Setembro Amarelo - parte 1: Stardew Valley (Switch) e as angústias de Shane

Precisamos falar sobre a vida e a morte.

em 14/09/2022

O Setembro Amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio. O conteúdo sensível sobre saúde mental pode ser incômodo a algumas pessoas.

Esse é meu amigo Shane, de Stardew Valleyque pode ser jogado no Switch, PC, PS4, XBO, PS Vita, Android e iOS. Shane é um porre. Grosseiro, reclamão, desleixado, sem papo e sem propósito. No entanto, se você der pizza e refrigerante o bastante (cerveja também, mas não faça isso, ele tem problemas com álcool), aos poucos ele vai se deixar conhecer.


Então, você vai ver os outros lados dele e... não, você vai ver o mesmo lado, embora pior. Em certo momento, minha esposa (na vida real e no jogo) o encontrou largado no chão à beira de um precipício, vomitando em meio a montes de latas de cerveja. Ele começou a falar. Preste atenção, dar ouvidos é importante:
“E... Eu sinto muito... M... Minha vida é uma piada de mau gosto... Por que ainda me esforço? ... Sou pequeno e estúpido demais para... assumir as rédeas da minha vida... Sou... só... um pedaço de lixo voando ao vento... *bluurp* Ultimamente, ando vindo aqui... pensando... Finalmente há uma chance de retomar as rédeas da minha vida... Estes desfiladeiros... Estou ansioso demais, assustado demais. Como sempre... Tudo o que faço é trabalhar, beber e ...e... me esquecer do sentimento de ódio contra mim mesmo. Por que devo continuar? Diga... Diga por que não devo pular deste desfiladeiro agora...”
Há quatro respostas possíveis a Shane, como vemos na imagem abaixo, e minha esposa escolheu a primeira.
Fonte das capturas de imagens do jogo: Cenas Stardew Valley Brasil

O que podemos dizer a Shane?

“Há tantas coisas pelas quais vale a pena viver!”

No instante que ela selecionou essas palavras, eu soube que era uma resposta vã. Claro, ela é verdadeira, mas não é essa a questão. Eu mesmo já me deparei várias vezes com essa resposta para o dilema de vida e morte e ela nunca me pareceu o suficiente. Ela tem melhor efeito como combustível durante os bons momentos, mas nos piores sua força é reduzida ou até inexistente.

Esse é um dos problemas da depressão: ela distorce o seu olhar, tira as cores. Não adianta que alguém te mostre o arco-íris se você só enxerga cinza. A mente pode saber muitas coisas pelas quais vale a pena viver, mas os sentimentos não alcançam essa sabedoria da mesma maneira, como se tal descoberta pudesse mudar a vida repentinamente.
Fanart por meatgirl
O medo e a dor estão enraizados na lama do fundo, se nutrindo da podridão para estender seus galhos sobre a pessoa. O peso dos sentimentos ainda parece insuportável. Shane respondeu: “Talvez para você, mas não para mim! Você não vai entender... Apenas... vá embora.”
 
Eu expliquei à minha esposa, como disse acima, que aquela resposta tão certa soa vã até mesmo quando a pessoa que passa por problemas de saúde mental tem uma vida repleta de afeto, atenção e sucesso. 
E as outras respostas, como são? Vejamos.

“Jas precisa de você. Você é como um pai para ela”

Jas é uma menina órfã que mora com a tia Marnie e o padrinho Shane, então essa resposta faz todo sentido, não faz? Se não pode viver por si mesmo, ele poderia viver por aqueles que o amam. Também já ouvi essa, mas foi de minha primeira psiquiatra, quando adolescente.

Foi a resposta que eu mesmo disse a Shane quando chegou minha vez de vê-lo à beira do precipício. Eu queria ver a reação dele: “Você está certo. Jas... Ugh, Deus... eu sou uma pessoa egoísta *hic* horrível. Agora eu me sinto ainda pior...”.

O que eu disse à psiquiatra foi bem parecido, mas quem me chamou de egoísta foi ela, embora não precisasse apontar algo que para mim era óbvio e confirmava meus motivos para me odiar.
 
Anos depois, apelei ao argumento do amor dos outros mostrando uma fotografia para alguém da família que precisei socorrer e levar às pressas ao hospital após uma tentativa de suicídio – mas não acusei a pessoa de egoísmo, já bastava o horrível mal estar que ela sentia naquele dia.

“É pecado”

Ok, admito que essa me ajudou a sobreviver à adolescência, mas ela também não basta. É baseada no medo e na culpa. Ainda que possa refrear impulsos (um ponto importante), esse julgamento é um paliativo que só atua na consequência final, não na causa dos sentimentos que induzem ao suicídio e o tornam um problema sedutor e recorrente.

A culpa entra no ciclo vicioso negativo para mantê-lo, não para resolvê-lo, o que pode piorar algumas situações. Além disso, no caso de Shane, o argumento é totalmente vão: ele não acredita em Deus.

“A decisão é sua, mas saiba que estou sempre aqui para ajudar.”

Aparentemente, é a resposta que o jogo considera a mais correta porque é a única que extrai algo positivo de Shane: “Obrigado... eu aprecio isso... sério.” Não entenda errado, isso não quer dizer que devemos simplesmente concordar com os sentimentos suicidas de alguém.

