Octopath Traveler: O que essa série ainda tem a aprender com os clássicos JRPGs que a inspiram?

O que Dragon Quest IV, Live A Live e Romancing SaGa ainda têm para ensinar e agregar nos jogos do Team Asano?

em 23/03/2023

Quase 5 anos depois do surgimento do estilo HD2D tal como conhecemos hoje, em Octopath Traveler (Switch), vemos muitos jogos que refinaram as técnicas desse estilo dentro e fora dessa série. Seu recente sucessor, Octopath Traveler II (Switch), melhorou significativamente também o level design, o design narrativo e os sistemas em praticamente todos os aspectos possíveis. Mas o que será que ainda pode ser melhorado?


Podemos encontrar algumas respostas para essa pergunta olhando para trás, ou seja, para alguns clássicos de NES e SNES que influenciaram o game design de Octopath Traveler. Hoje, vamos analisar alguns elementos de Dragon Quest IV, Live A Live e Romancing SaGa que ainda têm potencial para aperfeiçoar a experiência da amada série dos oito viajantes do mundo de Solistia.

Dragon Quest IV e Live A Live: Lutar nem sempre é a melhor forma para avançar em uma história

Em parceria com o estúdio Acquire, o time da Square Enix que desenvolveu Octopath Traveler é apelidado de “Team Asano” por terem Tomoya Asano na liderança de seus projetos. Embora a equipe tenha se formado para os remakes de Final Fantasy III e IV para DS e Final Fantasy: The 4 Heroes of Light (DS) até se consolidar com Bravely Default (3DS), sua primeira IP própria, o desenvolvedor já trabalhava na Enix antes mesmo dessa companhia se unir à Square, e seu primeiro trabalho por lá foi como play tester da versão de Dragon Quest IV para PS1.

A principal característica da trama de Octopath Traveler é sua fragmentação narrativa em histórias independentes que subverte a noção de um protagonista único e de uma jornada unificada. Essa ideia de uma narrativa meio “antológica” em JRPG remonta a Dragon Quest IV, mas só foi testada de forma mais profunda e experimental em Live A Live, o primeiro título a receber um remake HD2D do Team Asano.

No quarto título da série Dragon Quest, vemos isso ocorrer na forma de capítulos ambientados em regiões diferentes do mundo, trazendo diferentes personagens centrais. No primeiro, você assume o controle de um soldado, o carismático bigodudo Ragnar; no segundo, o jogador segue a Princess Alena, seu tutor Borya e o chanceler Kiryl; no seguinte, o bigodudo mercador Torneko; no quarto, a dançarina Maya e a vidente Meena; e no quinto, finalmente o protagonista definitivo, “the Hero”. O remake de PS1 (que teve Asano como tester) adicionou um sexto capítulo que apresenta um final alternativo para a história.




Em ambos os casos — Live A Live e Dragon Quest IV —, há escolhas interessantes de sintonia entre gameplay e narrativa que ainda não vimos na série Octopath Traveler. Quando jogamos com alguns personagens, não temos por foco batalhar, mas sim explorar outras mecânicas do game.

Por exemplo, no capítulo de Torneko, em Dragon Quest IV, assumimos o papel de um personagem inapto para batalhas. Embora ele possa contratar mercenários de forma semelhante ao que faz Partitio em Octopath Traveler II, o objetivo do mercador é simplesmente arrumar dinheiro e formar seu próprio negócio em uma nova cidade. Adicionalmente, podemos completar suas missões simplesmente negociando itens com NPCs.


Também de forma inovadora, em Live A Live, quando controlamos Cube, um simples robô para suporte pessoal (como para servir café), quase nunca temos experiência de combate, mas de suspense e investigação. Em um contexto de sci-fi e de desaparecimentos, fugimos de encontros visuais e desvendamos mistérios de uma criatura alienígena que invadiu a nave futurista em que se passa a história.

Exemplos como esse mostram como o Team Asano poderia ser mais ousado na imersão em seus personagens. Partitio (mercador) e Agnea (dançarina) em Octopath Traveler II são muito poderosos em batalha, como se pudessem ser comparados ao príncipe guerreiro Hikari ou à temida ladra Throné. Embora tenham habilidades especiais condizentes com suas profissões, seus papéis seriam mais coerentes se suas histórias não envolvessem tantos confrontos diretos, o que faria sentido também com o fato de serem os únicos personagens no jogo a não matarem um chefe final.

