Cuphead e o grande acerto do estúdio MDHR

O primeiro trabalho de uma equipe familiar que entrou para a história dos games.

em 17/07/2022
Olá, blasters! É com grande prazer que iniciamos hoje mais uma coluna no Nintendo Blast. Este será um espaço dedicado ao cenário independente, onde poderemos analisar alguns casos interessantes e curiosos.


Afinal, os jogos AAA já recebem boa parte da atenção da indústria, da mídia e do público. Seja por serem parte de franquias consagradas, pelo alto investimento em marketing, pela expectativa de lucro etc.

Os indies, por sua vez, costumam transitar abaixo do radar, lutando por visibilidade. Equipes de desenvolvimento bem menores do que aquelas encontradas em grandes estúdios buscam levar a um público maior projetos com um perfil mais autoral e, por isso mesmo, único.

Quem melhor para inaugurar a Indie Blast que o fenômeno Cuphead? Um dos maiores casos de sucesso da história recente e que já transcendeu para outra mídia. Com o lançamento do DLC The Delicious Last Course, o jogo voltou aos holofotes. Mas quem são as pessoas por trás dele? Como foi o seu desenvolvimento? O que mais podemos esperar do estúdio? Embarque em nosso navio pela história por trás das aventuras na Ilha Tinteiro.

Botando a água para ferver

Mexeram com a pessoa errada.
Para aqueles que por acaso ainda não deram uma chance a Cuphead (por quê?), trata-se de um jogo de plataforma e run and gun produzido pelo Studio MDHR Entertainment e distribuído pela Microsoft Studios. O jogo é marcado por uma alta dificuldade, batalhas memoráveis contra diversos chefes e um estilo visual que emula animações das décadas de 1920 e 1930.

Na história, Xicrinho (Cuphead) e Caneco (Mugman) são dois garotos que vivem com o Vovô Chaleira e, como a maioria dos adolescentes, ignoram os conselhos do adulto. Um dia, os dois vão até o cassino e conseguem uma série de vitórias, o que lhes dá muita confiança. O Diabo, dono do estabelecimento, se oferece para aumentar as apostas numa jogada do tipo “tudo ou nada”: ganhar significaria levar toda a grana; a derrota teria como consequência perder suas almas. Xicrinho perde no jogo de dados e o Diabo oferece um acordo: para manter suas almas, os dois devem executar os contratos de devedores, derrotando os fugitivos que estão espalhados pela Ilha Tinteiro.

Essa é a sinopse básica do game, que já mostra que o estilo aqui foge do convencional. Os protagonistas não são modelos de super-heróis, nem possuem uma jornada nobre ou altruísta, além de estarem em uma missão dada por um mestre nada honrado. Isso se conecta totalmente com a inspiração para o estilo gráfico adotado no projeto.

Um belo conjunto de chá

Um estilo de arte centenário
Hoje, com a Pixar (Toy Story) e a Illumination (Minions) emplacando diversos sucessos utilizando a computação gráfica, ou com o marco que foram as produções da Disney da década de 1990, como Rei Leão e Aladdin, outras formas de animação ficaram completamente eclipsadas. Contudo, há cem anos os maiores sucessos no mundo dos desenhos animados utilizavam uma técnica chamada de rubber hose, em que os personagens possuem curvas fluidas, sem ou com pouca articulação nos membros – daí o nome “mangueira de borracha”, como as utilizadas no quintal.

O grande símbolo da rubber hose foi o Fleischer Studios, responsável por clássicos como Betty Boop, Popeye e Superman. O estúdio foi fundado em 1921 como Inkwell Studios, e aqui temos uma grande referência: a Ilha Tinteiro, no original em inglês, se chama Inkwell Isle.

As produções do Fleischer Studios, apesar da aparência cômica, possuíam uma temática mais adulta, envolvendo humor pesado e ambientes maliciosos. Essas características refletiam o clima difícil e decadente dos Estados Unidos pós-crise de 1929 e inspiram fortemente não só os gráficos como também a história de Cuphead.

Chá em família

Chad com sua esposa Marija e seu irmão Jared, as cabeças por trás do MDHR.
Apesar de ter se tornado o grande chamariz de Cuphead, a arte não foi o ponto de partida para o seu desenvolvimento. Na verdade, foi motivo de dúvida se a rubber hose seria de fato o caminho adotado, por conta do volume de trabalho para fazer os desenhos a mão para um estúdio recém-formado.

Além de novo, o MDHR é um estúdio familiar, como seu nome indica: MolDenHaueR. Os irmãos Jared (game design) e Chad (direção de arte) Moldenhauer são os fundadores, mas também fazem parte Marija (coloração e produção executiva), Ryan (direção de arte) e Tyler (coloração digital). A família MDHR iniciou o processo de construção de Cuphead em 2010, trabalhando em meio período, por três a quatro horas por semana.

A equipe fazia pequenos protótipos, o que lhes permitia analisar o que gostavam e o que deveriam descartar. Como Chad afirma, "apesar de termos trabalhado em apenas um título, quando finalmente terminamos pareciam ter sido 10 jogos diferentes".

