Os jogos de RPG estão muito violentos?

Em tese, jogos de RPG não precisam nem mesmo ter combate, mas será que o amplo potencial do gênero é bem aproveitado?

em 19/04/2023

Em sua origem, entre o final da década de 1970 e início da década seguinte, os primeiros jogos eletrônicos de RPG com gráficos (tais como os das séries Wizardry, Ultima e Dragon Quest) focaram em aventuras com combates a partir dos quais o jogador se tornava progressivamente mais forte e apto a seguir na trama, encarando desafios mais perigosos até derrotar o último chefe. Com raras exceções, tudo isso era envolto em um mundo no qual as criaturas podiam ser mortas sem consequências éticas e o vilão era maligno por natureza, enquanto que o jogador controlava um herói incontestável.


Se você nunca jogou RPGs do século passado e mesmo assim acha que esse contexto é o mais comum para o gênero, isso é um sinal de que ele continua a se focar em violência justificada por uma premissa simplista de um mal incontestável e insensível a ser eliminado. É claro que isso não é exclusivo dos RPGs, há muitos jogos sobre os quais poderíamos analisar esses aspectos, mas vou me deter no gênero RPG, isso porque estou mais familiarizado com ele e porque vejo nele um grande potencial em outras abordagens.


A discussão sobre violência em videogames não é nem um pouco nova. Na verdade, é quase tão antiga quanto a origem dos videogames. Contudo, o tema novamente tem ganhado destaque no Brasil, graças a um infeliz pronunciamento do atual presidente (Luiz Inácio Lula da Silva ou “Lula”), no qual ele mostra desconhecimento sobre a extensão e a complexidade dos títulos da mídia, mas também nos leva a refletir sobre algumas escolhas recorrentes do design de jogos, especialmente nos de RPG.

Muito pode ser dito sobre o impacto psicológico e a recepção social da violência em RPGs, mas em vez disso, dedicarei os próximos dois tópicos a refletir sobre duas questões mais relacionadas ao design de RPG. Primeiramente, vamos discutir sobre se é possível afirmar se o gênero está se tornando mais violento com o passar dos anos. Em seguida, sobre o seu potencial para abordagens que não colocam a violência como foco dos sistemas do jogo e de seu level design.

Os RPGs estão se tornando mais violentos?

Quando conversamos sobre o tema da violência nos videogames, precisamos distinguir a representação do “ato de violência” em si da intensidade com que esse ato é representado. Nos jogos da série Super Mario Bros., o protagonista do game esmaga seus inimigos ou até os queima, levando-os à morte, mas tudo isso é representado de forma fantasiosa, infantil e singela, o que minimiza o impacto desses atos. Por outro lado, em Mortal Kombat, o jogador controla um lutador, em um estilo mais realista e desfere golpes sangrentos contra um outro, finalizando-o com requintes de crueldade.

Embora a intensidade da violência desses dois jogos seja completamente diferente, ambos se enquadram em “violência”. Ao menos se adaptarmos para o campo ficcional a definição da Organização Mundial da Saúde
"[Violência é] o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa* ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação."

* Neste artigo, a OMS está tratando de violência em contexto de humanos, mas também essa definição possui uma versão mais ampla para contemplar outros tipos de animais.
Nesse sentido amplo, é difícil dizer que a violência aumentou em RPGs. Talvez até possamos dizer que hoje há mais propostas que fogem do foco em violência, algo que na década de 1980 já existia na forma de uma ou outra proposta alternativa, mas ainda era rara.

Um caso que vale destaque é o terceiro capítulo de Dragon Quest IV (NES), aquele em que controlamos Torneko, um mercado cujo objetivo é ganhar dinheiro, mas é péssimo em combate, o que culminou em um objetivo que não fosse ganhar experiência. O Team Asano, na Square Enix, faz atualmente algumas histórias casuais também, como em torno de Agnea e Partitio em Octopath Traveler II, mas ainda as mesclam com combates.


Em certo sentido, podemos sim dizer que a violência aumentou em termos de intensidade da representação. Claro, isso não se aplica a casos como Octopath Traveler, onde os inimigos viram pó brilhante quando morrem e as espadadas lançam ao ar fogos de artifício em vez de sangue e lágrimas.

