Crônica

Setembro Amarelo - parte 2: Celeste (Switch), a ansiedade e o arquétipo da Sombra

Quando a vida parece uma montanha a ser escalada.

em 21/09/2022



Na semana passada, vimos o caso de Shane, de Stardew Valley (Multi). Assustado com a vida e a falta de sonhos, ele se trancou em si mesmo, afastou os outros e afogou a consciência em álcool para anestesiar a dor do vazio. Em depressão, ele acreditou que essa era a sua verdade.

No senso comum, pensamos no suicídio como um sintoma do estágio final da depressão, mas não é bem assim. Andrew Solomon, em O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão (Companhia das Letras, 2018), explica que depressão, ansiedade e tendência ao suicídio são três problemas distintos e não há uma fórmula exata de que um necessariamente leva ao outro, ainda que coincidam em muitos casos e cada um possa influenciar e agravar os demais.
 
Eu quis apontar essa ressalva porque estou, na verdade, falando desses males quando estão associados, uma vez que essa é a minha própria experiência. Este texto é uma leitura subjetiva sobre Celeste, disponível para Switch, PS4, Xbox One e PC, no qual relato alguns significados pessoais sobre ansiedade que podem ser compartilhados por outros ou não.
Ilustração por Amora B., do estúdio brasileiro MiniBoss, responsável pela arte de Celeste.

“A montanha mostra quem você é, estando pronta ou não”

Celeste é uma montanha estranha e perigosa. Já existiu uma cidade ali, mas, por algum motivo misterioso, todos foram embora e apenas as ruínas restaram, além de algumas almas apegadas. Perto do sopé, há um memorial em homenagem a todos os que morreram tentando escalar Celeste. A velha que vive nas redondezas avisa que lá você vê coisas que não estava pronta para ver, e logo Madeline, a protagonista, descobre quão verdadeira é aquela previsão.

Certo, o jogo Celeste não é diretamente sobre suicídio, como na história de Shane, mas o tema faz parte da minha leitura pela via oposta: o objetivo de continuar vivendo como um fim em si mesmo. Veja bem: temos Madeline, uma jovem fixada em problemas do passado e assediada por depressão, ansiedade e ataques de pânico. Ela não conversa sobre o que sente, apenas mantém as aparências, bebe e compra brigas na web.



Madeline quer escalar Celeste sem saber exatamente por quê. Ela apenas sabe que precisa mostrar a si mesma que é capaz de chegar ao topo, de concluir um propósito. A velha diz que Celeste é um lugar de cura: o primeiro passo é confrontar o problema. Escalar a montanha é uma alegoria ao enfrentamento da ansiedade e tudo o mais que impede Madeline de viver e se sentir viva.

Sabe os lobos e bruxas de contos de fadas? De acordo com Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas, eles não estão ali apenas para criar medos nas crianças, mas para que as crianças possam dar uma forma definida aos medos abstratos que elas já sentem e não entendem. O medo do desconhecido, o medo da própria vulnerabilidade e o medo da separação são etéreos demais para encarar, mas é reconfortante saber que uma menininha pode enganar uma bruxa que representa tudo isso e empurrá-la para o forno!

Acho que para Madeline acontece algo parecido: é terrível enfrentar os sentimentos que nos oprimem, mas escalar uma montanha é algo concreto, com um fim claro e objetivo no qual ela poderá dizer “consegui!”.

O que Madeline não esperava era que a montanha Celeste tivesse seus próprios modos de agir e levasse a ideia da concretude a um passo além. Por que seria apenas uma alegoria se pode ser realidade? Na subida, Madeline encontra um espelho que reflete uma imagem diferente de si, obscura, intensa, com olhos maliciosos.

A imagem quebra o espelho e se liberta dele, atuando como uma personagem própria. No jogo, ela se chama Parte de Você, mas os desenvolvedores sucumbiram ao trocadilho e ela logo passou a ser conhecida na web como Badeline (Bad-eline, a versão má).



A Sombra é Parte de Você

Todo mundo tem sua Badeline pessoal. Na psicologia analítica de C. G. Jung, esse aspecto do inconsciente é representado pelo arquétipo da Sombra. É aquela Parte de Nós que preferimos ocultar de todos, inclusive de nós mesmos. Mantemos escondida por considerá-la vergonhosa, indigna, mesquinha, inferior, algo que contradiz o que achamos que somos ou que deveríamos ser.

Dessa forma, é comum que a Sombra fique escondida da consciência, pois a própria possibilidade de sua existência fere a segurança de que podemos manter o controle sobre o que somos. A Sombra indesejada parece vir de fora de nós – exatamente como acontece com Madeline. Não foi Celeste que criou Badeline, como disse a velha que mora ali: “A montanha não pode extrair nada que já não esteja em você. A montanha mostra quem você é, estando pronta ou não.”



