Análise: Milky Way Prince: The Vampire Star (Switch) é uma VN BL assombrosa e experimental

A VN indie de estreia da Eyeguys é uma expressiva semi-autobriografia que aborda TPB em um relacionamento disfuncional entre dois garotos.

em 23/06/2022

Desenvolvido pelo estúdio indie italiano Eyeguys, com design, roteiro e música de Lorenzo Redaelli, e publicado pela Fantastico Studio, Milky Way Prince: The Vampire Star é uma visual novel boys’ love com mecânicas de point-and-click. Contando com ambientação minimalista de realismo mágico misturado com surrealismo sombrio, o jogo traz uma narrativa ramificada e uma perspicaz riqueza simbólica.

Uma história baseada em fatos

Em um contexto de relacionamento abusivo, a proposta do jogo envolve refletir sobre alguns aspectos de Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), como sugerido na descrição do jogo e em referências in-game. A história é uma semi-autobiografia do criador do jogo, Lorenzo Redaelli. A página do jogo no site da Nintendo registra algumas de suas premissas para esse título:
"Durante minha experiência com um parceiro com borderline, pensei que se apaixonar por ele era como se tornar parte de um sistema estelar binário. É a coisa mais rara e preciosa do universo — mas quanto mais [essas estrelas] se aproximam, mais instáveis se tornam".

“O personagem com o qual você interage adapta o comportamento dele ao seu — usando terminologia acadêmica, trata-se de “rage tests”, “love bombing” ou redirecionamento de culpa para você. O enredo ramificado da trama é guiado por variáveis como “submissão” e “interesse” que flutuam a cada interação”.




Um enredo simples, mas psicologicamente expressivo e bem projetado

O enredo se passa em um ambiente urbano moderno e é protagonizado por Nuki, um garoto que gosta de tocar teclado e apreciar as estrelas com seu telescópio. Resguardado e só em seu apartamento, o protagonista possui consigo apenas um aquário com uma estrela do mar e um pequeno livro de conto de fadas.

 A história conta sobre um jovem que, em um dia qualquer, encontra um príncipe triste e encantador que desce dos céus, como uma estrela cadente. O garoto apaixona-se pelo príncipe e, depois de consolá-lo, é levado para seu reino estelar.


Isso, que poderia ser apenas um bonitinho conto de fadas, materializa-se certo dia na vida de Nuki, o “garoto com uma estrela nos olhos”, como também é chamado. Em uma noite, ao precipitar uma estrela cadente, ele encontra um choroso e solitário garoto sentado no chão de uma cafeteria próxima. O jovem se chama Sune, que, desde então, passa a ser, aos olhos de Nuki, seu verdadeiro príncipe estelar.

Em contraste, para o garoto desamparado, Nuki passa a ser visto como alguém que pode protegê-lo de sua personalidade insegura e autodepreciativa e de seu misterioso e traumático passado que o assombram constantemente, fazendo com que Sune pareça uma instável estrela prestes a implodir em um buraco negro. Entretanto, a história do cavaleiro leal e do príncipe estelar não se desenrola de forma tão encantadora como no conto de fadas.




Em uma curta trama com duração de duas a três horas, o romance desses dois garotos começa de forma intensa, abrupta e mágica e se desenvolve muito rapidamente na primeira metade do jogo. Na segunda, o design narrativo se ramifica, possibilitando três finais. As rotas decorrem de escolhas prévias de ação e diálogo do jogador para lidar com os problemas e mistérios de Sune, mas é difícil de saber exatamente o que resultará em uma rota diferente.

Independentemente da rota que se tome, haverá muita tensão e imprevisibilidade envolvidas no relacionamento entre os dois jovens, mostrando a todo momento quão difícil é manter esse relacionamento estável. Os três desfechos possíveis nunca concluem todas as principais respostas de forma explícita, e sim arrematam os problemas com uma perspectiva diferente sobre o fim do conto de fadas, ou seja, sobre o que significa o príncipe estelar levar o jovem humano para seu reino.


