Hellblade: Senua’s Sacrifice (Multi) e a representação de transtornos mentais em jogos

A jornada mental de Senua abriga uma das mais fiéis representações de transtornos mentais no mundo dos games.

em 25/06/2022

Em toda indústria artística existe o conflito entre o comercial e a arte. Diretores querem que sua visão chegue intacta para a audiência, enquanto os produtores querem que o projeto dê lucro. Não é diferente no mundo dos jogos. Abordar sobre condições mentais em um game pode impactar diretamente no número de vendas, gerando uma batalha entre o estúdio e a empresa que publicará o projeto.

A equipe da Ninja Theory sabia desse conflito quando iniciou sua ambiciosa empreitada no mundo nórdico de Hellblade: Senua’s Sacrifice (Switch). Criar um game focado em um transtorno mental como a psicose, aliando gameplay e enredo ao tema, poderia ser arriscado com uma publicadora. Por isso, a equipe abraçou o projeto e decidiu seguir solo com a produção e lançamento.




Segundo o estudo Framing Mental Health Within Digital Games: An Exploratory Case Study of Hellblade, de Joseph Fordham e Christopher Ball, a representação de saúde mental em jogos é um assunto ainda complexo em nossa sociedade. A grande parte desses jogos é do gênero do horror, o que acaba gerando uma visão estigmatizada e por  vezes danosa às pessoas que precisam de ajuda.

Neste texto, vamos entender como Hellblade conseguiu alcançar um marco histórico na área da desestigmatização e consciência da saúde mental no meio digital, entregando não somente um jogo comercialmente atraente, mas também uma forma honesta de retratar uma parcela marginalizada da sociedade. O texto pode conter spoilers pesados.

Enredo e jogabilidade



A história do game acompanha a guerreira exilada Senua. Ela faz parte dos Pictos, grupo celta do norte da Escócia do segundo século depois de Cristo. A personagem sofre de psicose severa e, por viver em uma época antiga e de costumes ritualísticos, enfrenta todos os estigmas que sua condição recebe no mundo antigo.

Devido à psicose, Senua sofre de diversos sintomas, como audição de vozes, alucinações, delírios e paranoia, algo que, para o conceito do seu povo, é fruto de maldição dos deuses e, por isso, a guerreira é exilada de sua terra natal. Quando retorna, tempos depois, encontra sua vila destruída e saqueada pelos Vikings, além de seu amante, Dillion, morto em um ritual da Águia de Sangue, preceito tradicional dos nórdicos.   

Com o choque desse acontecimento tão grotesco, a condição de Senua piora. Afetada pela dor da perda e sentimento de culpa, como se tudo fosse derivado da sua “maldição”, ela planeja ir em uma jornada até Helheim, mundo dos mortos da cultura nórdica, e confrontar Hela, deusa do submundo, para ter seu amado de volta. 

A partir desse ponto, o game usa exatamente os sintomas de Senua para criar o mundo ao seu redor e os elementos que constituem a jogabilidade. As visões da protagonista formam caminhos ocultos e cenas fantasmagóricas, a paranoia conduz a jornada de maneira ansiolítica e toda sua crença distorcida sobre a cultura nórdica produz cenários assustadores e criaturas monstruosas, tudo construído em sua mente. A jornada de Senua até Helheim, então, acaba sendo uma viagem para dentro de si mesma em busca de identidade e perdão.

Pesquisa e pré-produção



Inicialmente, a equipe tinha a intenção de criar um jogo tradicional com a clássica jornada do herói, com elementos das culturas celta e nórdica. Em algum ponto da produção, surgiu a ideia de um herói com transtorno psicótico, o que mudou completamente a dinâmica do estúdio e os colocou em rota de colisão com as próprias limitações.

No documentário lançado no YouTube pela Ninja Theory, os diretores contam que, ao pesquisarem mais sobre o assunto, descobriram a própria ignorância sobre a temática de saúde mental, o que os levou a procurar a ajuda de alguém especializado na área. O nome escolhido foi Paul Fletcher, psiquiatra e professor de neurociência na Universidade de Cambridge.

Fletcher foi peça central na pré-produção de Senua. Antes mesmo de construir a história, a equipe precisava entender de saúde mental com propriedade, sem estigmas e senso comum. O professor fez diversas reuniões com os desenvolvedores e ficou surpreendido com o empenho do grupo em querer apresentar uma versão realista de alguém com tais problemas.




Segundo o vídeo de produção da empresa, a ideia de se informar sobre o assunto e apresentar uma produção honesta foi o norte de todo o processo. “Doenças mentais como psicose ainda são tabu e raramente conhecidas num século de cinema, e muito menos na nova mídia de jogos. Quando reconhecem, geralmente misturam psicose com psicopatia, que é um diagnóstico não relacionado”, diz o narrador.

Com a psicose sendo a condição escolhida para a personagem principal, Fletcher foi essencial em frisar que a doença é um termo que se refere essencialmente à perda de contato com a realidade, não necessariamente uma ligação direta com a falta de empatia ou moralidade.

A psicose pode ser caracterizada por dois conjuntos principais de sintomas, a alucinação e o delírio. O primeiro está relacionado à perda da objetividade da realidade, quando a pessoa passa a ver ou perceber coisas que não são reais, o segundo, se refere a crenças exageradas e assustadoras, que, mesmo contra as condições reais, podem afetar a percepção de uma pessoa.

