Desenvolvido em parceria com a Alim e publicado pela Square Enix, Voice of Cards: The Beasts of Burden continua a série de RPG com cartas do diretor criativo Yoko Taro. Junto com ele, temos um time de desenvolvedores que também participaram da criação de Drakengard/NieR, como o produtor Yosuke Saito, o designer de personagens Kimihiko Fujisaka e o compositor Keiichi Okabe.
A Proposta de Voice of Cards
Assim como os seus antecessores, Beasts of Burden tem a proposta de reimaginar, de forma única e minimalista, com o auxílio de cartas, uma estrutura de JRPG tradicional inspirada em Dragon Quest. O primeiro título da franquia, Voice of Cards: The Isle Dragon Roars (Multi), é bastante básico em seu level design e remete a Dragon Quest I e II. Por sua vez, os desenvolvedores compararam a evolução do segundo título, Voice of Cards: The Forsaken Maiden (Multi), com a evolução da série Dragon Quest nos títulos II e III. Dessa vez, é nítido que há inspirações de Dragon Quest V.
Porém, não se trata apenas de uma homenagem aos RPGs tradicionais. O intuito dos desenvolvedores é provocar questionamentos sobre aspectos da sua fórmula, dando um tempero crítico e melancólico ao enredo e ao audiovisual. Nessa ideia, os jogos se aproximam ao que é feito na série NieR, mas de forma mais modesta.
Os jogos também se utilizam de um criativo design narrativo com referências a RPGs de mesa (TTRPG), utilizando um Game Master narrador para tornar a experiência mais reflexiva em um nível metanarrativo, ou seja, uma experiência de uma narrativa sobre uma narrativa, fazendo o narrador não só contar os eventos, mas dialogar com o jogador e também comentar os eventos narrados.
Vale ressaltar que qualquer título da série pode ser jogado de forma independente. No caso desta terceira entrada, há uma mecânica nova de captura de monstros, que remonta a Dragon Quest V, e que é implementada e questionada no design narrativo.
A história mais interessante da série até agora
Olhando apenas para a forma da narrativa, The Beasts of Burden é um ponto de equilíbrio entre os dois Voice of Cards antecessores. A história tem mais ou menos a extensão de The Isle Dragon Roars, com aproximadamente 13~14 horas de jogo, e possui praticamente um grupo fixo de personagens no grupo. Por outro lado, assim como The Forsaken Maiden, a narrativa não foca em finais alternativos e o tom do enredo lembra ainda mais a série NieR.
O jogador segue Al’e, uma jovem que vive em um pequeno povoado ameaçado por monstros da redondeza. Certo dia, o local sofre um ataque derradeiro que ceifa todos os seus habitantes, com exceção da protagonista, salva por um garoto misterioso. A partir de então, os dois personagens têm algo em comum: boas razões para odiar os monstros.
Ainda no início, em uma cidade próxima, Al’e descobre uma forma de domar e capturar monstros em cartas, bem como utilizá-los em batalha, tal como em Dragon Quest V ou Pokémon. Ela e mais três personagens que se juntam ao grupo nos primeiros capítulos da trama passam a viajar juntos em busca de vingança e também de conhecimento sobre a natureza dessas criaturas que têm disputado os territórios dos humanos.
O tema principal da história é o conflito de natureza e de interesses entre monstros e humanos. Entre as questões exploradas no enredo está a forma como os monstros usam os humanos e vice-versa. Por exemplo, tal como na série Pokémon, podemos capturar monstros e usá-los para lutar contra outros. É certo fazer isso? Por que os monstros devem ser escravizados? E se os monstros fizerem o mesmo com os humanos? Isso se torna menos aceitável?
Mais especificamente, no jogo é usado o conceito de “monstriedade” (monsterness), e isso é questionado no roteiro. O que faz algo ser um monstro? De onde essas criaturas vieram? Os humanos devem ter uma relação ética com elas ou vê-las como simples inimigos ou escravos? É possível um convívio pacífico entre humanos e monstros? Essas são questões fundamentais que motivam o design narrativo desse game.
Esses problemas são abordados ao longo de uma aventura vingativa que inicialmente é motivada pela tentativa de capturar três poderosos monstros, os Primals. A jornada é narrada desta vez por uma Game Master, Carin Gilfry (em inglês) ou Yui Ishikawa (em japonês). A interação com a GM continua imersiva, mas nada muito complexo, e as escolhas de diálogo são pouco relevantes, mas trazem personalidade minimalista para a proposta e são satisfatórias para criar uma conexão metanarrativa com o jogador.
Um Voice of Cards com mecânica de captura
O sistema de combate de The Beasts of Burden é praticamente idêntico ao de seus antecessores. Trata-se de um sistema por turnos no qual se pode usar consumíveis como poções e os resultados das ações ofensivas e defensivas de cada turno dependem do número tirado nos dados (D6 ou D10), além de pedras mágicas que se acumulam a cada rodada e podem ser utilizadas no lugar da clássica mana (MP). Uma parte importante dessa dinâmica está em administrar bem efeitos como veneno, maldição, regeneração e outros.
A diferença maior aqui é a de que as “habilidades” são agora criaturas invocadas para o combate, cada qual com um poder único (ofensivo ou de suporte). Os monstros capturados possuem estrelas conforme seu nível e têm custos diferenciados de invocação (de uma a seis pedras), assim como as habilidades nos Voice of Cards anteriores. Essa nova mecânica dá profundidade aos problemas colocados no enredo, combina com a temática de cartas, lembrando algo como Yu-Gi-Oh!, e torna o combate mais customizável.