Entretanto, a intensidade com função de realismo aplica-se a RPGs mais realistas, como The Witcher 3, no Ocidente, ou Final Fantasy XVI, no Japão, os quais não têm medo de aproximar a fantasia da realidade. Isso, no entanto, não é feito para ser algo sádico, como na séries Mortal Kombat ou Doom, mas apenas com propósito representacional, como atesta um comentário de Hiroshi Takai (diretor de Final Fantasy XVI) em entrevista para a IGN (2022):
“Nos estágios iniciais de desenvolvimento, decidimos que não contaríamos uma história juvenil. Algumas das principais considerações foram a faixa etária dos jogadores que esperamos formar nosso público principal, e também que temos uma maior capacidade de retratar as coisas, em vários sentidos da palavra. Você diz que é uma direção mais “violenta” – mas o ponto chave aqui é que não queríamos apenas tornar as coisas mais extremas, queríamos mostrar as coisas de forma mais realista e natural.”

 

RPGs definitivamente não precisam ser violentos

No contexto de RPGs, como supracitado, a violência em sentido amplo está frequentemente no centro da atenção desde sua origem. Quase todos os sistemas que conhecemos em RPG foram construídos para operar em contextos de violência: aprimoramento de habilidades ofensivas, economia baseada em equipamentos bélicos, comando de ataque etc.

Em torno de mecânicas como essas, o level design do mundo de um RPG frequentemente é desenhado pensando em uma sequência de muitas e muitas batalhas mais do que qualquer outra coisa. Por fim, frequentemente a história do jogo se resolve em uma grande batalha final, após muitas outras até chegar lá. Contudo, devemos nos perguntar: precisa ser assim? O próprio gênero nos mostra que não.


Os jogos de RPG de mesa, que remontam desde a metade da década de 1970, em sua origem, não precisam ter foco em batalha. Sim, há batalhas, classes e tudo mais, mas o foco está muito mais na aventura, na trama e nas decisões que os jogadores precisam tomar no decorrer da aventura. É possível sim fazer seções inteiras somente com batalha, mas frequentemente joga-se RPG de mesa sem ter tanto foco em combate e, às vezes, até mesmo nenhuma batalha.

Diferentemente dos RPGs de mesa, os RPGs eletrônicos tendem a fazer o jogador passar a maior parte do tempo de jogo em combate. Entretanto, isso não significa que não haja contra exemplos, como em RPGs indies a exemplo de Citizen Sleeper, Pentiment e Disco Elysium que trazem tramas incrivelmente bem escritas e com escolhas, atributos e dados, mas sem nenhuma batalha sequer.


Em alguns outros casos ainda, como em Roadwarden e I Was a Teenage Exocolonist, há batalhas, mas não são nem de longe o foco da experiência. E, ainda, há RPGs como Undertale e Moon, que subvertem e criticam a banalização da violência e a superficialidade do “bem” e do “mal”. Nesse aspecto de crítica, o caso da série Drakengard/NieR, de Yoko Taro, é especialmente interessante, pois usa a própria violência contra ela própria.

Em sua fala recente sobre a influência e a natureza dos videogames na sociedade, o presidente Lula sugere que não há jogos que falam sobre amor. Certamente ele sequer ouviu falar de títulos como Moon e Undertale, nos quais o amor é o tema central do design. Contudo, nós, que conhecemos jogos como esses, devemos nos perguntar: é preciso ter tanto foco em violência em RPG?


Eu acredito que não, e muitas vezes acredito que isso joga contra a coerência de design de alguns títulos. O vulnerável Torneko de Dragon Quest IV é um mercador muito mais verossímil e interessante para se controlar do que Partitio (mercador) e Agnea (dançarina) de Octopath Traveler II, os quais são sem dúvida divertidos e carismáticos, mas é pouco crível que um mercador e uma dançarina sejam quase tão habilidosos em batalha quanto guerreiros e mercenários como Hikari e Throné, isso para não falar que uma disputa coreográfica se torna em uma batalha desnecessariamente, no caso de Agnea.

É preciso ser dito: batalhas em RPGs não precisam ser extintas. Obviamente, nós perderíamos muita coisa interessante com isso, e esse aspecto não necessariamente incentiva que jogadores sejam violentos (isso pode ser tema de outra discussão). Contudo, há um potencial imenso em design de RPG para criar variedade de sistemas ou imersão narrativa que é desperdiçado em função da demanda por violência, e acredito que deveríamos incentivar os desenvolvedores a fazerem RPGs também de outras formas.

Revisão: João Pedro Boaventura
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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