Sem a retrocompatibilidade com sistemas anteriores e sem uma preocupação em manter a aquisição de determinados títulos acessível em futuras gerações, convivemos com a possibilidade de perder para sempre vários jogos. Uma forma prática de preservar os jogos e manter pelo menos alguns deles ainda disponíveis é a retrocompatibilidade, que permite que um console mais novo rode jogos de sistemas anteriores.
Como funciona a retrocompatibilidade?
Existem duas abordagens possíveis ao se pensar na retrocompatibilidade: a forma nativa e a emulada. Quando um console roda um jogo de seu antecessor nativamente, é possível abrir aquele jogo (físico ou digital) diretamente no console como se ele fosse o anterior. Isso ocorre porque o hardware compartilha elementos de sua arquitetura que permitem que ele compreenda e execute o código da mesma forma que ocorreria no sistema original. Ou seja, é como se ele seguisse as mesmas instruções do hardware antigo (''renderize o Mario no tamanho X nessa localização'', por exemplo).
Já a retrocompatibilidade emulada envolve o uso de programas que interpretam o código, os emuladores. Em comparação com rodar o jogo de forma nativa, é mais provável que haja alguns erros na leitura e execução das instruções, o que pode demandar ajustes ao longo do tempo. Ainda há casos como os jogos de Game Boy Advance que rodam no 3DS por conta do circuito interno do sistema que é programável e pode realizar a emulação via hardware.
A abordagem nativa envolve a manutenção de hardware entre gerações, o que faz com que rodar o jogo ocorra de forma bastante precisa, mas acaba acarretando custos de manutenção no longo prazo, pois aquelas peças se tornam obsoletas. Já a emulada pode ser mais barata e simples de implementar para a produtora do console, mas costuma envolver uma lista muito reduzida de obras disponíveis para o consumidor.
Independente do estilo utilizado, uma coisa é certa: a retrocompatibilidade é um fator essencial em um sistema. Os jogadores esperam que ela exista de alguma forma, e é perceptível que todas as empresas que produzem consoles atualmente possuem algum tipo de programa nesse sentido, mesmo com filosofias e públicos-alvos diferentes. Entre os consoles mais populares de suas respectivas épocas, é possível citar o Atari 7800 e o Mega Drive como alguns dos primeiros exemplos dessa prática.
O Xbox 360 contava com um emulador de Xbox Original e era possível comprar alguns títulos do console anterior na Xbox Live, chamados de Xbox Originals. A lista de jogos compatíveis era limitada (algo similar ao Virtual Console de sistemas Nintendo).
Já o PlayStation 3, assim como foi no PS2, rodava os jogos de seu antecessor nativamente. Além disso, ele também rodava jogos de PS1 (físicos ou digitais) através de um emulador. A fim de baratear o console, o hardware do PlayStation 2 foi retirado do sistema nos modelos mais novos, que passaram a ter acesso a um emulador com acesso a uma lista limitada de jogos PS2 Classics vendidos na PSN.
Vale lembrar que, como mostrado na imagem abaixo, todo jogo retrô comprado na PSN fica disponíveis em todas as plataformas que ele está disponível (ou seja, precisa ser comprado apenas uma vez para ser jogado no PS3, PSP, PSVita, PS4 e PS5), diferente do Virtual Console que o jogo precisa ser comprado em cada plataforma.
Infelizmente, ao chegar na oitava geração, houve uma mudança de postura da Sony: o PlayStation 4 foi lançado sem retrocompatibilidade com PS1, PS2 ou PS3. O foco estava nos novos projetos e o então-presidente da Sony Europa e atual presidente mundial da empresa, Jim Ryan, até chegou a falar o seguinte:
Felizmente, esse cenário mudou com o tempo e, atualmente, temos até uma PlayStation Plus que se vangloria da presença de vários títulos do passado nos níveis mais caros de sua assinatura, complementando a biblioteca do PS4 e do PS5. Embora tenha chegado atrasada ao sistema, e muitos atribuam a mudança à concorrência, a retrocompatibilidade sempre fez parte do DNA da empresa.“'[...]eu estava em um evento de Gran Turismo recentemente onde eles tinham games de PS1, PS2, PS3 e PS4, e os jogos de PS1 e PS2, eles pareciam antigos, por que alguém iria jogar isso?"
O fechamento das lojas digitais do PS3 e do PS Vita, originalmente planejado para 2021, acabou sendo adiado indefinidamente, embora tenham fechado a PSN do PSP. Além disso, vale destacar que os jogos de PS3 já estavam no serviço de assinatura PS Now, que disponibiliza uma lista limitada de títulos para rodar no PS4, PS5 ou mesmo no PC. O serviço funciona na nuvem e o jogador tem acesso a todo o catálogo durante o período pago.
Quanto ao Xbox One e Series, a equipe de Phil Spencer explorou com muito afinco a retrocompatibilidade dos sistemas com o Xbox original e o X360. De 2015 até 2021, a Microsoft investiu na adição de mais de 600 jogos que os jogadores poderiam simplesmente adicionar à sua coleção caso já tivessem comprado anteriormente. Basta inserir o disco ou acessar a conta que possui o jogo de forma digital. Não há expectativa de que mais jogos sejam adicionados ao sistema, mas a possibilidade de jogar qualquer jogo da lista já adquirido anteriormente de forma física ou digital é uma vantagem que nenhum dos concorrentes permite atualmente.
