Análise: NieR:Automata The End of YoRHa Edition (Switch) é único, profundo e muito bem adaptado

O port desse clássico moderno é excepcional e dá um novo acesso à experiência única da direção de Yoko Taro.

em 06/10/2022

NieR:Automata The End of YoRHa Edition é um port para Switch do RPG de ação pós-apocalíptico da Square Enix, desenvolvido em parceria com a PlatinumGames e sob a direção de Yoko Taro. O jogo mistura mecânicas de hack n' slash com shoot 'em up e text-adventure em uma narrativa trágica e ramificada que explora questões humanistas e existencialistas. Além de contar com todo o conteúdo lançado até então nas demais plataformas, a nova edição adiciona um DLC cosmético com homenagens aos demais títulos da série NieR.


Um trágico confronto entre o humanismo e o existencialismo

A história começa no ano 11945 d.C., aproximadamente oito mil anos após o final D do NieR original, também escrito e dirigido por Yoko Taro. Restaram apenas ruínas na Terra dos locais que antes eram parques, fábricas, castelos e cidades. Cobertas por vegetação, mar e areia, as antigas selvas de pedra deram lugar a habitats para animais silvestres e máquinas.

O jogador começa controlando uma androide chamada 2B (com voz de Yui Ishikawa), que é acompanhada por seu parceiro, 9S (com voz de Natsuki Hanae). Ambos com ótimas interpretações também em inglês (respectivamente de Kira Buckland e Kyle McCarley). Eles fazem parte de uma organização chamada "YoRHa", instalada em uma estação espacial (Banker) que orbita a Terra e envia suas unidades para atacar as máquinas e defender os androides remanescentes na Terra denominados de Resistência.


Segundo conta a YoRHa, em um passado remoto, os humanos teriam sido atacados por aliens e suas máquinas, as quais foram deixadas para trás. Para sua sobrevivência, a humanidade teria se refugiado na Lua, deixando na linha de frente seus androides, feitos à imagem e semelhança dos humanos em aparência e personalidades, mas muito mais poderosos, capazes de enfrentar os robôs alienígenas. Desde então, a organização supostamente protege o legado da humanidade e luta por seu futuro.

Enquanto isso, os robôs alienígenas estão se adaptando aos diferentes biomas e reinterpretando os vestígios humanos na Terra. Esses robôs são capazes de se questionarem tanto sobre o propósito de existirem quanto sobre o porquê de terem sido lá abandonados. Para preencher essa lacuna em seu ser, não apenas imitam hábitos humanos, mas também reimaginam seus símbolos e conceitos, como ao criarem uma religião e até formarem uma monarquia hereditária.


Esses robôs não são “vilões”, embora os androides sejam levados a vê-los como tal, porém começam a ser infectados por um vírus lógico capaz de reescrever seus sistemas e torná-los inconscientes e agressivos. Nesse contexto, os protagonistas se aliam a um grupo pacifista de máquinas liderado por Pascal. A dupla também tenta entender a razão de ser das máquinas, o passado da humanidade e as reais intenções da YoRHa.

Todo o mundo é recheado com referências filosóficas, sobretudo de existencialistas, como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Friedrich Nietzsche. A trama traz uma dramática disputa entre uma perspectiva humanista que motiva as invasões dos androides e uma perspectiva existencialista por trás do comportamento das máquinas que estão na Terra.


Apesar do terceiro ato ter um tom fantástico e catastrófico um pouco exagerado e do texto em relação às máquinas por vezes ser pouco sutil e sofisticado, e muito direto e repetitivo em alguns temas, trata-se de um roteiro bem inspirado, complexo, imprevisível, bastante sensível e com um subtexto profundo e instigante. Os personagens também são bem escritos. Embora não tão intimamente desenvolvidos como os protagonistas de NieR: Replicant, compensam isso desenvolvendo vários conceitos; as side-quests e algumas excelentes lutas contra chefes também são muito bem projetadas para explorá-los.

Como de praxe no auterismo de Yoko Taro, NieR: Automata segue uma estrutura de narrativa ramificada com vários finais. Porém, além da proposta ser mais densa e justificar melhor suas escolhas, só é necessário retroceder na história uma vez, e mesmo nesse caso há mudanças significativas ao se assumir a perspectiva de outro personagem. Há vários finais falsos, mas os cinco principais (A, B, C, D e E) são complementares e essenciais para entender a obra.

Um divertido laboratório de game design a céu aberto

Sob os cuidados de Isao Negishi (de Babylon’s Fall) e do senior game designer da Platinum Takahisa Taura (diretor de Astral Chain), o gameplay de NieR: Automata segue seu antecessor ao misturar hack n' slash, shoot 'em up e text-adventure, mas o faz de forma mais integrada, dinâmica, variada e balanceada, com inimigos que acompanham o level do jogador. O resultado é uma experiência única e multifacetada que a todo momento diverte e surpreende com um amálgama de escolhas improváveis e engenhosamente conectadas.

