Vaan é um dos personagens principais de Final Fantasy XII (Switch) e Final Fantasy XII: Revenant Wings (DS), ambos jogos que se passam no universo de Ivalice (Ivalice Alliance). Normalmente considerado o protagonista desses títulos, ele também é um personagem jogável secreto em Final Fantasy Tactics A2: Grimoire of the Rift (DS) e aparece em vários spin-offs da franquia Final Fantasy representando Final Fantasy XII, tais como as subséries Dissidia, Theatrhythm Final Fantasy e Final Fantasy Brave Exvius.
Estamos indo para o quarto Final Fantasy após a aparição de Vaan pela primeira vez no PlayStation 2, mas ele ainda tem muito a ensinar sobre como pensar “fora da caixa” para desenvolver personagens principais nessa franquia. Em muitos aspectos, trata-se de um caso peculiar de protagonismo em JRPG de modo geral, e mesmo um caso crítico do conceito desse design narrativo de “protagonismo”, e hoje vamos analisar o porquê.
O jovem ladrão de Rabanastre
Desenhado por Akihiko Yoshida para Final Fantasy XII, Vaan é um personagem humano, branco, magro e jovem, com 17 anos e cerca de 1,70 de altura. Embora possa ter qualquer classe que o jogador queira, ele possui um traje que remete à classe Thief/Ladrão, similar a roupas de outros personagens dessa classe na série Final Fantasy, como Zidane (Final Fantasy IX) e Locke (Final Fantasy VI), porém deixando-o parcialmente desnudo, de modo a salientar seu físico ao mesmo tempo delicado e atlético.
Mesmo quando desenhado de uma forma mais infantil e minimalista por Ryoma Ito, seu figurino em Final Fantasy XII: Revenant Wings permanece idêntico. Por outro lado, sua aparência em Final Fantasy Tactics A2: Grimoire of the Rift adiciona uma camisa branca sob seu colete curto e alguns acessórios de metal.
Arte promocional de Vaan com roupa de Final Fantasy Tactics A2: Grimoire of the Rift. Desenho de Ryoma Ito. |
Com roteiro escrito por Yasumi Matsuno, Vaan é introduzido em Final Fantasy XII como um ladrão de rua órfão, assim como sua irmã, Penelo. Os dois vêm de Rabanastre, no Reino de Dalmasca, e juntos trazem ao jogador um ponto de vista da história “vista de baixo”, da periferia do reino. Essa ideia já é representada desde a cutscene inicial (confira uma imagem dela abaixo). Nos momentos iniciais do jogo, assumimos o controle do irmão mais velho de Vaan, Reks, por um curto período de tempo até sua morte, depois assumimos o controle do jovem de Rabanastre, o qual permanece no grupo até o final do jogo.
A trilha sonora original (OST) de Final Fantasy XII foi composta por Hitoshi Sakimoto, Hayato Matsuo e Masaharu Iwata, a qual não trouxe para Vaan um tema musical próprio, embora ele e Penelo sejam associados à música "The Dream to be a Sky Pirate" nesse Final Fantasy e em Final Fantasy Tactics A2. Contudo, em Final Fantasy XII: Revenant Wings, Vaan ganhou um tema que nada mais é que um remix da "The Mosphoran Highwaste" da OST do Final Fantasy XII original. Esse tema foi reutilizado em aparições do personagem em spin-offs como Final Fantasy Record Keeper. Você pode conferir abaixo um pouco dessa música na versão original.
