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Análise: Road 96: Mile 0 (Switch): uma jornada adolescente sentimental em meio a uma sociedade distópica

A prequel de Road 96 mostra o choque de realidade de dois adolescentes de mundos distintos.

Em 2021, a Digixart e a Ravenscourt lançaram o jogo de aventura Road 96, uma viagem pelas estradas de um país chamado Petria que vive sob um regime autoritário. Dois anos depois, as empresas retornam com uma prequel chamada Road 96: Mile 0, que mostra como dois adolescentes de realidades opostas vivem nessa realidade distópica e a sua forte amizade.

Como alguém que não jogou o título anterior, gostaria de mencionar que não senti falta de detalhes e informações em nenhum momento. A obra é perfeitamente válida de forma independente, embora complemente o jogo original, mostrando o passado de vários personagens.

Dois lados de um mesmo mundo

Road 96: Mile 0 conta a história de Zoe e Kaito, dois adolescentes que em pouco tempo de convívio se tornaram melhores amigos. Embora eles tenham tanta afinidade, a realidade dos dois possui diferenças gritantes. Zoe é filha de um ministro importante do governo Tyrak e uma figura conhecida pela elite da luxuosa comunidade White Sands, enquanto Kaito é apenas o filho de dois trabalhadores muito pobres que se mudaram para a região.

Na sociedade de Petria, há um grande apego à hierarquia, colocando os trabalhadores como capachos dos residentes de White Sands. Essa estrutura política e social chega a ser caricata com personagens que agem de forma exagerada e propagandas muito óbvias sobre a importância do controle que o Estado tem. Do outro lado, existe também a figura da Brigada Destruidora, um grupo de resistência ao regime que a população conhece por seus atos terroristas.

A ideia que o jogo quer apresentar é a da dicotomia entre os dois personagens, forçando-os a questionar as suas convicções. De um lado, Zoe vivenciou um grande atentado terrorista em 1986, o que a deixou traumatizada. Do outro, Kaito é um jovem que sofre diariamente o peso de ser “um trabalhador comum” em uma sociedade que ignora questões ecológicas e sociais importantes para que os mais ricos possam manter o seu padrão de luxo.

Na prática, porém, a estrutura caricata e simplista da narrativa, assim como a forte ligação dos personagens, faz com que o antagonismo de posições pareça algo bobo e de fácil resolução. O jogo não é convincente em apresentar Zoe tendo qualquer tipo de argumento ou mesmo um apego emocional ao seu contexto de vida que desse a ela uma convicção firme contra as insinuações que Kaito frequentemente faz contra o governo. Acaba parecendo que é apenas uma questão de conveniência de roteiro e nada mais.

Vale destacar que a história alterna entre as perspectivas de Zoe e Kaito em certos pontos-chave e as nossas escolhas podem moldar um pouco esses personagens. Em vez de alinhamentos claros como “a favor do governo” e “a favor da brigada”, os ajustes apenas moldam o quão convictos eles estão em suas posições políticas iniciais. Essa nuance mais tênue acaba reduzindo a sensação de agência do jogador, ou seja, fica parecendo que as suas escolhas impactam pouco a experiência.

No ritmo da revolução

O que realmente chama a atenção em Road 96: Mile 0 é a forma como o jogo intercala a narrativa com trechos rítmicos, uma escolha bem incomum de combinação de gêneros. Cada parte da história envolve os personagens explorando as áreas de White Sands e se envolvendo em algum tipo de confusão ou discutindo entre si, e isso é representado de forma fantasiosa como uma sequência musical.

Os aspectos mais abstratos desses momentos são alguns dos mais instigantes da experiência, explorando a fundo o visual 3D colorido do jogo e uma excelente seleção de músicas. Dá para facilmente imaginar a trilha como coisas que esses adolescentes escutam e ao mesmo tempo é uma seleção bem pensada para estruturar as fases em torno delas.

A ideia dos trechos rítmicos envolve tentar coletar cristais de energia e evitar vários tipos de obstáculos no caminho. O jogador deve se movimentar para os lados, pular e se agachar. Há momentos em que os personagens se movimentam livremente pela tela como as sequências de queda livre de Kingdom Hearts: Dream Drop Distance e outros em que é necessário pular entre trilhos para evitar obstáculos.

