Yoko Taro: a mente por trás das séries Drakengard/NieR e Voice of Cards

Como reconhecer um RPG feito por Yoko Taro.

em 04/11/2022


Escritor e diretor na Unidade II (Divisão 6) da Square Enix, Yoko Taro é um dos nomes mais respeitados na indústria criativa dos videogames. O principal público de seu trabalho está no PlayStation, mas tem crescido também na Nintendo, sobretudo pela série Voice of Cards e por NieR:Automata The End of YoRHa Edition (Switch). Hoje vamos desvendar o que há de comum e marcante em seus jogos únicos, trágicos e subversivos.


Assim como alguns diretores de cinema, como Hitchcock, Kubrick e Goddard, também Yoko Taro pode ser considerado um auteur, o que significa que ele é um diretor de games com uma marca reconhecível em seus trabalhos e que goza de grande liberdade criativa. Desse modo, meu objetivo hoje não será tanto falar da carreira de Yoko-san, mas sim investigar o que há em comum em seus trabalhos no que diz respeito ao seu estilo próprio de direção.

Ludografia de Yoko Taro em direção criativa

Definir a "assinatura" de um autor não é uma tarefa simples, ainda mais quando ele está quase totalmente ligado a uma única franquia, ou seja, Drakengard/NieR. Fora dessa série, Yoko Taro dirigiu apenas Demons' Score, os três recentes títulos de Voice of Cards e SINoALICE. Confira a lista completa abaixo:
  • Drakengard (2003) - Diretor
  • NieR (2010) - Diretor
  • Demons' Score (2012) - Co-Diretor
  • Drakengard 3 (2013) - Diretor Criativo
  • NieR:Automata (2017) - Diretor
  • SINoALICE (2017) - Diretor Criativo
  • NieR:Automata (Become as Gods Edition) (2018) - Diretor
  • NieR Re[in]carnation (2021) - Diretor Criativo
  • NieR Replicant ver.1.22474487139... (2021) - Diretor Criativo
  • Voice of Cards: The Isle Dragon Roars (2021) - Diretor Criativo
  • Voice of Cards: The Forsaken Maiden (2022) - Diretor Criativo
  • Voice of Cards: The Beasts of Burden (2022) - Diretor Criativo
  • NieR:Automata The End of YoRHa Edition (2022) - Diretor
Nesta matéria, baseada em outra que escrevi para a SUPERJUMP (inglês), eu parto do pressuposto hegeliano de que os trabalhos de Yoko-san são uma expressão livre de seu espírito criativo, muito embora haja limitações materiais e de orçamento em cada um dos lançamentos. Com isso, quero dizer que seus trabalhos são frutos de uma liberdade criativa bem significativa com a qual ele consegue exibir personalidade, competência técnica e significado interior.


Como explico com mais detalhes em minha matéria sobre auterismo, a assinatura de um auteur pode ser reconhecida por seus temas recorrentes e/ou seu estilo de direção, e é isso que investigaremos nos próximos dois tópicos. Abaixo você pode conferir as características que serão explicadas e exemplificadas no decorrer do texto:
  • Enredo que tematiza altruísmo, existencialismo e/ou moralidade;
  • Desnaturalização das criaturas como meros "alvos";
  • Meta-entretenimento;
  • Profusão de gêneros;
  • Referências de Seinen (como Berserk, Evangelion e Sister Princess);
  • Trilha sonora com inspirações clássicas e/ou desconstrucionistas com função atmosférica;
  • Subversão a convenções de design de JRPG;
  • Escolhas de diálogo e/ou narrativa ramificada.

Os temas recorrentes nos RPGs de Yoko Taro

Vamos começar pela primeira obra dirigida por Yoko Taro, aquela que originou a série Drakengard/NieR. Nicolas Turcev, em seu livro The Strange Works of Taro Yoko (2018), enfatiza que "O grande projeto altruísta do diretor faz parte da oposição retratada entre jogos e niilismo. Ao criar jogos, Taro Yoko não está apenas experimentando. Ele quer salvar o mundo." Com Drakengard (2003), por exemplo, Turcev observou que, em contraste com a série Dynasty Warriors,
"[...] o tema do jogo foi baseado na imoralidade. A forte presença de elementos hack 'n' slash serviria de base para essa orientação. Na mente de Yoko, era de fato a oportunidade perfeita para refletir sobre a tendência que os heróis dos videogames tinham para matar sem vergonha, sem o menor traço de sofrimento moral. [...] Certamente, pensou Yoko, os personagens que participam de tais atrocidades devem realmente enlouquecer e não devem merecer um final feliz. A loucura tornou-se assim o leitmotiv do primeiro Drakengard, cujos personagens sofreram mais ou menos de insanidade, de uma forma ou de outra; incesto, pedofilia, canibalismo, sede de sangue, o exagero foi intencional e exagerado, mas não totalmente sem sentido – tanto no marketing quanto no artístico."

