Live A Live (Switch) e sua pré-história sem palavras

Sim, em apenas duas horas é possível fazer um JRPG com uma trama completa, de forma bem satisfatória e coerente.

em 19/08/2022

Como eu escrevi em minha análise do remake do Team Asano de Live A Live, o projeto do jogo, originalmente escrito e dirigido por Takashi Tokita, tem um design narrativo experimental e subversivo considerando a tradição dos JRPGs. A trama não possui uma unidade, senão no final por um artifício miraculoso. No mais, trata-se de uma compilação de contos, cada qual com um gameplay adequado à sua proposta narrativa. Um dos casos mais interessantes que resultaram desse estilo de proposta é o da Pré-História.


Live A Live possui oito subtramas, cada qual em época e espaço distintos, e a da Pré-História passa-se em um ambiente cavernoso e com pouca vegetação, onde uma comunidade de humanos convive sem uso da linguagem falada. Essa escolha está diretamente relacionada ao conceito de pré-história, ao tema do enredo e ao gameplay. Desse modo, a execução dessa fase de Live A Live é um excelente exemplar para compreender coerência em game design, e é isso que mostrarei nos próximos tópicos.

O conceito de "consonância ludonarrativa" e a proposta de Live A Live

Todo esse artigo nada mais é que um estudo de caso bem bacana do que se chama de consonância ludonarrativa, que nada mais é que um tipo de coerência entre dois níveis de game design: o do gameplay e o da narrativa. Isso significa que dizemos que um jogo possui consonância ludonarrativa quando as escolhas de design para o gameplay com os personagens jogáveis são coerentes com aquilo que a narrativa conta sobre eles.

A título de curiosidade, o termo “consonância ludonarrativa” nada mais é que um conceito que surgiu por simetria ao termo “dissonância ludonarrativa”, cunhado por Clint Hocking (click nothing, 2007) em uma análise sua sobre Bioshock (2007), de Ken Levine. Um exemplo de dissonância narrativa é, por exemplo, você ter um jogo com um gameplay extremamente violento de um protagonista enquanto, ao mesmo tempo, a história desse personagem aborda-o como alguém altruísta e pacífico.
Designer Clint Hocking, criador do termo "dissonância ludonarrativa", na Game Design Expo 2009, em Vancouver, Canadá.
Caso você queira se aprofundar no conceito mais geral de “coerência” em game design, e caso você leia em inglês, eu recomendo dar uma olhada em meu artigo The Difference Between Cohesion and Coherence in Video Games (2022), que escrevi para a SUPERJUMP. Aqui vou me limitar a uma definição menos rigorosa desse termo. Basicamente, podemos assumir que um conjunto de escolhas de games design é coerente quando satisfaz dois requisitos:
  1. se as escolhas de design estão de acordo com a proposta do que o jogo quer comunicar;
  2. se as escolhas de design dentro desse conjunto não propiciam experiências contraditórias entre si.
Desse modo, precisamos começar por esclarecer a proposta de Live A Live, de modo geral, e, por sua vez, da fase da Pré-História, em particular. Só então poderemos ver como as escolhas coincidem com a proposta. Felizmente, como já escrevi uma análise desse jogo, também já apresentei sua proposta geral.
Takashi Tokita, diretor de Live A Live (1994) e supervisor do remake de 2022.
"Live A Live traz uma dupla proposta de game design. Por um lado, nasce de um questionamento em relação aos gêneros de jogos, mas não no sentido de alterná-los ou fundi-los, como o faz Yoko Taro, mas no sentido de traduzi-los em termos de TRPG. Por outro lado, também nasce de uma subversão do design narrativo longo e unificado dos JRPGs de então, buscando, em contraposição, contar várias histórias ao invés de uma; como uma antologia de contos no lugar de um romance".
Por sua vez, podemos sintetizar a proposta da Pré-História como uma tentativa de gameplay e de storytelling que reflita, de forma sucinta, os aspectos do conceito de Pré-História e do imaginário popular sobre esse período. Além disso, pode-se notar que também há uma intenção de fazer uma trama de tom cômico.

A concisão do design narrativo da Pré-História

Eu ainda estou devendo escrever um artigo específico sobre o conceito de “concisão” em game design. Na falta disso, por enquanto, eu vou me limitar a uma apresentação bem sucinta, para os fins desta matéria. Podemos entender a concisão em design narrativo como a capacidade de explorar suficientemente as premissas da narrativa de forma enxuta, e por isso se entende satisfazer três critérios:
  1. ter uma trama curta (para os padrões de seu gênero);
  2. ter começo, meio e fim claros;
  3. e trazer à tona os significados desejados da proposta narrativa.

É interessante notar como a Pré-História de Live A Live satisfaz muito bem esses requisitos. Primeiramente, ela pode ser completada com cerca de 2h de jogatina, o que é muito curto para um JRPG, e por si só isso impõe um desafio; não é fácil fazer uma narrativa completa de JRPG em tão pouco tempo. Felizmente o roteiro é bem-sucedido, muito devido a uma feliz escolha de trabalhar um tema bem básico: a atração física. Abaixo um resumo (com spoiler!):
Podemos dizer que o jogador segue linearmente a história de Pogo — desenhado por Yoshinori Kobayashi —, que se apaixona subitamente por uma garota (Beru) que entrou sorrateiramente em sua tribo. Após abrigá-la e dá-la o que comer, ela é capturada por outra tribo (Kuu Tribe).

