para atravessar uma sala sem realizar o puzzle da forma esperada. Foram muitas as Shrines em que senti que resolvi a questão de forma não intencional, deixando aquele gostinho de que fui mais esperto do que o jogo na boca.
Uma aventura viciante
The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom reafirma que a fórmula de Breath of the Wild veio para ficar. Mesmo reutilizando muito de seu antecessor, o jogo consegue uma identidade própria, trazendo novas possibilidades ao jogador para encarar os desafios por meio da enorme versatilidade proporcionada pelas novas habilidades.
Mesmo que o jogo ainda tenha espaço para algumas pequenas melhorias no futuro, como incorporar construções e puzzles mais tradicionais nas dungeons ou melhorar alguns de seus elementos de interface (além de, claro, disponibilizar o jogo em português), os avanços feitos aqui justificam Tears of the Kingdom como uma sequência que honra seu antecessor, ao mesmo tempo que expande seu universo. A sensação de descoberta e curiosidade a todo momento, seja pelas habilidades versáteis ou pela expansão no eixo Y do mapa, foi o suficiente para me prender mais uma vez em Hyrule por inúmeras horas — e ainda não tenho intenções de parar.
Prós
- Um mundo mais vivo, repleto de atividades secundárias e maior variedade de inimigos;
- Maior verticalidade de terreno;
- Habilidades com enorme versatilidade;
- Incentivo à criatividade do jogador com inúmeras possibilidades de construção e fusão de materiais;
- Visuais agradáveis.
Contras
- A interface de usuário para o menu de materiais poderia ser melhor construída;
- Quedas bruscas na taxa de quadros por segundo em alguns momentos;
- Falta de localização para português brasileiro, principalmente dada a grande publicidade brasileira do jogo.
The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom — Switch — Nota: 9.5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Nintendo