Em 2015, ficou claro que a equipe precisaria aumentar, além de outras medidas drásticas. Eles largaram os empregos e hipotecaram as casas, apesar de desencorajar fortemente outras pessoas a fazer o mesmo. A decisão de mergulhar de cabeça no projeto veio após a descoberta pelo time da ID@Xbox, programa da Microsoft que oferece suporte à publicação de projetos de estúdios independentes nas plataformas da companhia. Só então o desenvolvimento de fato começou.
Inspiração nos clássicos.
Adeptos do trabalho remoto bem antes da pandemia, o estúdio tem seus colaboradores espalhados pelo mundo. Jared e Chad, porém, buscam manter o controle total da produção e sabiam o que queriam entregar. A dificuldade elevada, por exemplo, foi uma característica definida logo no começo. Eles se inspiraram em jogos como Castle of Illusion Starring Mickey Mouse (Mega Drive), que limitava o número de fases disponíveis caso o jogador optasse por jogar no nível mais fácil. A dupla queria que as pessoas “merecessem” jogar a campanha completa, pois consideram que a sensação de realização só é verdadeira se houver o máximo de esforço.

Chá tipo exportação

Todo esforço do pessoal do Studio MDHR valeu a pena. Quando Cuphead foi lançado em 2017, foi aclamado por crítica e público. Com mais de 85% de aprovação no Metacritic, o jogo rapidamente chegou a 1 milhão de cópias vendidas, além de faturar três prêmios no The Game Awards: melhor direção de arte, melhor jogo independente e melhor jogo de estreia.

A partir daí, o game ganhou o mundo. Em 2019, ele chegou ao Switch e, no ano seguinte ao PlayStation 4, alcançando a marca de 6 milhões de unidades. Produtos licenciados e colecionáveis chegaram às prateleiras das lojas. A própria Nintendo procurou o pessoal do MDHR para que Xicrinho, Caneco e companhia aparecessem em Super Smash Bros. Ultimate (Switch) como trajes para os Mii Fighters.

Em 2022, um ciclo se completou: uma adaptação animada chamada The Cuphead Show estreou na Netflix. O jogo inspirado em animações dos anos 1930 virou um desenho com envolvimento da King Features (empresa centenária que trabalha com tiras de jornal e animações de personagens como Betty Boop, Popeye, Recruta Zero e Gato Felix), Cosmo Segurson (Meu Malvado Favorito), Dave Wasson (curtas do Mickey), Clay Morrow (Meninas Superpoderosas e O Gato de Botas) e Adam Paloian (Bob Esponja), além do estúdio de stop motion Screen Novelties (Frango Robô e Fortnite).

Chad e Jared Moldenhauer atuaram como produtores executivos, dando descrições e indicações de como os personagens deveriam se comportar e se expressar. Porém, com tanta gente gabaritada envolvida, esse time teve liberdade para criar aspectos que tornaram o produto final algo único. O Diabo, por exemplo, foi o personagem mais desenvolvido para além do que os criadores imaginaram.

Como o jogo não possui uma história profunda, os realizadores se inspiraram nas animações clássicas, onde o protagonista pode ser um caubói em um episódio e um vendedor de cachorro quente em outro. Desse modo, os episódios podem ser vistos de forma isolada e sem uma ordem definida, sempre reservando uma novidade.

Novos sabores

Para tornar a jornada pela Ilha Tinteiro ainda mais completa, o Studio MDHR anunciou em 2018 um DLC. Conforme revelou Marija Moldenhauer, o novo conteúdo – que possui o genioso nome The Delicious Last Course – é a derradeira carta de amor a Cuphead, incluindo diversas ideias que acabaram cortadas do título original e uma nova personagem jogável.

A ideia era evoluir ainda mais as animações e os cenários de fundo, partindo das animações dos anos 1930 e aproximando-se de Fantasia (clássico filme do Mickey aprendiz de feiticeiro, lançado em 1940). O conteúdo adicional ficou tão robusto que o estúdio chegou a cogitar lançá-lo como um novo título, mas no fim das contas será o complemento definitivo à campanha principal.

Agora que Cuphead está completo, o estúdio confirmou que planeja lançar uma versão física do título. O Nintendo Switch faz parte destes planos, que devem receber maiores detalhes nos próximos meses.

O próximo encontro


Um estúdio pequeno, fundado por dois irmãos, fiéis às suas convicções e que não se importam de levar anos para desenvolver um projeto contanto que ele saia o mais próximo possível da perfeição. Em seu primeiro trabalho, o pessoal do Studio MDHR conquistou o mundo, e a expectativa sobre os próximos passos é grande. Por qual gênero eles vão se aventurar ainda não se sabe, mas uma coisa já afirmaram: pretendem continuar trabalhando com animação 2D feita a mão. Enquanto a nova jornada não chega, permanece a certeza de que já deixaram uma obra-prima marcada na história da indústria.

Revisão: Davi Sousa
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Nascido no mesmo dia que Manoel Bandeira (mas com alguns anos de distância), perdido em Angra dos Reis (dos pobres e dos bobos da corte também), sob a influência da MPB, do rock e de coisas esquisitas como a Björk. Professor de história, acostumado a estar à margem de tudo e de todos por ser fora de moda. Gamer velho de guerra, comecei no Atari e até hoje não largo os mascotes - antes rivais - Mario e Sonic.
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