Pogo e seu amigo gorila Gori vão atrás dela, e derrotam os membros da tribo, incluindo o temível Zaki, mas eles são encurralados por um Tiranossauro Rex. Unindo forças contra a criatura, derrotam-a. Pogo termina tendo seu amor respeitado pela tribo, mas o reconhecimento por parte da Beru é um pouco ambíguo no final, para dar um tom cômico ao final da jornada.

Aqui acabam os spoilers. Como se pode ver, a historinha é bem estruturada, com começo, meio e fim bem definidos. Ademais, tem um bom tom cômico não só no final, mas em várias partes da jornada.

Além das cenas em si, um fator que contribui para isso é tom de absurdo na escolha de fazer carros de pedra, tal como no clássico desenho The Flintstones (1960–1966), criado por William Hanna e Joseph Barbera. E outro fator é a forma como os personagens se expressam sem linhas de diálogo, forçando-os a serem mais expressivos e, às vezes, vagos ou ambíguos ao jogador. E isso nos leva à camada da profundidade do design narrativo.

A profundidade e a coerência de uma história não escrita

Diferente do que se possa pensar, nem sempre uma narrativa profunda é uma narrativa complexa. Há tramas com uma forma complexa de ser contada, mas superficiais, do ponto de vista dos significados atrelados à história. Inversamente, a fase da Pré-História de Live A Live é um caso de trama simples — como vimos no tópico anterior —, porém com uma riqueza razoável de significados.

Como eu desenvolvi com maior detalhe em outro texto para a SUPERJUMP, The Difference Between Complexity and Depth in Video Games (2022), a profundidade, de um ponto de vista semântico, está diretamente relacionada às camadas de significado nas escolhas de game design. Há diversas formas de estabelecer essas camadas para além da superfície (o sentido intuitivo, funcional e/ou imediato do termo); entre essas formas, pode ser a de ambiguidade e a de referências textuais ou iconográficas.


Vejamos um exemplo no caso de um livro. Se um escritor utiliza a palavra “armas” em um contexto simplesmente para designar um objeto que um personagem está comprando, esse termo está sendo empregado de forma superficial. Por outro lado, se o livro for do gênero épico, a primeira palavra da história for “armas” e estiver em contexto jurídico-militar, então esse mesmo termo pode carregar maior profundidade.

Nesse segundo contexto, além de haver o sentido literal de equipamento bélico, "armas" pode estar aludindo ao princípio de “paridade de armas” em contexto de defesa jurídica, e também pode estar fazendo alusão a outros livros épicos (epopeias) que começam com a palavra “armas”, tal como Os Lusíadas, de Camões; Metamorfose, de Ovídio; a Eneida, de Virgílio; e tantas outras.


Contudo, os videogames não são obras feitas apenas com palavras, e, na Pré-História, Live A Live não possui nenhuma. Os significados atrelados a essa obra estão em outros lugares, sobretudo na iconologia, ou seja, na interpretação imagética do jogo. É possível perceber muitas coisas que os personagens “falam” pos seus gestos, mesmo com uma pixel art simples; e outras vezes por meio de balões nos quais são usados desenhos (feitos pelos personagens, presumivelmente) e sinais de expressão, como ‘?’ e ‘!’.

Além dessa significação mais indireta, que pede maior criatividade tanto do escritor quanto do intérprete, a profundidade do jogo também está em suas referências. Em primeiro lugar, pelo conceito de “Pré-História”, que é tradicionalmente marcado pelo período antes da invenção da escrita (+- 4 mil anos AEC). Em segundo lugar, essa escolha de design também remete aos temas mais instintivos do jogo: o que motiva os personagens são a paixão ou a comida.

A coerência de level design da Pré-História

Pelo que foi dito até aqui, já se pode observar a coerência da trama da Pré-História de Live A Live. Tal como pede a proposta do jogo, ela consegue ser sucinta, cômica e remeter tanto ao período da Pré-História quanto ao conceito em si de Pré-História. Ocorre que essa coerência pode ser vista não apenas na narrativa, mas também na jogabilidade.

Do ponto de vista da exploração, por exemplo, o personagem usa o olfato para procurar inimigos. Ele pode ir até um ícone de fumaça, cheirá-la e dispensá-la, e então procurar as criaturas nas fumacinhas que se espalham ao redor. Quando encontrada, há uma transição para batalha de RPG tático em um cenário bem pequeno (7x7 células). Isso faz com que seja um interessante híbrido de encontro visual com encontro aleatório/randômico em um formato coerente com a temática de trabalhar com os instintos, nesse caso, o olfato.


Por fim, as batalhas em si também correspondem com os estereótipos populares para a “idade das cavernas”. Embora em termos de História Natural seja um absurdo a coexistência entre humanos e dinossauros, eles refletem o imaginário popular, como o jogo se pretende. Ademais, a simplicidade tática e as habilidades físicas correspondem ao design rústico dos personagens e o que eles têm à mão naquele contexto.
A fase da Pré-História é uma das mais interessantes de Live A Live, especialmente por como é, ao mesmo tempo, inteligente, simples e divertida com suas escolhas; uma combinação difícil de se obter. Pessoalmente, eu valorizo muito o cuidado de coerência e profundidade dos jogos que analiso, e em alguns casos me motivam a escrever textos específicos sobre seu game design, como foi o caso desse Stage Select. Caso você tenha gostado disso, pode ser que goste também dos ensaios que escrevi sobre Shin Megami Tensei III e Devil Survivor.
Revisão: Thais Santos

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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