Embora com algumas peculiaridades, também em Drakengard 3 (PS3), de 2013, Turcev notou uma repetição dessa mesma mensagem: “não há outra justificativa para o assassinato do que a loucura dos humanos de fazerem guerra uns contra os outros”. O autor também observou que,
"[...] ao falhar em colocar uma âncora moral para basear isso, Yoko propositalmente colocou o jogador na situação do juiz e deixou seu próprio código ético colorir a narrativa. E a menos que você fosse um serial killer ou um sádico, a matança sangrenta de Zero só poderia parecer injusta e ilegítima. Esse era o truque, pois esse preconceito seria revertido mais tarde, quando os Intoners se revelassem emanações do poder da Flor cuja existência ameaçava o mundo."
Turcev interpreta a narrativa de Drakengard 3 em oposição à de NieR (PS3/X360), de 2010. Em vez de o jogador partir de uma justificativa, como o desejo de sobrevivência de uma filha, e depois ter uma revelação que coloca seus princípios em xeque, em Drakengard 3, o jogador começa como um vilão e espera uma explicação plausível para suas ações. Aceitando essa comparação, NieR também tematiza o altruísmo e a moralidade, além do existencialismo, embora com uma abordagem oposta à de Drakengard 3.


Passando para a sequência de NieR, em NieR:Automata esse tema retorna. A moralidade do jogador é colocada em dúvida quando ele tem que seguir ordens sem conhecer os fundamentos por trás delas e enfrentar robôs com comportamento semelhante ao dos humanos. Há também muitas reflexões existencialistas nos diálogos do jogo. Além disso, a própria possibilidade de altruísmo é explorada tanto no texto quanto nas mecânicas que quebram a quarta parede, principalmente no final da história.

Embora em escala bem menor, esses temas também estão presentes em sua série de RPG com cartas, Voice of Cards. Em 2021, Taro fez um dos protagonistas de Voice of Cards: The Isle Dragon Roars (Multi) ser um monstro e colocou o jogador para refletir sobre o sentido existencial e moral dos monstros em um universo de JRPG. A narrativa reflete adequadamente sobre a natureza desses monstros, juntamente a um “lado humano” deles.


Em Voice of Cards: The Forsaken Maiden (Multi), há uma abordagem menos direta da “humanidade das criaturas”, mas há uma narrativa mais complexa que trabalha o existencialismo e a moral de forma mais expressiva. O ápice dessa abordagem de questionamento sobre a natureza dos monstros na série está no último lançamento da série, Voice of Cards: The Beasts of Burden (Multi), onde o jogador pode capturar, escravizar e usar os monstros em batalha, e os monstros podem fazer o mesmo com os humanos.

Essa construção trágica e moralmente crítica também faz parte do mundo de SINoALICE (Mobile). Chamado de A Biblioteca, trata-se de um cenário de fantasia repleto de inúmeras histórias onde testemunhamos personagens dentro de cada uma desejando reviver seu autor (Inochi) para a realização de um futuro desejado. Os protagonistas trabalham juntos para reunir Inochi e lutar contra os pesadelos que devoram as histórias dessa Biblioteca, sabendo que inevitavelmente terão que matar uns aos outros para cumprir seus respectivos desejos.


Como se pode ver, todos os RPGs de Yoko Taro refletem ao menos um de três temas: altruísmo, existencialismo e moralidade. E também em todos os casos, há uma questão sobre a distinção entre criaturas vs. personagens — que expliquei em A Poética do Design Narrativo em Videogames (2021) — e uma desnaturalização das criaturas como meros “alvos” ao longo da jornada.

Esses temas não são tão marcantes no jogo de ritmo Demons' Score (Mobile), de 2013; porém, nesse caso, a história não foi escrita por Yoko Taro, e o diretor principal foi Hidehito Tanba. No entanto, é possível notar muito do estilo de Yoko Taro em termos de design de personagem e em mecânicas de shooter, o que nos leva ao tópico do estilo de direção em game design.

O estilo de direção de Yoko Taro

Para além dos temas abordados, a série Drakengard/NieR deixa claros dois aspectos da assinatura de Yoko Taro, os quais Turcev chama de "profusão de gêneros" e "meta-entretenimento".

Meta-entretenimento significa usar o design para fazer os jogadores refletirem sobre suas próprias experiências de jogo. Nos títulos dessa franquia, isso é feito por suas narrativas ramificadas e/ou experimentando com o arquivo salvo, assim conectando as memórias dos personagens com as memórias do jogador.


Profusão de gêneros, por sua vez, significa que há uma confluência de vários gêneros no gameplay, desafiando as limitações de um único gênero. Em Drakengard, observamos isso através da alternância entre os momentos de shooter e de hack n’ slash.

Em NieR, isso fica ainda mais claro: a série apresenta momentos de visual novel, danmaku, plataforma e malabarismo com ângulos de câmera. Embora essa profusão de gêneros não esteja presente em Voice of Cards, é bastante comum nas obras de Yoko Taro.
Trecho de gameplay de NieR:Automata.
Outra marca do autor está em suas referências da cultura otaku, sobretudo da demografia Seinen. Em NieR: Automata o público notou mais isso, até por sua popularidade, mas essas referências existem desde Drakengard. As mais óbvias são em relação à atmosfera sombria do mangá Berserk, além de elementos dos animes Neon Genesis Evangelion e Sister Princess. Esse último inspirou suas abordagens desconstrutivas e satíricas em eroge, harém e em alguns estereótipos de personagens frágeis, como de uma irmãzinha ou filha a ser protegida em NieR.