Quanto à exploração, ela continua com encontros aleatórios frequentes, mas, felizmente, apenas em locais não-explorados. Onde o jogador já passou, é possível literalmente “pular” para uma célula-carta à sua escolha, exceto se estiver em uma dungeon escura, pois não é possível ver as cartas ao redor no cenário. Esse artifício dos saltos é especialmente prático no modo portátil, já que Beasts of Burden tem suporte à tela de toque, assim você pode tocar nas cartas especificar em que deseja pular com seu peão. Isso segue sendo uma solução inteligente para lidar com encontro aleatório.
No mais, a progressão voltou a ser linear, como em The Isle Dragon Roars. O level design é um pouco mais elaborado que o do primeiro jogo para alguns puzzles, mas significativamente menos complexo e aberto que o de The Forsaken Maiden. Nesse aspecto, o título anterior continua mais interessante, tanto em puzzles quanto em momentos de stealth e exploração na terra e no mar.
O minigame de cartas (também disponível em multiplayer) continua presente no mundo ficcional do jogo. Do ponto de vista metanarrativo, também é bacana a ideia de incluir um jogo de cartas dentro de um jogo com cartas, mas permanece com os problemas que já descrevi nas análises anteriores. A jogabilidade depende muito da sorte e algumas modalidades de jogo resultam em partidas muito longas.
O objetivo do joguinho de cartas é basicamente formar pares de mesmo naipe ou com sequência numérica. Em modalidades mais avançadas, há efeitos especiais para determinados pares formados, como o de fazer um dos oponentes perder sua vez. Quando vencedor, o jogador recebe skins para customizar sua interface (mesa, verso das cartas, dados e peão).
Audiovisual apropriado, mas sem muita novidade
Mais uma vez, Taro e sua equipe reutilizaram muitas cartas dos títulos anteriores. Não só para os cenários, mas também para algumas criaturas e até mesmo para os NPCs, o que é especialmente indesejável, porque não ajuda a dar-lhes personalidade. Contudo, seu estilo minimalista e único de representar o mundo continua tendo um charme no contexto geral da indústria de JRPGs.
Com o design de interface e cenário inteiramente baseados em cartas, o jogo tem a virtude de convidar o jogador a complementar a cenografia e mesmo a gestualístisca dos personagens com a sua imaginação, como se estivesse jogando um RPG de mesa ou um adventure de texto; ou seja, muitas vezes ele faz o jogador precisar imaginar detalhes dos lugares ou das ações durante a narração em vez de efetivamente mostrá-los. Vale destacar também que o jogador terá algumas surpresas na direção de arte do final que deve intrigar aos fãs de Drakengard/NieR — de alguma forma parece estar relacionado ao mundo ficcional daquela série.
Quanto à trilha sonora, ela possui poucas faixas, mas em bom número para um jogo de curta extensão. Eu pude perceber um pouquinho do tom étnico que havia no primeiro jogo da série e gostei particularmente da música de tango para o circo ambulante que aparece em diferentes regiões, servindo como uma minicidade móvel. No geral, o estilo musical está mais próximo daquele de The Forsaken Maiden e de NieR.
A harmonia umas poucas vezes usa tons maiores, com peças mais alegres, como na mencionada composição de tango, mas a maioria possui um estilo suave em tom menor. Eu achei as melodias um pouco menos marcantes dessa vez, mas o estilo é bastante próximo dos antecessores. A instrumentação é sempre acústica, com um pouco mais de ênfase em cordas e, claro, com um delicado canto solo (geralmente feminino), e às vezes em sussurros, tal como nos últimos trabalhos de Okabe.
Um jogo mais interessante com o mesmo baralho
Apesar de novamente reaproveitar muitas características dos antecessores em sua série e de o level design não ter evoluído (até regredido em alguns aspectos), o audiovisual continua fresco e traz um bom equilíbrio das experiências prévias na série. Ademais, o combate está mais customizável e a novidade mecânica de captura é trabalhada de forma inteligente e crítica na narrativa do jogo.
A simplicidade da trama não esconde quão inteligente e triste ela é em revelar aspectos trágicos da natureza humana e da mídia dos videogames, o que é a maior virtude de Voice of Cards: The Bearts of Burden, que me passa a sensação de ser o mais interessante. Recomendo-o a fãs de JRPGs casuais e também a fãs de JRPGs mais experimentais e subversivos, sobretudo os fãs de Drakengard/NieR.
Prós
- Composições adequadas e com um estilo equilibrado em relação aos estilos dos dois Voice of Cards que o precedem;
- Game design bem motivado e coerente em vários níveis;
- Design narrativo mais profundo e instigante que nunca;
- O sistema de batalha está mais customizável e mais bem articulado com o enredo;
- Mais uma vez com boa adaptação para o modo portátil.
Contras
- Batalhas pouco desafiadoras (com raras exceções);
- Level design não evoluiu em quase nada (em alguns pontos, regrediu) e ainda não explora tão bem quanto poderia a base de cartas;
- O minigame continua com partidas demoradas e altamente dependentes da sorte;
- O potencial metanarrativo do Game Master ainda pode ser melhor explorado;
- Muitos elementos visuais reaproveitados de forma pouco justificada do jogo anterior.
Voice of Cards: The Beasts of Burden — PC/Switch/PS4 — Nota: 8.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix