Jogando com crianças – parte 2: cooperação e desenvolvimento humano

Os videogames são produtos culturais que têm no design interativo sua principal definição – e essa interação inclui a social.

em 19/10/2022

Esta é uma série chamada Jogando com Crianças, com foco na experiência com meus filhos, Heitor, de 7 anos, e Dante, de 3 anos. O objetivo é prover reflexões e parâmetros para aqueles que querem jogar com crianças – quaisquer crianças: filhos, sobrinhos, irmãos, amigos, etc. – e não sabem como, quando e quais jogos. Toda criança é diferente e não há uma fórmula única. Portanto, tudo aqui vem da construção de minha visão pessoal, combinado?


Caso ainda não tenha visto, já publiquei três textos sobre o tema: uma crônica de Dia dos Pais e duas introduções (aqui e aqui). Como na semana passada, este texto também serve de paralelo a outro publicado em simultâneo no GameBlast. A abordagem segue a mesma linha, mas os jogos são diferentes (e a maioria deles também está presente no Switch, confira lá).

Socioconstrutivismo

Com base no psicólogo Lev Vygotsky (1896-1934), o socioconstrutivismo é uma teoria interacionista do desenvolvimento humano. A ideia é simples, mas dotada de grande amplitude e profundidade: o desenvolvimento cognitivo é construído continuamente no indivíduo em meio às interações sociais e culturais.

O ser humano, como um animal social, interage, observa, imita, aprende, questiona, sintetiza, expressa, dialoga e ensina. Isso vai desde a aquisição da língua, os comportamentos, a visão de mundo, os valores culturais e os relacionamentos afetivos. Pelo contato, os indivíduos potencializam uns aos outros, de forma que a pedagogia socioconstrutivista entende que é preciso haver consciência e intencionalidade do papel formativo das interações sociais.

Os videogames são terrenos férteis para isso.



Jogar juntos é muito significativo

No livro Emotion By Design: How Games Move Us, Katherine Isbster afirma que “O ato de jogar socialmente, então, ajuda a atender a uma das mais fundamentais necessidades humanas [a interação social] de maneiras que jogar sozinho (mesmo com NPCs carismáticos) provavelmente não faz.

Um exemplo pessoal é que não achei Super Mario 3D World (Wii U/Switch) um produto notável. Está longe de ser ruim, mas também de ser marcante. De forma bem resumida, um dos motivos é como a câmera e o design de níveis são projetados levando em conta a gameplay de multiplayer casual que comporte quatro jogadores numa mesma tela.



No entanto, o que, para mim, limita esse jogo, ao mesmo tempo o redime; se tivesse jogado sozinho, não sei se teria gostado o bastante para querer chegar até o fim, mas, ao jogar com Heitor, a sensação foi bem diferente e fez valer a pena.

Não quero dizer que jogos multiplayer são melhores, mas que tocam um ponto da experiência humana que outros formatos não alcançam dessa maneira. Uma vivência compartilhada não é subtraída, ela é multiplicada.



Isso é especialmente verdade para as crianças e o olhar fresco e voraz com que veem o mundo e os horizontes. Elas só precisam da interação com uma mão confiável para segurar as delas e uma mente aberta para responder aos milhões de “por ques” que fervilham em suas indagações científicas.

Ao lidar com os pequenos, você é o mais experiente que vai guiar a dupla (ou grupo) e tomar a dianteira da interação. Isso significa quatro coisas a respeito do jogar com crianças.



“É perigoso ir sozinho! Leve isto.”

Primeiro, como possivelmente sua habilidade e compreensão do jogo são maiores que as da criança, é provável que você seja responsável por cruzar os trechos mais complicados e vencer os oponentes mais difíceis.

Isso me ocorreu, por exemplo, em vários momentos de Donkey Kong Country Tropical Freeze (Wii U/Switch). É um jogo de plataforma generoso no número de vidas acumuladas e em permitir comprar (com moedas do jogo, claro, também numerosas) alguns itens consumíveis que melhoram as chances de sobreviver aos estágios. Isso não o torna fácil; ao contrário, o game pode ser bastante desafiador e é exatamente essa a razão de serem oferecidos os recursos que mencionei, como incentivo a continuar tentando.



Heitor tinha 6 anos quando jogamos juntos e passamos longe do Funky Mode, que torna Funky Kong jogável com sua miríade de atributos superiores, funcionando massivamente como aquilo que costumamos chamar de “modo fácil”.

Ao invés de empregar uma modificação definitiva da dificuldade, eu mesmo operei como nossa garantia de sucesso. Não quero dizer que sou o bonzão ou algo assim, mas que, por gostar de jogos de plataforma e de Donkey Kong, tenho o empenho necessário para repetir as tentativas quantas vezes forem necessárias para trilharmos todos os caminhos até a vitória final.



Comunicação é a chave

Minha liderança não quer dizer que Heitor jogou Tropical Freeze passivamente. Mesmo que eu fosse o principal atacante contra os chefes, eu dizia para Heitor que o objetivo dele era defensivo: ele devia tentar sobreviver para tentar me ajudar quando eu precisasse ser salvo.

Para que isso aconteça, é necessário conversar. Muito. Esta é a segunda forma de tomar a dianteira: você comunica à criança o papel de cada um. Sendo o líder, lembre que a melhor maneira de cumprir os objetivos é fazer os outros entenderem a importância do trabalho em equipe e da participação de cada um.