O coração da jogabilidade está no hack n' slash, com fluidas animações, uma mecânica de esquiva perfeita, apertando ZR no momento do golpe do inimigo, e um simples sistema de combos que combina o uso da esquiva com o emprego de uma ou duas armas simultâneas corpo a corpo. Além disso, uma parte do combate depende de dinâmicas de tiro.


Os androides são acompanhados por pequenos robôs voadores (pods) que podem atirar contra um alvo fixado, além de serem personalizados com um par de ataques especiais (ofensivos ou defensivos). Ocasionalmente eles propiciam experiências de run n' gun em câmera fixa vertical, como na série Mega Man.

Automata também implementa sistemas de tiro com câmera fixa guiada (scrolling shooter) ou com livre movimentação (multidirectional shooter). O primeiro caso ocorre quando os androides estão em suas naves-mechas durante combates aéreos, às vezes chegando a se transformar em um bullet hell. Já o segundo caso, ocorre quando os personagens jogáveis estão em processo de hackeamento, algo utilizado tanto na exploração em mundo aberto quanto durante os combates.


Quando o jogador assume o controle de 9S, em vez de ter uma segunda arma branca à sua disposição, ele pode hackear computadores e até seus inimigos durante a batalha para os controlar ou danificar. Em hacking mode, o jogador move uma seta com três vidas que dispara lasers contra obstáculos ou inimigos a fim de interceptar esferas negras que representam os sistemas a serem atingidos.

Essa mecânica intermitente no design de batalha, além de criativa e ousada, traz uma experiência nova durante o retorno a alguns locais e confrontos na segunda rota do jogo. Por outro lado, tem a desvantagem de tornar algumas lutas muito fáceis e de desorientar o ritmo de hack n' slash. Ademais, ao se limitar a uma só arma, também enfraquece o sistema de combos.


Quanto à experiência de text-adventure, diferentemente de NieR: Replicant, em Automata está dispersa em momentos curtos e esporádicos, na leitura de arquivos de computador ou memórias. Esses eventos possuem uma exposição textual acompanhada de música e paisagem fixa ou fundo preto. Como em seu antecessor, há escolhas textuais, mas em Automata são muito poucas e de impacto quase irrelevante.

No mais, vale lembrar que este não é um hack n' slash especializado em ação, como Bayonetta, mas sim um JRPG. De forma acessível e prática, o jogo divide seu foco com uma economia simples de consumíveis e equipamentos, status, level, upgrades de armas, customização de habilidades passivas e ativas, e até pescaria.

A customização é feita com base em chips ou periféricos implantáveis em androides ou pods. A morte do jogador também foi bem pensada. Ao morrer, é deixada para trás uma carcaça, mas é possível reaproveitar seus recursos voltando até lá com um novo exoesqueleto que carrega o software e design resgatados do modelo anterior. Algumas carcaças de outros jogadores online também podem ter seus recursos reaproveitados.

A adaptação para o Switch de uma experiência muito bem pensada e inovadora em JRPG

Assim como os NieR: Replicant e NieR: Reincarnation, Automata conta com conceito artístico de Kazuma Koda, um mestre na concepção de lugares meditativos e desolados em ruínas. Neste título, destacam-se alguns cenários fechados, como uma fábrica e um castelo com um design de interior que aproveita diferentes ângulos de câmera fixa e um parque de diversões a céu aberto que termina em um majestoso castelo-teatro com traços do castelo da Disney. No mais, há uma variedade razoável de ambientes, embora, como mundo aberto, faça falta uma região maior.

A apreciação da cenografia nesse port é um pouco comprometida, pois no híbrido há uma qualidade mais baixa em texturas, iluminação e alguns outros fatores. Contudo, a Virtuos (empresa responsável pelo port) entregou uma qualidade próxima à de PS4, mas com maior saturação e anti-aliasing, 30 fps, e resolução de 1080p na dock e 720p no portátil.



Esta versão usa também HD Rumble para proporcionar uma experiência tátil mais imersiva, e traz a opção de controle de movimento para executar golpes. Esse recurso funciona bem em combate usando o 9S, pois ele possui um moveset mais limitado. Por outro lado, são mais recomendados os botões para os combos com a 2B, além de ser preferível o analógico do Pro Controller para fases de hacking que exijam maior precisão.

O design dos personagens mudou em relação ao estilo até então de Drakengard/NieR. Para essa nova aparência, Automata contou com Toshiyuki Itahana (de Final Fantasy IX e das séries Crystal Chronicles e Chocobo) e Akihiko Yoshida, conhecido por Final Fantasy XIV, Bravely Default e os jogos da Ivalice Alliance.