Dragon Quest IV e Romancing SaGa: mais importante do que as partes de uma história é a forma como elas se relacionam

Outra forte influência narrativa de Octopath Traveler é, sem sombra de dúvidas, a série Romancing SaGa. Isso se deve ao fato de que ambas as sagas também trabalham com habilidades únicas de cada personagem e diálogos incidentais entre eles durante as aventuras, além de ser possível alterná-los na formação da party da mesma forma: indo aos bares das cidades. Contudo, há algo que a série de Asano ainda não faz tão bem quanto a de Akitoshi Kawazu: trazer uma boa trama de fundo que unifique as motivações dos diferentes personagens do grupo a unirem forças em função de um propósito maior.

Para ficarmos em um exemplo, peguemos o caso do remake de Romancing SaGa para PS2. Nesse jogo, cada personagem tem sua própria motivação na trama, e o jogador também pode escolher um deles para começar sua aventura, podendo encontrar os demais viajando pelo mundo. Porém, tudo se passa levando em conta uma lenda antiga sobre uma guerra que levou algumas raças à extinção, bem como a morte dos deuses malignos Death e Schirach pelas mãos do "Guerreiro de Prata" (Silver Warrior) e seus quatro companheiros.


Mas há uma terceira divindade maligna, Saruin, que foi aprisionada com a ajuda de 10 artefatos mágicos chamados Fatestones. O jogador se vê incumbido de impedir que esse deus sombrio retorne e, para isso, o grupo de personagens, por mais diferentes que sejam, se unem por um propósito maior em comum. Há também um limite de tempo para que eles possam resolver o problema do mundo, já que, aos poucos, as Fatestones também vão sendo conquistadas pelas criaturas sombrias.

Esse tipo de escrita torna mais verossímil a unificação do elenco de personagens. Dragon Quest IV faz algo semelhante, embora com outro enredo e com uma progressão narrativa diferente. Por outro lado, na série Octopath Traveler, nós simplesmente encontramos personagens novos pelo caminho, cada qual com uma jornada inteiramente pessoal e distinta, e convenientemente juntam-se à party, onde ficam até o final do jogo e não interagem diretamente nas histórias de seus amigos — sequer aparecem nas cutscenes.

Romancing SaGa: podemos transformar interação narrativa em interação de gameplay

Uma coisa que a série SaGa faz como nenhuma outra no gênero é a forma como a escolha dos personagens de seu grupo proporciona uma variedade ampla e flexível de interações. Embora Octopath Traveler se inspire nas mecânicas de SaGa, como sistema de Boost, a série do Team Asano é infinitamente menos complexa nesse aspecto.

Ser mecanicamente simples não é um problema, pois torna um jogo mais prático e acessível. Entretanto, talvez Asano e sua equipe possam achar aplicações também para outros interessantes sistemas criados por Akitoshi Kawazu, o “cientista maluco” da Square Enix. Um desses sistemas que me parece que cairiam muito bem em Octopath Traveler é o sistema de combos.


Sim, há combos em vários outros RPGs, como por exemplo em Chrono Trigger, mas em nenhum deles é desenvolvido com tanta complexidade quanto em alguns dos jogos de Kawazu. No remake de Romancing SaGa, por exemplo, o sistema de combos permite a combinação de dois, três ou todos os personagens de diferentes formas, como para causar mais dano em um só ataque, para dar uma sequência de ataques, para invocar uma entidade divina ou até mesmo para aprender técnicas novas durante a própria batalha.

Esse leque de possibilidades varia de cada personagem que temos em nosso grupo e faz com que a interação entre eles não seja apenas narrativa, mas também de gameplay. Quanto mais tempo temos alguns personagens em nossa party, maior é a chance de desenvolverem técnicas juntos e aperfeiçoarem seus combos (que vão se tornando melhores à medida que são mais usados). Um sistema semelhante em Octopath Traveler estreitaria a relação entre seus personagens durante a jogabilidade ao mesmo tempo em que daria mais camadas de personalização para o jogador.

Olhando para trás e para o futuro de Octopath Traveler

Os jogos do Team Asano sempre avançaram olhando para trás ou, para usar uma outra metáfora, conseguiram ver o que outros não viram porque estavam nos ombros de gigantes. Talvez a principal virtude desse time da Square Enix esteja em reconhecer o valor das fórmulas clássicas do gênero RPG e encontrar aplicações mais acessíveis, práticas e modernas para reutilizá-las em novas IPs. 

Em Octopath Traveler, isso não é diferente. Embora a cada nova entrada a fórmula esteja cada vez mais sólida e brilhante, ainda há espaço para melhorar e se reinventar, sobretudo em termos de interação, imersão e relacionamento de seus personagens tanto na narrativa quanto na jogabilidade.

Revisão: João Pedro Boaventura

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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