O que isso significa é que devemos aceitar que há um limite para o que podemos fazer por quem se encontra em momentos como esse. O destino de Shane não depende da resposta do jogador, as quatro opções terminam com ele pedindo para ser levado ao hospital – ou seja, a decisão sempre foi dele, no fim das contas. Não podemos viver a vida dos outros, apenas a nossa, mas podemos escolher viver caminhando com os outros - a jornada tem paisagens bonitas, mas não é fácil. Companhia é crucial.



Essa resposta pode ofertar compreensão, empatia, companhia, um ombro amigo para compartilhar um pouco do peso, para apoiar a viver mais um dia – um dia de cada vez. Serve para validar o sentimento do outro, dar-lhe a chance de perceber que não é uma aberração isolada e sem solução, mas um ser humano digno como qualquer outro. Serve também para que a pessoa desesperada possa falar e, ao se expressar, talvez aliviar um pouco a desesperança que a afligia com tanta força.

O que vem depois?

Também cabe a Shane buscar ajuda profissional; mesmo sem ficar animado com a ideia, ele sabe que tem que buscar as estratégias disponíveis. O progresso é notável, mas às vezes ainda podemos vê-lo no canto do bar, sozinho com seus pensamentos sombrios. Ele passa a socializar melhor e consegue focar mais na criação de galinhas, sua paixão antiga que estava soterrada pelos sentimentos mórbidos. Talvez esses sentimentos não desapareçam totalmente, mas, ao arrancar algumas ervas daninhas, os sentimentos saudáveis podem respirar e crescer o bastante para mover e continuar a vida. Isso vale muito, acredite.

Shane já mostrava sinais de risco. Tempos antes da cena do precipício, houve outra em que o encontramos desmaiado no quarto ao lado das latas de cerveja. Tia Marnie, preocupada, o questionou: “Qual seu plano? Você nunca pensa no futuro?” e Shane, sem atentar à presença de Jas, disse: “Plano? Com sorte, não vou estar aqui por tempo suficiente para precisar de um ‘plano’”.



A menina foi embora chorando e ele percebeu que a magoou (foi por isso que o testei para saber o que ele diria em relação a Jas). O problema não acontece de uma hora para outra, ele fermenta e atormenta por algum tempo, então é necessário estar atento e ter duas coisas em mente:
  1. O suicídio é uma realidade mais comum do que pensamos e, quando acontece, muitas vezes é tido como uma surpresa por aqueles ao redor, mas geralmente há sinais que indicam o risco;
  2. Na maioria dos casos, o ato pode ser evitado. O peso da vida do outro não é seu e nem deve ser, mas toda ajuda é bem-vinda.
Stardew Valley dá ao jogador apenas quatro opções de frases curtas para respondermos a algo tão complexo quanto o suicídio, mas essas opções são significativas porque representam diferentes maneiras comuns de pensar a condição da pessoa que sofre com o terrível fardo dessa angústia.

Embora seja algo inimaginável para quem não vive o dilema, ele não deve ser ignorado nem subestimado. O sofrimento psicológico é uma realidade urgente e complicada que não pode ser resumida a uma relação de causa e efeito. Conviver com esses sentimentos não é simples, mas algo precisa ser feito.



Não há fórmulas e receitas, mas o primeiro passo é ouvir e tentar entender um pouco da visão do outro, pois cada pessoa é seu próprio universo e seu próprio labirinto, seu ponto de partida e seu destino. Não adianta tentar colocar o outro em meu lugar para que ele possa entender como vejo a vida. Tem que ser o inverso. Boa sorte.

Se desejar ler mais sobre o tema, publiquei no Game Blast o texto Setembro Amarelo com Dark Souls: a dinâmica de dificuldade e perseverança como metáfora da vida e na próxima semana continuaremos o assunto com Celeste aqui no Nintendo Blast. Até lá!
Fanart por Vela Noble

P.S.: ei, não se vá

Se você, amado leitor, percebe a sombra do suicídio se erguendo sobre seus olhos, fale com alguém. Falar é humanamente necessário. Procure ajuda profissional. Se já teve uma psicóloga e não gostou, tente outra; as pessoas são diferentes e nem sempre acertamos na primeira tentativa.

Se pensa que não pode pagar as sessões, busque indicação de clínica social: é quando os psicólogos separam uma parte de seus horários para atender pacientes que só podem pagar preços bem abaixo do normal ou até mesmo valores simbólicos. Ou ligue 188 para o Centro de Valorização da Vida (CVV) e fale com um voluntário, ele está lá exatamente porque as pessoas precisam falar.

Por outro lado, se você, amado leitor, conhece alguém que enfrenta essa situação, dê-lhe ouvidos. É difícil ouvir de alguém querido que pensa sobre morrer, principalmente quando vem de crianças e adolescentes. Gostaríamos de interrompê-las e dizer “nem fale uma coisa dessas”, mas o silêncio não apagará o sentimento danoso, só vai dar o espaço para que aumente sorrateiramente.

As pessoas precisam falar e ser ouvidas, mesmo quando não há resposta certeira que salve vidas. Você só pode amá-las.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

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Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies. Veja minhas análises no OpenCritic.
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