Snipperclips: Cut it Out Together (Switch) promove esse tipo de comunicação. Se a dupla não conversar, não conseguirá concluir os desafios propostos. Cada jogador controla adoráveis pedaços de papel personificados que podem ser cortados, mas também podem cortar outros papéis a partir do seu formato atual.

Isso quer dizer que um jogador terá que cortar o outro em formas côncavas que permitam carregar algo sem derrubar ou em espetos que estourem balões, ganchos que agarrem uma alça, encaixes que combinem entre si, etc. O subtítulo já deixa clara a intenção básica do jogo: “cortem juntos”.



Claro que também há a diversão de cortar o outro inesperadamente e começar uma guerra de picotar o amigo, mas, para cumprir as tarefas e terminar as fases, é crucial que a conversa seja constante: “agora se abaixe para eu subir em você”, “fique paradinho nessa posição para eu cortar sua ponta” ou “me corte para eu ficar com uma ponta fina e alcançar o botão no espaço estreito”.

Negociações

Terceiro, conversar também quer dizer negociar. No que depende da criança, ela vai querer seguir as próprias vontades e pronto. Costumo lembrar aos meus meninos que, quando jogamos juntos, não podemos atender apenas aos desejos de um dos dois. Temos que pensar na diversão do outro também e ceder de vez em quando.



Um exemplo é como Heitor sempre quer prioridade na escolha dos personagens. Às vezes, é o que tem as habilidades mais interessantes, como no caso de Tropical Freeze, em que Donkey Kong é presença obrigatória, mas seus movimentos são menos flexíveis que os dos companheiros Dixie, Diddy e Cranky.

Eu também gosto mais dos macacos ágeis e versáteis do que o pesadão DK, mas passei a maior parte do tempo com ele. Em alguns momentos, porém, expliquei a Heitor que era melhor que eu estivesse com Dixie para termos mais chances de atravessar os percursos mais exigentes.



Algo semelhante aconteceu em Luigi’s Mansion 3 (Switch). Há duas versões do irmão mais novo: o Luigi caça-fantasmas e o Gooigi, o clone de gosma. Heitor, como eu previa, fez questão de jogar com Luigi. Esse título se destaca pelo co-op muito bem executado no qual os personagens são parecidos, mas têm diferenças fundamentais que se complementam, fazendo com que ambos sejam necessários e impossibilitando que o jogador mais habilidoso faça tudo sozinho enquanto o outro o segue passivamente.

Gooigi, sendo uma meleca, não se machuca em superfícies perfurantes e pode atravessar grades e lugares apertados. No entanto, além de ter menos pontos de saúde, se for tocado por água ou fogo ele se desintegra e tem que ser reativado a partir do equipamento de Luigi, o que o torna dependente do bigodudo de carne e osso. Mesmo assim, ambos ficamos muito satisfeitos, porque a dinâmica da gameplay é equilibrada e conferiu uma ótima sensação de trabalho em equipe no momento a momento.



Treinando a pequena jogadora

Assim como a terceira, a quarta forma também é uma variação da segunda. A comunicação ainda é direta e parte do maior, mas com o intuito de incentivar o menor a tentar, desbravar, arriscar e ousar. É simples: diante de um objetivo, diga para a criança que é a vez dela assumir uma responsabilidade para executá-lo.

Pode ser pegar um item em um local complicado de Super Mario 3D World ou Tropical Freeze, encarar inimigos fortes ou chefões em Luigi’s Mansion 3 enquanto você os distrai, planejar os recortes para solucionar um problema em Snipperclips, seguir na frente e guiar o caminho em Captain Toad: Treasure Tracker (Multi) e por aí vai.



O ponto é direcioná-la para momentos de protagonismo dos quais ela pode emergir orgulhosa e mais consciente de sua capacidade e importância para a equipe. A experiência vem passo a passo.

É a criança quem joga comigo ou eu quem jogo com ela?

No fim das contas, mesmo se a sua situação seja invertida e a criança for a mais experiente e habilidosa em jogos na dupla (nem todo mundo teve a dádiva de crescer com Mario, Sonic e Crash), isso não anula a ideia de que a responsabilidade pela condução ainda é sua.

Você é mais experiente em relações. A pequena vai te ensinar a jogar, mas quem vai provocar a comunicação é você. Pergunte o que não entende, diga para que ela tenha paciência e te espere, peça ajuda, diga quando vai ajudá-la, manifeste que você quer fazer o próximo passo sozinho para praticar.



Aproveite o momento. Divirta-se, veja a criança evoluir, atente aos detalhes que mostram a passagem do tempo e o amadurecimento. Deixe o jogo ser um ponto de conexão entre você e o pequeno ser humano ao seu lado.

No próximo capítulo...

Daqui a uma semana, teremos uma terceira parte sobre como o imaginário e os afetos do videogame passam de uma geração à outra. Já no GameBlast, desta vez o tema será uma continuação direta deste texto ao abordar alguns jogos cooperativos que não têm nas crianças seu público-alvo, mas que não as excluem.

Jogando com crianças

Nintendo Blast

GameBlast

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

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Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies. Veja minhas análises no OpenCritic.
Este texto não representa a opinião do Nintendo Blast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Você pode compartilhar este conteúdo creditando o autor e veículo original (BY-SA 3.0).