Todos os elementos discutidos até aqui estão presentes em todas as obras de Yoko Taro, com maior ou menor expressão, dependendo da obra. Mas há pelo menos mais uma característica que não pode ser ignorada: uma trilha sonora ao mesmo tempo clássica e desconstrucionista, que ocasionalmente se mistura com a atmosfera do jogo, alimentando sentimentos como tristeza e melancolia.


No entanto, o fato de Taro ter trabalhado com diferentes compositores também reflete diferentes abordagens de sua assinatura musical nas trilhas de Drakengard, NieR e Voice of Cards.

Em Drakengard, Nobuyoshi Sano (compositor) usou uma orquestração caótica a partir de trechos de música clássica (como de Dvorak, Debussy, Mozart e Wagner), acrescentando cacofonia e usos de ruídos como uma abordagem expressionista para enfatizar a loucura dos personagens.
Cena de Drakengard 3.
Na série NieR, Keiichi Okabe (compositor) também teve inspirações clássicas, comuns aos JRPGs desde Koichi Sugiyama (da série Dragon Quest). Contudo, Okabe-san deu grande preferência a canções, algumas dessas com linguagem inventada ou com mistura de muitas linguagens, como inglês, francês e japonês. Como Turcev observou, essas canções não foram usadas apenas como "música de fundo":
"[...] a trilha sonora não foi imaginada, como geralmente acontecia, para ilustrar uma cena, um movimento ou um lugar. Okabe não procurou trazer à tona a essência desses elementos, nem fazer de sua música um simples acréscimo. Em vez disso, Taro Yoko deu-lhe um tema - tristeza, morosidade - que ele então diversificou em diferentes tons para compor as melodias. Com variações "de uma tristeza quiescente a uma tristeza intensa", explicou Okabe, sua música foi projetada para criar a atmosfera, para permear o jogo e seu mundo, ao invés de simplesmente acompanhá-lo."
Seguindo a lista exibida na introdução desta matéria, ao menos mais dois pontos precisam ser lembrados do estilo de direção de Yoko Taro. Várias escolhas de game design mencionadas anteriormente também se relacionam à forma como esse diretor busca subverter algumas convenções de design de JRPG, particularmente aquelas que remontam a Dynasty Warriors e Dragon Quest. O diretor questiona escolhas como naturalizar o mal em não-humanos e o ato de matar ordas de inimigos sem consequência moral e psicológica.

Por fim, não se deve esquecer de um traço marcante na parte de design narrativo: escolhas de diálogo e narrativa ramificada. As escolhas de diálogos nos jogos de Yoko Taro não costumam ser frequentes, mas algumas delas, em momentos decisivos da trama, podem ter bastante peso. Além disso, é recorrente em suas obras a existência de múltiplos finais e diferentes percursos, que podem ser sobrepostos, ou continuações diretas. A ramificação narrativa é usada na série Drakengard/NieR e no primeiro Voice of Cards.

O que realmente é interessante na forma como Taro usa esse recurso está em como ele cria diferentes ramos que muitas vezes não são alternativos, mas sim complementares, e às vezes até mesmo coexistentes. Um exemplo disso são as rotas A e B de NieR:Automata. Elas não são alternativas: ambas existem ao mesmo tempo na perspectiva de personagens diferentes. Na rota A, com a personagem 2B; e na rota B, com o 9S.

A marca geral de Yoko Taro e a particularidade de cada um de seus trabalhos

Decifrar a "assinatura" de um autor está longe de ser uma ciência exata, mas é possível identificar, ainda que de forma imprecisa, os elementos de conteúdo e forma das obras de um autor que as tornam reconhecíveis na indústria de videogames, e foi isso o que fiz nesta matéria.

Paralelamente a essas características, que são mais ou menos constantes em seus trabalhos, as diferentes criações de Yoko Taro também têm coisas únicas. A estética e a narrativa de NieR, por exemplo, são claramente influenciadas pelos jogos de Fumito Ueda, como ICO (PS2/PS3) e Shadow of the Colossus (Multi), influências essas que não são tão marcantes em Drakengard; já na série Voice of Cards, há uma forte inspiração de RPGs de mesa sem paralelo com Drakengard/NieR.

Portanto, é preciso deixar claro que o trabalho de Yoko Taro não é uma mera repetição de temas e fórmulas de design. Existem também conceitos e características únicas para cada uma dessas obras, bem como diferentes abordagens para os aspectos mencionados. Essas variações tornam os jogos de Yoko Taro uma experiência memorável, e não apenas uma reiteração de sua assinatura.

Revisão: Davi Sousa
Esta é uma nova versão de um texto publicado pelo mesmo autor na SUPERJUMP (inglês)
Siga o Blast nas Redes Sociais

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Você pode compartilhar este conteúdo creditando o autor e veículo original (BY-SA 3.0).