A única ressalva está em algumas poucas escolhas desnecessárias e constrangedoras no figurino feminino, mas que podem ser ignoradas mais facilmente do que no caso de Replicant, jogo no qual a protagonista feminina utiliza uma roupa bastante apelativa e inverossímil.

As máquinas comuns têm formas singelas e arredondadas que favorecem a empatia e a percepção de fragilidade, em contraste a quando estão agressivas (com olhos vermelhos). Enquanto os protagonistas androides têm bastante personalidade em preto e branco, exibindo formalidade e elegância em estilo de anime, e de forma coerente com a tendência minimalista e monocromática de parte da estética do jogo.


Um grande destaque do jogo que merece ser comentado é a experiência de usuário e interface (design de UX/UI). Com um ousado trabalho concebido e liderado por Hisayoshi Kijima — conhecido por Metal Gear Rising: Revengeance e Astral Chain —, Automata traz menus e ícones de status altamente interativos e integrados à sua ficção tecnológica.

A depender dos danos, a tela traz efeitos como distorções e pixelização. Todas as representações gráficas de interface estão associadas ao sistema do androide. Esse design de UX/UI não só traz imersão como experiência metanarrativa, a exemplo de quando 9S “entra” em 2B e ajuda nas configurações de seu software, ou no Final E, que requer conexão com a internet e interação com o save.


A direção de som, liderada por Misaki Shindo (da série Bayonetta), é dinâmica e deliciosa no ambiente e em combate, e acompanha a interatividade visual do game; os sons também podem sofrer efeitos adversos, como ficar mudo ou abafado. Por fim, destaca-se uma linda e marcante trilha sonora de Keiichi Okabe, em parceria com o estúdio MONACA.

A trilha sonora tem sons sintéticos para cenas com elementos tecnológicos, mas se sobressaem instrumentos de corda, percussão e coro. Trazendo o tema da humanidade, algumas músicas têm vozes em dezenas de idiomas combinados, às vezes com crianças, e frequentemente com um delicado vocal solo feminino que traz grande intimidade emocional.


O ritmo oscila entre momentos rápidos, para a adrenalina de batalhas com tom épico, e outros lentos, para favorecer a reflexão e a melancolia. Assim como em NieR: Replicant, esses dois casos costumam coincidir respectivamente com dois tipos de harmonia.

Em momentos épicos, a trilha traz um “som menor clássico”, muito semelhante a músicas de coro dramáticas e vultuosas, como Carmina Burana, de Carl Orff. De resto, tende a ter um “som menor suave”, com escolhas harmônicas e melódicas que trazem um tom triste e sereno.

Uma obra brilhante com um excelente port

Embora com ressalvas pontuais em narrativa, gameplay e audiovisual, NieR:Automata The End of YoRHa Edition é um jogo altamente criativo, engenhoso, sensível e profundo, com muitas camadas coerentes entre si. Além disso, consegue ser acessível e divertido ao mesmo tempo em que integra de forma experimental suas escolhas exóticas de batalha, interface, música e outras em torno de problemas humanistas e existenciais.

Se o que o impede de jogar essa obra é o receio pelo port do Switch, esqueça isso, a adaptação foi muito bem-feita para o console e ainda aproveita suas funcionalidades. O título é obrigatório a qualquer fã de JRPG de ação ou de jogos experimentais e filosóficos.

Prós

  • Design narrativo criativo e perspicaz com seus personagens e com sua forma ramificada e aberta;
  • Enredo interessante, crítico e profundo com questões importantes acerca do humanismo, do existencialismo e da própria linguagem dos videogames;
  • Direção de som e design de UX/UI bem-feitos, ousados e coerentes com a proposta metanarrativa e ficcional do game;
  • Trilha sonora  imersiva, com personalidade, e com algumas lindas composições;
  • Um game design de modo geral único e coerente em torno das premissas tecnológicas da ficção e dos problemas filosóficos abordados;
  • Dinâmica de batalha acessível, fluida, diversificada e razoavelmente customizável;
  • Direção de arte e level design com cenários memoráveis, exploração prática e com side quests bem boladas para o aprofundamento da imersão nos temas.

Contras

  • Final um tanto fantasticamente exagerado e catastrofista;
  • O texto poderia ser mais sutil e sofisticado com sua mensagem sobre as máquinas, frequentemente é muito direto e repetitivo;
  • Ritmo de batalha um pouco quebrado e facilitado na jogabilidade com 9S;
  • Poderia ter um pouco mais de complexidade no combate e nos elementos de RPG;
  • O mundo aberto poderia ser um pouco mais vasto em extensão e ecossistema.
NieR:Automata The End of YoRHa Edition — Switch — Nota: 9.5
Revisor: Vitor Tibério
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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