Badeline é sombria, ácida, raivosa, rancorosa e assustada. “É assim que eu sou, tá? Lide com isso”, avisa. Ela representa, entre outras coisas, a ansiedade de Madeline, tentando fazê-la desistir da escalada e recuar, perseguindo-a, sabotando o caminho e afetando a confiança, ao mesmo tempo em que tenta soar pragmática e convincente. Sendo parte de Madeline, Badeline acredita que é a voz da razão e que só deseja ajudar e preservar as duas dos riscos e frustrações dos enfrentamentos. É tudo pelo bem delas.

A ansiedade tem função de alertar a pessoa quanto a prováveis perigos e prepará-la para fugir ou encará-los. Em excesso, essa função torna-se um problema de saúde que nem sempre é desencadeado por um motivo direto, sendo muitas vezes um sintoma do constante estado de tensão e antecipação no qual a pessoa se encontra.



Esse tipo de aflição pode se estender e conectar a qualquer coisa, atrapalhando o funcionamento normal do indivíduo até o ponto dele se sentir intimidado por tarefas simples e cotidianas, como se algo terrível fosse acontecer a qualquer momento. O resultado é uma percepção desproporcional das preocupações, poluindo o presente com o medo do futuro.

Theo, amigo que Madeline conhece durante o jogo, resume bem tudo isso: Badeline é um mecanismo de defesa distorcido. Ela é fruto do medo profundo e sufocante. Aterrorizada, ela tenta agressivamente que Madeline desista e volte para casa, mesmo que para isso seja necessário jogar a jovem às profundezas da montanha – metafórica e literalmente. Se a queda não bastar, ela ameaça: “Eu sempre posso cavar mais fundo”.



Primeiro, Madeline tenta negar a Parte de Si como sua sombra e foge dela. Depois, acha que a superou e que ela não é mais necessária, então tenta abandoná-la, mas as coisas não são tão simples. Por fim, no fundo da queda, após amadurecer um pouco pelas experiências da escalada, Madeline decide que elas vão subir a montanha juntas e, invertendo os papéis, passa a perseguir Badeline, que foge e ataca violentamente para se defender.

Neste ponto da aventura, podemos notar uma pequena representação da tendência ao suicídio, mesmo que provavelmente não seja a intenção do estúdio Matt Makes Games: Badeline paradoxalmente tenta matar Madeline para protegê-la da dor e do medo de enfrentar seus problemas. Isso não faz sentido, até porque o próprio suicídio também não faz. Humanos são complicados e contraditórios, mesmo quando acham que estão se guiando pela razão.



Ainda que ignorada, a Sombra não irá embora e, além disso, ela não pode ser destruída. Tudo o que podemos fazer a respeito é lidar com ela, reconhecê-la, entender qual o papel dessa Parte de Nós e colocá-la exatamente onde tem que estar: não em um ponto de domínio, mas de equilíbrio entre as Partes que, juntas, nos tornam nós mesmos.

O topo? É só o começo

Quando Madeline finalmente integra Badeline, a subida passa a ser vigorosa, vibrante e dourada sob a luz da manhã, um verdadeiro clímax que impulsiona sempre para cima, rumo ao topo. Resumindo assim, parece que é fácil. Aquele papo de resiliência, superação, basta se esforçar, quem quer alcança, meritocracia, blá-blá-blá.

De fato, o jogo principal (que vai até o capítulo 7) termina num tom positivo, mas consciente: Madeline sabe que carregará aquela Parte de Si aonde for, mesmo que Badeline não possa mais se manifestar fisicamente quando ela deixar a montanha.



Ao chegar ao topo, Madeline não curou sua ansiedade e não viveu feliz para sempre. As coisas não funcionam assim; a vida continua e, com ela, as adversidades (o jogo mostra isso com 2 capítulos extras, ainda mais difíceis). O que fez a diferença para Madeline é que ela viu que é possível escalar sua montanha, que é possível encarar a si mesma no espelho e aceitar o reflexo sombrio que carrega tudo aquilo que ela não queria ver.

Celeste é um título difícil e desafiador. Precisei de 2.720 mortes para chegar ao cume (mas não joguei os capítulos extras). Dessa forma, o jogo faz da teimosia do jogador a de Madeline, que insiste no objetivo sem sentido aparente.



O próprio jogo diz “orgulhe-se de sua contagem de mortes” (mortes metafóricas de videogame, viu?!). Elas são contabilizadas na tela de seleção de capítulo não para mostrar o quanto você fracassou, mas para representar o seu empenho. 

Já ouvi algo semelhante de algumas pessoas, incluindo psicólogos, a respeito de minha história. Os longos anos de depressão, ansiedade, pensamentos de morte e fases de risco não são uma prova de fraqueza, como eu via (e, às vezes, ainda vejo). São indícios de que tenho força suficiente para prosseguir vivo apesar de estar exausto de lutar comigo mesmo.


Eu ainda sinto como fraqueza, mas a diferença é que sei que esse sentimento não passa de minha distorção falando. Saber disso não resolve, mas cada passo, cada dia, cada ano é uma conquista incontestável. A morte pode esperar sua vez.

Se quiser ler mais sobre o tema, tratei dele também no GameBlast em um texto chamado Setembro Amarelo com Dark Souls (Multi): a dinâmica de dificuldade e perseverança como metáfora da vida.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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