O histórico da Nintendo com retrocompatibilidade nos consoles de mesa
O primeiro console da Nintendo foi lançado em 1983 no Japão e 1985 no Ocidente. Quando a empresa lançou o seu sucessor, o Super Nintendo, em 1990 (JP)/1991 (EUA), ela não teve a preocupação de garantir a retrocompatibilidade. Porém, curiosamente, o sistema recebeu em 1994 um periférico chamado Super Game Boy, que permitia jogar os títulos de Game Boy no console.Em 1996, o Nintendo 64 foi lançado e não chegou a receber nenhum método de retrocompatibilidade. O Wide-Boy 64, um periférico similar ao Super Game Boy, foi desenvolvido pela Intelligent Systems, mas só foi disponibilizado para desenvolvedores e alguns membros seletos da imprensa.
Também não houve retrocompatibilidade entre o Nintendo 64 e o GameCube, sistema lançado em 2001 e que usava CDs em vez de cartuchos. Porém o GC recebeu em 2003 o periférico Game Boy Player, um acessório que rodava jogos de GB, GBC e GBA. Ele podia ser conectado pela parte de baixo do console e permitia compatibilidade completa com o portátil. Com isso, apesar de não ser uma situação ideal, os ports de Super Nintendo que o GBA recebeu estavam todos disponíveis no Game Cube.
Lançado em 2012, o Wii U também contava com retrocompatibilidade nativa com o Wii e uma lista de mais de 300 jogos no Virtual Console. Entre os títulos, foram incluídos clássicos do GBA e do DS e poucas obras nunca lançadas no Ocidente como Earthbound Beginnings (NES).
Em 2017, o Nintendo Switch foi lançado e não tinha mais o Virtual Console. Foi apenas um ano depois que foi criado o serviço Nintendo Switch Online com alguns títulos clássicos de NES no pacote. Hoje, temos acesso a uma vasta biblioteca com títulos do NES, SNES e GB, assim como uma biblioteca de Game Boy Advance, Mega Drive e Nintendo 64 para quem paga o Expansion Pack. Também temos alguns softwares de gerações anteriores sendo vendidos na eShop separadamente através de programas como SEGA AGES, Arcade Archives e ACA NEOGEO.
E nos portáteis? Bom… Foi ainda melhor
Desde o lançamento do GBC, todos os portáteis da Nintendo foram retrocompatíveis de forma nativa, pelo menos com o seu antecessor. O GBA tinha total compatibilidade com jogos de GB e GBC. Já o Nintendo DS tinha uma entrada para jogos de GBA, que foi retirada da linha DSi. Como o DS não tinha Virtual Console, isso significou a retirada total da retrocompatibilidade do sistema, que não podia mais acessar a vasta biblioteca do GBA.
Já o Nintendo 3DS tinha retrocompatibilidade com o DS e recebeu também um Virtual Console que incluía jogos de NES, Game Gear, GB e GBC. Além desses sistemas, as pessoas que compraram o 3DS nos primeiros meses tiveram acesso a 10 jogos de GBA que eram emulados via hardware (similar a um FPGA). Nem esses títulos, nem outros do portátil foram vendidos no sistema. Outro caso curioso do 3DS é que os jogos de SNES do Virtual Console eram exclusivos do New 3DS, edição mais robusta do sistema lançada em 2014.
Como portátil, o Nintendo 3DS deu um show com sua biblioteca. Mesmo não tendo compatibilidade total com todas as gerações anteriores, ele dispunha de diversos títulos importantes no Virtual Console, bem como compatibilidade total com Nintendo DS, o que, por si só, já é uma baita adição.
O posicionamento da Nintendo em relação à retrocompatibilidade
O foco da Nintendo sempre foi a inovação e, segundo Shigeru Miyamoto, ela é mais importante do que a retrocompatibilidade. De acordo com ele, embora os hardwares atuais sejam mais padronizados, o que facilita essa funcionalidade, o foco deve continuar em títulos que demonstram as capacidades únicas dos novos sistemas de uma forma que não era possível antes.
Se o preço para ser inovador é apagar/ignorar seu passado, será que vale tanto a pena focar apenas em inovação? Jogos como Pokémon, por exemplo, dependem de retrocompatibilidade para funcionar como foram pensados originalmente. Sendo assim, será que é prudente ignorar a retrocompatibilidade e a preservação de jogos, sendo que a IP mais lucrativa do entretenimento depende diretamente dessa feature? Antes de pensarmos em mais controles de movimentos, mais jogos em 3D e mais inovações, acredito que deveríamos refletir nessas questões.
Com toda a biblioteca de jogos da Nintendo, ainda há muitos jogos importantes para o seu legado que não estão disponíveis no Switch. Em comparação com a concorrência, há uma cobrança até mesmo maior por esses clássicos queridos pelos seus jogadores. Mesmo que haja o relançamento desses jogos no Switch, será que um próximo console irá nos fazer voltar novamente à estaca zero? Apesar da grande importância da inovação e da criação de novos jogos, é importante que a preservação do legado da Nintendo ao longo dos anos seja visto como outro pilar da empresa e não apenas como uma funcionalidade temporária.
Co-autor: Ivanir Ignacchitti
Revisão: Cristiane Amarante