Vaan representa as feridas abertas pela guerra contra o Império Archadian, uma vez que seu irmão, Reks, foi morto em uma grande investida de Archadian contra sua cidade natal, e que acabou por subjugá-la. Em paralelo, Vaan traz consigo a rebeldia e os sonhos da juventude, desejando vingança contra o Império e liberdade para viajar por Ivalice com um dirigível aéreo (Airship) e ser um pirata dos céus (Sky Pirate).“Odiar o Império, me vingar. É tudo que eu sempre pensei. Mas eu nunca fiz nada sobre isso. Quero dizer, percebi que não havia nada que eu pudesse fazer. Isso me fez sentir oco, sozinho. E então eu sentia falta do meu irmão. Eu dizia coisas como 'eu vou ser um pirata do céu', ou alguma outra coisa estúpida. Apenas qualquer coisa para manter minha mente longe disso. Eu estava apenas... eu estava fugindo.”— Vaan (Final Fantasy XII)
O protagonismo de Vaan
Inicialmente, Basch deveria ser o principal protagonista da história de Final Fantasy XII*, mas o foco acabou sendo mudado para Vaan e Penelo. Vagrant Story, o jogo anterior da equipe e também escrito por Matsuno, apresentava um "homem forte em seu auge" como protagonista, mas o título não teve um apelo muito popular. Como parte da proposta de criar uma trama mais atraente para o grande público da série, o roteiro de Final Fantasy XII mudou o foco de um protagonista mais forte e maduro para um mais jovem e andrógeno.
* Atualização: Yasumi Matsuno acaba de relatar (em um tuíte do dia 17/04/2023) que é falso o boato de que Basch seria o protagonista de Final Fantasy XII. Pelo que parece, Vaan foi desde o início projetado para ser o protagonista do game.
Por um tempo, Vaan foi ainda mais “feminino” do que no jogo final, mas optou-se por escalar Kouhei Takeda para sua dublagem e captura de movimento, o que o tornou menos feminino e mais ativo, otimista, vigoroso e positivo. Ainda assim, ele carrega traços de ingenuidade e graça que marcam momentos engraçados e sensíveis na trama do jogo.
A trama de Final Fantasy XII investe em diferentes personagens principais e não tende a enfatizar a ideia de um protagonismo central. Essa proposta narrativa atípica na série, aliada ao fato de Vaan não ser tão heroico como personagens como Cecil (Final Fantasy IV), Cloud (Final Fantasy VII), Squall (Final Fantasy VIII), Lightning (Final Fantasy XIII) e outros, gerou discussões sobre se ele de fato deveria ser considerado o protagonista da história e sobre se ele é, afinal, um bom protagonista.
Quando pensamos em Final Fantasy, normalmente lembramos de algum protagonista estiloso e hábil que, de alguma forma, é alguém especial escolhido para enfrentar uma aventura que só pode ser traçada por ele para evitar o destino trágico de seu mundo. Assim é o caso dos protagonistas de Final Fantasy II e de quase todos da série após o IV, com alguns raros casos peculiares, como de Final Fantasy VI, o qual não possui um protagonista fixo na história. De todo modo, em praticamente todos os Final Fantasy, mesmo que de formas diferentes, há heróis únicos e marcantes que passam por uma “jornada do herói”.
Esse "herói" é praticamente o oposto do que Matsuno constrói para Vaan. O escritor inclusive faz uma sátira inteligente desse perfil de roteiro em um momento memorável onde o jogador controla Vaan e tenta convencer outras pessoas de que ele é Basch, de Dalmasca. Uma ironia formidável, uma vez que originalmente Basch seria o protagonista de Final Fantasy XII, como vimos anteriormente.
Todos os protagonistas de Final Fantasy praticamente passam por uma fase de superação e de reconhecimento até chegar a um final onde parece que irá finalmente morrer, mas retorna gloriosamente para sua batalha final, e esperançosamente sobrevive e é celebrado. Seguindo uma fórmula semelhante de desenvolvimento de personagem, temos alguns jogos da franquia que expandem a estratégia para um grupo de heróis igualmente protagonistas, geralmente quatro guerreiros da luz escolhidos, como é o caso dos clássicos Final Fantasy I, III e alguns spin-offs, como Final Fantasy: The 4 Heroes of Light.
