Jogando com crianças – parte 3: como a Nintendo é passada de uma geração de jogadores para a outra

Quando os jogos são um legado pessoal que queremos passar adiante.

em 26/10/2022

Esta é uma série de textos chamada Jogando com Crianças, com foco na experiência de jogar com meus filhos, Heitor, de 7 anos, e Dante, de 3 anos. O objetivo é prover reflexões e parâmetros para aqueles que querem jogar com crianças – filhos, sobrinhos, irmãos, amigos, etc. – e não sabem como, quando e quais jogos.


Toda criança é diferente e não há uma fórmula única. Portanto, tudo aqui vem da construção de minha visão pessoal, combinado?

A série corre em paralelo com textos no GameBlast, mas neste caso os temas são diferentes. Lá, abordo alguns jogos cooperativos – todos eles também disponíveis no Switch, confira – que, apesar de acessíveis a crianças, não foram feitos com esse público-alvo em mente e podem representar um passo adiante na jornada infantil no mundo dos jogos. Os links para as partes anteriores estão no final do texto.

Por aqui, falaremos de gerações.



Big N e os jogos para a família

É tradição da Nintendo manter uma imagem de criadora de jogos voltados à família. Basta conferir o histórico da categoria Best Family Game do The Game Awards para ver que entre os indicados sempre há pelo menos um título da empresa – em 2019, todos os cinco eram dela!

“Jogo para a família” geralmente quer dizer que o produto evita temas polêmicos, violência, conteúdo sexual e linguagem ofensiva. Formando o pacote, geralmente há personagens cartunescos e carismáticos; direção de arte vibrante e chamativa; e, não menos importante, game design direto e acessível. Tudo isso está na base de várias franquias nintendistas.


Quem nunca viu algum “hardcore gamer” rosnando pela internet que a Nintendo só faz jogos infantis, dando ao adjetivo tom pejorativo? Mesmo que esse pensamento seja indigno de atenção, aflui de uma mesma fonte que tem que ser levada em consideração: a questão do público-alvo.

Ao tentar mostrar-se convidativa a todas as faixas etárias, a Nintendo precisa assegurar ao seu consumidor que isso inclui as crianças, correndo o risco de ser julgada pela falsa distinção que considera que “infantil” e “adulto” são categorias mutuamente excludentes e incomunicáveis. Não são. Parafraseando C. S. Lewis ao falar de suas Crônicas de Nárnia, podem existir jogos infantis no sentido de que alcançam também as crianças, não no sentido de que estão abaixo do interesse adulto.



Podemos ver um exemplo do cuidado em evitar esse “estigma” quando o BAFTA Game Awards excluiu a categoria de Melhor Jogo para Crianças, presente até 2006, misturou-a à categoria Casual e depois a substituiu por Melhor Jogo para a Família. Logo, jogos infantis e jogos familiares costumam se entrelaçar em vários aspectos através da parte da produção que busca alinhar-se ao público-alvo.

A linha é tênue; é difícil manter-se nela e fincar a identidade no entrelugar de “todas as idades” sem pender nem para mais nem para menos. Muitas vezes, a Nintendo faz um bom trabalho e corresponde às expectativas tanto de quem acompanha sua história há décadas quanto de quem a conheceu agora.



Passando o bastão

A Nintendo é realmente muito esperta. Ao focar em jogos “para toda a família”, a empresa não apenas mira uma audiência mais abrangente em idades, mas, como resultado disso, cria uma ponte que alcança gerações. O caráter de nostalgia imbuído em várias de suas franquias serve para vender saudades das emoções da infância, mas atinge além disso.

Explico: muitos dos jogadores que se apaixonaram pelo NES, SNES e Nintendo 64 nas décadas de 1980 e 1990 cresceram acompanhando os personagens icônicos da companhia, nutridos a cada lançamento por algo ao mesmo tempo familiar e novo. Nossas vivências são transformadas em memórias e estas, por sua vez, se cristalizam como parte cumulativa de nossa contínua formação de identidade. Os jogos mais especiais da infância integram essas memórias e se tornam parte de quem somos.


Essa geração da qual falo é exatamente a que hoje tem crianças, sejam filhos, sobrinhos ou afilhados. Essas mães e pais, tias e tios representam boa parte da força de trabalho e de consumo, o que implica em duas coisas: uma é que talvez essas pessoas não tenham tempo o bastante para jogar como gostariam; outra é que elas, dentro de suas possibilidades, são as compradoras que fornecerão os presentes e a diversão às crianças amadas.

Quando unimos todos esses pontos, o resultado é um público de adultos que jogam (ou que gostariam de poder jogar) e que veem no videogame um potencial de simultaneamente reviver emoções nostálgicas da infância e tentar reproduzi-las nas crianças com quem se relacionam.



Exportando sentimentos

Ok, não fiz uma grande pesquisa para afirmar essa dinâmica geracional. Baseio-me em minha própria experiência. Funciona mais ou menos assim: vamos considerar uma pessoa jogou muito Mario na infância e, talvez, ao longo da vida. Um dia, ela passa a ter filhos. É natural que ela queira compartilhar essa parte de si, buscando afinidades entre sua própria infância com a de sua prole. Então, lá vem Mario de novo!