Porém, gostaria de destacar que as indicações de ação são bem inconsistentes. Algumas músicas possuem setas para mostrar que o jogador deve pular e se esgueirar, outras não. Como isso não é uma questão de retirada total após um certo ponto, não parece ser uma escolha de design voltada para treinar o jogador e depois forçá-lo a detectar isso por conta própria.

Em algumas músicas, há também escolhas que devem ser feitas movimentando-se para a esquerda ou para a direita da tela. Elas podem ter leve impacto nas convicções dos personagens caso isso seja indicado pelos mesmos símbolos usados em momentos narrativos.

Ao final de cada fase, o jogador recebe um ranque dependendo da sua performance, podendo competir consigo mesmo para melhorar a pontuação ao longo do tempo. Porém, o jogo também conta com a opção de pular a música caso o jogador falhe várias vezes na mesma área e ainda queira avançar a trama. Depois de jogar uma vez, as fases são liberadas no menu para tentar novamente quando quiser.

Detalhes de qualidade de vida

Alguns pontos nos quais Road 96: Mile 0 falha bastante têm relação com a qualidade de vida do jogo. Primeiramente, é perceptível que os menus foram claramente pensados para o mouse e adaptados para o analógico. Como resultado, temos que simular o mouse na hora de interagir com o menu de configurações ou “clicar” em botões minúsculos da tela para fazer interações que deveriam ser muito simples como abrir portas.

No caso desse segundo ponto, mesmo aumentando o tamanho dos ícones e do texto, ainda não é o suficiente para reduzir o problema. Além disso, o touchscreen não é uma opção, não aproveitando uma possibilidade que poderia dar alguma vantagem para a experiência no Switch em relação a outros consoles.

De forma geral, é uma experiência desnecessariamente complicada para console. Mesmo o jogo oferecendo a possibilidade de ajustar botões diretamente no menu de configurações, essa adaptação frankenstein do mouse continua a assolar a experiência.

Outro problema é que o jogo só possui save automático, não existindo nenhuma outra alternativa. Isso reduz a capacidade de o jogador de explorar as possibilidades de escolha da trama durante a experiência. Para piorar, ao terminar o jogo, o último save é simplesmente apagado, forçando o jogador a retornar ao início da jornada ou se contentar ao menu de músicas fora da narrativa.

Por fim, Road 96: Mile 0 está totalmente traduzido em português, o que ajuda bastante a aproveitar a sua história. A tradução tem vários pontos altos, sabendo adaptar gírias e falas muito específicas, mas também acaba tendo algumas falhas grosseiras e erros bobos que provavelmente foram causados por desconhecimento de contexto. Ou seja, a qualidade é, infelizmente, inconsistente.

Moldando convicções antes de botar o pé na estrada

Road 96: Mile 0
tenta explorar um cenário distópico através das lentes de dois adolescentes com suas próprias convicções. O resultado final é uma jornada emocionante, mas cuja escrita forçada e vários defeitos de qualidade de vida enfraquecem consideravelmente a experiência. Mesmo assim, para quem gosta de títulos de aventura com foco nos aspectos emocionais dos seus personagens, vale a recomendação.

Prós

  • Combinação estilosa de aventura com sequências rítmicas;
  • Visual colorido e chamativo, com alguns trechos abstratos que chamam a atenção;
  • A trilha sonora soa como um álbum que os dois adolescentes escutariam;
  • É possível pular os trechos musicais caso o jogador tenha dificuldade;
  • Os botões utilizados para jogar podem ser ajustados no menu.

Contras

  • Menus e ícones pensados para o mouse acabam dificultando algumas interações que deveriam ser simples;
  • Terminar o jogo elimina totalmente o último save, forçando o retorno ao início da aventura para explorar outras possibilidades;
  • Ausência de slots de save ou qualquer forma de save manual;
  • Narrativa caricata e simplista;
  • Indicações inconsistentes nas seções rítmicas;
  • A qualidade da tradução em português oscila.

Road 96: Mile 0 — Switch/PC/PS4/PS5/XBO/XSX — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: Switch

Revisão: Vitor Tibério
Análise produzida com cópia digital cedida pela PLAION


é formado em Comunicação Social pela UFMG e costumava trabalhar numa equipe de desenvolvimento de jogos. Obcecado por jogos japoneses, é raro que ele não tenha em mãos um videogame portátil, sua principal paixão desde a infância.
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