Com a ajuda de Fletcher, a equipe pôde expandir a pesquisa da pré-produção, entender sobre o assunto e traçar os principais aspectos que caracterizariam o protagonista da história.

Criando Senua

Com a evolução do projeto, Senua foi pensada para ser a protagonista da história, depois que um dos diretores viu a descoberta arqueológica da deusa celta Senuna. Como ela foi erroneamente nomeada Senua, o nome marcou o diretor e o fez batizar a protagonista da sua história.

Com o entendimento necessário sobre psicose, a equipe começou o caminho de construir sua protagonista. Para aproximá-la ainda mais da realidade, a Ninja Theory convidou diversos pacientes em recuperação que sofrem da mesma condição de Senua. As reuniões iniciais serviram de captação do relato dessas pessoas e como elas sentiam os sintomas. 

A equipe ficou comovida com as histórias e percepções de cada um dos participantes e, enquanto apresentavam o projeto, incluíam cada vez mais características e experiências que os pacientes traziam à mesa, numa forma de fazer uma homenagem através da descrição realista de sua condição. 

Entre algumas das falas ditas pelos participantes, podemos destacar algumas que seriam integradas diretamente na produção do jogo:

"Tudo parece se aproximar e ficar maior o tempo todo"

"Tudo está em pedaços, como uma fotografia destruída e reconstruída de novo"

"As cores parecem mais brilhantes, como se estivessem iluminadas"

"Às vezes, o mundo parece um caleidoscópio e pode ser bem bonito"




O testemunho desse grupo foi fundamental para a criação de diversas cenas, mecânicas e interações do jogo, já que boa parte desses elementos correspondiam exatamente a relatos feitos pelos pacientes. Eles estiveram presentes até a fase final do projeto, atuando como consultores e avaliadores da veracidade apresentada sobre o assunto.

Saúde mental na indústria

Ninja Theory se reúne com especialistas e pacientes na pré-produção de Senua
Hellblade não é o primeiro a abordar uma temática de saúde mental. Diversos jogos já adentraram esse tema e muitos deles são grandes ferramentas de conscientização, como o luto em Gris (Multi) e That Dragon Cancer (Multi); a depressão em Depression Quest (PC); a ansiedade em Celeste (Multi) e Night in The Woods (Multi), entre outros.

Entretanto, o comprometimento da equipe em seguir solo no empreendimento para se manter fiel à representação de um assunto tão delicado é o que faz o caso de Senua ser tão importante. A obra da Ninja Theory ganha destaque na pesquisa aprofundada sobre a temática, a jogabilidade calcada nos sentimentos e sintomas da psicose, baseando-se nos relatos de pessoas reais que sofrem de tal condição.

Para além disso, provou ser possível fazer um game AAA “comercial” que não precisasse se calcar em estigmas antigos e representações irreais da nossa sociedade, sendo um veículo para entretenimento, mas, acima de tudo, uma forma de comunicar e conscientizar a comunidade com arte.

No próprio documentário de apresentação do tema, os comentários enfatizam a importância de projetos sinceros como Senua:

“Tive um surto psicótico há vários anos, meu irmão nunca entendeu. Eu o ouvi dizer que tinha vergonha de mim. Após esse jogo, ele veio até mim mim e disse que sentia muito. Vocês passaram uma mensagem que eu nunca poderia ter passado”.

Hellblade: Senua’s Sacrifice recebeu prêmios importantes do meio, como cinco Baftas, inclusive o de melhor jogo britânico, e três prêmios do The Game Awards. Esse feito é um testamento de que a indústria pode, sim, quebrar seus padrões e apresentar histórias tangíveis e sinceras, sem necessitar do apelo do público com clichês.


A história contada enfatiza como era tratada a questão mental no mundo antigo e reflete na nossa atualidade, preconceitos e ignorância. Senua é exilada e sua doença é atribuída a uma “escuridão”. Boa parte da jornada é a sua luta contra o inimigo invisível da sua doença, o luto pelo amante morto e o horror de vivenciar a realidade dessa perda, algo que não está longe da realidade de muitas pessoas que sofrem com transtornos mentais todos os dias em nossa sociedade.

Se tratando de saúde mental, que segundo a OMS em 2013, afetava mais de 700 milhões de pessoas no mundo, tendo estes números crescido com o passar dos anos. Fica claro a necessidade de tratar o assunto com a devida seriedade que precisa, mesmo em obras fantasiosas.
Pacientes avaliam uma das versões do jogo apresentado pela Ninja Theory
Marco Antônio Abud Torquato Junior, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, enfatiza também a importância do combate à desinformação e ao preconceito. “Em geral, o maior desafio está no início do tratamento, em ajudar a própria pessoa e sua família a vencerem o preconceito e o estigma em relação a realizar um tratamento psiquiátrico”.

Neste cenário, a criação de obras fictícias como filmes, músicas e jogos, são ferramentas importantes como componentes de auxílio em nosso mundo. O poder de mostrar por uma outra lente a realidade do outro pode ser transformador, e fazer isso de forma fidedigna e sincera é o caminho para que problemas como o estigma das doenças mentais seja esquecido no passado.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
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Redator publicitário em tempo integral e amante de games nas horas vagas. Provavelmente aprendi a segurar um controle mais rápido do que uma mamadeira. Cresci com os maiores clássicos da Big N como Zelda, Mario e Pokémon. Hoje aproveito os pequenos momentos de descanso da vida corrida para me perder em Hyrule, em uma Tóquio pós-apocalíptica ou em um mundo de encanadores e cogumelos.
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