Tal “jornada do herói” é algo bem conhecido em vários outros jogos, filmes, livros e mesmo em lendas e mitos, tratando-se de algo descrito em detalhes por críticos e também por antropólogos como Joseph Campbell, em seu clássico livro O Herói de Mil Faces. A própria Square Enix, que publica a série Final Fantasy, sabe como isso funciona especialmente bem com um herói único, e sempre escolhe apenas um protagonista para dar enfoque em sua publicidade, mesmo naqueles jogos em que não há um único destaque, mas um grupo homogêneo, como em Final Fantasy I e III.
Algo semelhante aconteceu com Final Fantasy XII. Nesse caso, a empresa escolheu celebrar Vaan como protagonista, porém ele não se enquadra no estereótipo de herói nem da forma clássica (como de Final Fantasy I e III), nem da forma como são desenvolvidos os protagonistas em geral da série (sobretudo o IV e do VII em diante), até mesmo em MMORPG, como em Final Fantasy XIV: Endwalker.
A verdade é que Vaan não foi originalmente pensado para ser protagonista, e mesmo quando foi escalado para tomar essa função no enredo, ao lado de Penelo e no lugar de Basch, ele não foi escrito e desenhado para ser “o herói”, muito menos o herói que os fãs aguardavam. Contudo, talvez o problema não esteja em Vaan, mas em esperar dele uma jornada heróica; ou melhor, em esperar que sempre haja um herói em Final Fantasy.
Para começar, Final Fantasy XII não foi feito para ter tanto foco em um personagem. É fácil ver como quase todos os personagens possuem um espaço semelhante de desenvolvimento, principalmente Balthier, Fran, Basch, Ashe e Vaan. Exceção feita para Penelo, que é bem pouco desenvolvida, e alguns coadjuvantes que não são muito presentes no grupo.
Entretanto, mesmo se quiséssemos falar de protagonismo em Final Fantasy XII, precisamos lembrar que Matsuno nunca escreveu um JRPG com uma “jornada do herói”, ao menos não de forma clássica. Suas histórias não são sobre indivíduos que descobrem seu destino e lutam contra o mal. Ao contrário, suas histórias são sobre personagens em constante procura de propósito, os quais se veem envolvidos em guerras que estão além de seu controle e são movidas por divergências e ambições (não pelo mal), e tomam decisões políticas que podem alterar o rumo das guerras, mas não as suprimir para sempre.
Se pensarmos em jogos como Tactics Ogre, Vagrant Story, Crimson Shroud e Final Fantasy Tactics, os protagonistas de Matsuno ou possuem um destino trágico ou incerto. Mesmo quando se saem bem ao final, isso não acontece sem que seja com graves custos para si e seus amigos. Seguindo essa tendência, seria realmente muito mais plausível que Basch fosse o protagonista (ao acompanhar sua história em Final Fantasy XII, é nítida a semelhança com outros protagonistas das histórias de Matsuno).
A história teve de ser contada de outra maneira, mas ainda permaneceu sem um herói. Escolher focar a trama em Vaan e Penelo no lugar de Basch não foi uma escolha ruim, mas apenas uma perspectiva diferente, com a virtude de trazer um olhar mais micro, ordinário e inocente que se encontra quase escondido abaixo das grandiosas decisões político-militares que ditam tantos destinos tristes em Ivalice quanto o da morte de Reks.
Perdas como a do irmão de Vaan são de menor relevância quando vistos de cima do tabuleiro, como uma unidade a menos em Final Fantasy Tactics, mas possuem um peso que só é possível sentir ao estar olhando uma guerra de baixo para cima. Isso é parte do que faz Final Fantasy XII tão especial dentro das tramas políticas de Yasumi Matsuno.
Me pergunto o quão necessário é a Square Enix sempre dar ao jogador o controle de um “herói da história” em Final Fantasy. Quantas formas interessantes de experiência são podadas nessa franquia ao nos limitarmos a uma “jornada do herói”? Talvez uma perspectiva singela — de baixo para cima — e coletiva — sobre um grupo de personagens — devesse ser o foco dos fãs de Final Fantasy ao olhar para Final Fantasy XII ao invés de cobrar desse título um herói único que Ivalice não precisa ter.
Revisão: Vitor Tibério