Pode até ser que a pessoa tenha parado de jogar por vários anos, ou que determinada franquia não lhe seja mais prazerosa na prática, apenas nas memórias. Contudo, ao ter uma criança consigo, ela encontra a oportunidade perfeita para recriar seu passado interior, terceirizando-o na pessoinha com quem convive.


Isso tudo abre portas para fomentar vínculos afetivos e conexões no cotidiano. Jogar juntos é algo muito significativo, como já disse antes.

Talvez eu possa resumir assim: quando ainda não tinha um ano de idade, Dante já sabia quem era Luigi. Isso foi graças ao personagem de pelúcia que um amigo meu, colecionador de jogos, deu para Heitor tempos atrás. Kirby, Mario, Yoshi, Peach, Donkey Kong, Link, entre outros, já são velhos conhecidos de ambos.



Um dia desses, enquanto eu lia a análise de Tunic (Multi) aqui no Nintendo Blast, Dante apontou para a imagem que mostra a raposinha de roupa verde erguendo a espada e disse: “olhe, papai, parece Link!”. De fato, a série Zelda é a principal inspiração de Tunic, mas eu fiquei surpreso, pois não sabia que Dante conhecia o herói de Hyrule ao ponto de associá-lo como referência.

Eu tenho o hábito de lavar os pratos ouvindo músicas de certos jogos. Meu orgulho foi às alturas quando Heitor, aos 5 anos, me abordou em um momento desses, indagando corretamente “Chrono Trigger, papai?”. No começo deste mês, passei diante da porta do quarto enquanto ele brincava sozinho e o ouvi cantarolar Stickerbush Symphony, a obra-prima entre as obras-primas de David Wise em Donkey Kong Country 2 (SNES).



Há um tempo, Dante passou a se interessar por minha gaveta de jogos, especialmente pela caixa de Super Mario Galaxy 2 (Wii). Ele a abre, retira o conteúdo, folheia os panfletos e o manual (bons tempos) como se fossem livros ilustrados.

Coitado do manual: a capa já foi quase totalmente arrancada! Para evitar ainda mais danos futuros, resolvi comprar para Dante revistas sobre os personagens dos quais ele gosta, uma de Mario e outra de Sonic. Além de preservar o que resta do manual, as revistas têm muito mais conteúdo visual para o meu filho aproveitar, percorrendo o legado histórico de vários personagens marcantes dos jogos.
E tudo isso ocorreu por meu intermédio, intencional ou não.

Quem sabe, faz

Logicamente, a passagem do legado nostálgico não é exclusiva à Nintendo. Heitor e Dante também adoram Sonic, Tails, Crash, Coco, Rayman, Spyro, Sackboy e até “Besourinho”, como chamamos o protagonista de Hollow Knight (Multi).



Um caso exemplar para mim pode ser o de Klonoa, cujo nome os meninos aprenderam nos últimos dias, mas ainda não jogaram. Eu mesmo nunca pus minhas mãos nele, apesar da capa do jogo de PS1 me atrair na época; é uma das lacunas em minha história de amor com jogos de plataforma.

Talvez eu não chegue a jogar o recente remaster Klonoa Phantasy Reverie Series (Multi), que traz os dois jogos principais da série, mas há algo em mim que quer que meus filhos o conheçam e aproveitem. Olha aí a terceirização dos sentimentos!



Mesmo sem monopolizar o campo, historicamente, a Nintendo é a grande desenvolvedora e editora que dá atenção mais consistente aos nichos demográficos infantil e familiar, nos termos descritos no começo. Como companhia, ela sabe explorar seus personagens de múltiplas maneiras sem desvirtuá-los.

Como um encanador bigodudo que pula sobre cogumelos se tornou médico, piloto de kart, tenista, golfista, jogador de futebol e lutador de arena? E como Luigi virou um Caça-Fantasmas? E como todos esses passeios por outros gêneros conseguiram manter a identidade dos personagens e de seus jogos? Não sei, só sei que foi assim. Consistência é a palavra-chave.




Sonic, podemos dizer, não teve a mesma sorte, percorrendo altos e baixos. Cada nova ideia para o ouriço azul e sua turma é como uma loteria: não sabemos qual será o resultado, só podemos torcer para dar certo.

Legado pessoal

Na prática, passar essa herança afetiva significa que eu sou o provável comprador de três tipos de jogos: os que eu mesmo quero jogar; títulos nos quais não tenho interesse individual, mas que acho que darão uma boa jogatina com os filhos; e, ainda, outros que apenas as crianças vão jogar.

Nostalgia é um sentimento complexo. Às vezes, é recompensadora, reconfortante e nos ajuda a lembrar quem somos; em outras, é superficial, predatória, talvez frustrante. Por isso, temos que aprender a distinguir quando ela vem de fora pelos estímulos de mercado e quando ela realmente vem de dentro de nós pela conexão real que resgata um passado relevante ao presente. É este tipo de afeto que queremos conservar e compartilhar com as próximas gerações.

No próximo capítulo...

Mudando o ritmo semanal desta série, ainda teremos uma quarta parte em algum momento de novembro, e o tema será acompanhar a autonomia da criança que se aventura em jogos solo. Até lá!

Revisão: Davi Sousa

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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