Embora com um desenvolvimento um tanto apressado, os temas tratados aparecem bem no texto, de forma bem espaçada, com imersão e suspense, e são principalmente aparentes em mensagens de celular e em poucas linhas de diálogo, em uma linguagem juvenil e fácil de acompanhar. Nesses momentos, e mesmo naqueles com tons um tanto clichês, evidenciam-se as características dos personagens de impulsividade, autodepreciação, idealização e insegurança, entre outros sintomas que correspondem ao diagnóstico de TPB, em termos de psicologia, embora eles também possam sugerir outros transtornos.

Junto dessa comunicação direta, em âmbito urbano cotidiano, há eventos transpassados por elementos visuais fantásticos sombrios que aumentam a profundidade do enredo. Tais recursos cumprem uma dupla função: por um lado, a função alegórica de vincular os problemas do relacionamento a um amor disfuncional e à historinha do príncipe estelar; por outro, a função expressiva de deformar os personagens e o cenário para dar intensidade à perspectiva subjetiva com a qual os personagens veem a si mesmos e um ao outro.



Um design experimental rico em simbolismo e com uma fragmentação dos cinco sentidos humanos

Embora seja uma visual novel ocidental, o estilo de Milky Way Prince possui uma forte influência japonesa. Alguns usos da perspectiva em primeira pessoa, a interação com o aquário e os traços minimalistas e geométricos do quarto de Nuki, que é o epicentro da trama, lembram bastante o clássico cult The Silver Case, de Goichi “Suda51” Suda. Por outro lado, há um forte tom de surrealismo e horror com um simbolismo experimental impactante, lembrando filmes de David Lynch, porém com traços orientais.

Os elementos fantásticos estão sempre presentes, como metáforas coerentes e como parte do mundo, ao menos aos olhos dos personagens. De forma paradoxal, esses elementos coexistem com o realismo do afeto entre os personagens e o contexto urbano concreto de seu convívio, sendo naturalizados pelos garotos. Desse modo, o impacto fantástico é voltado ao espectador, enquanto uma forma de exteriorizar a intensidade e as subjetividades experienciadas por Nuki e Sune.


A simbologia do jogo enfatiza principalmente analogias com realeza, astronomia e ótica. A hierarquia entre príncipe e cavaleiro, por exemplo, é mobilizada para desenvolver conceitos como de “lealdade”, “submissão” e “dominação”. Já o ciclo de vida de uma estrela, como entendido em astronomia, é usado para organizar o design ramificado da trama, dando um sentido à sua forma, e serve também para explorar os conceitos de “idealização”, “contemplação”, “órbita” e “instabilidade”. Por fim, vários signos relacionados à visão (olhos, lágrimas, perspectivas de câmera, fotografias, espelho etc.) são usados para mostrar como os personagens veem si mesmos e o outro, explorando sobretudo os conceitos de “autoestima”, “ilusão”, “medo” e “autodepreciação”.

A sobreposição dessas metáforas causa duas experiências paradoxais interessantes: às vezes de dissociação jogador-protagonista, fazendo o jogador ver o perigo quando o protagonista é cego para vê-lo, e outras de contradição sentimental, quando os personagens sentem, ao mesmo tempo, medo e amor um pelo outro. Em certo momento da história, muda-se a perspectiva de protagonismo, o que enriquece ainda mais essas experiências, de modo a se perceber a particularidade dos personagens.




Enquanto Nuki possui um amor inalcançável e incondicional que lhe dá um propósito de vida, Sune possui uma baixíssima autoestima e uma barreira de medo insuperável pelo abandono que não parecem transponíveis nem mesmo por alguém que o ame perdidamente. Assim, Sune atrai e suga Nuki em sua perdição, como um buraco negro; ou o seu sangue, como um vampiro — sendo essa outra metáfora do jogo.

A direção de som acompanha essas experiências paradoxais e imprevisíveis com momentos de silêncio, composições com tendência para tons menores, melodias tensas e imprevisíveis, ora sutis e espaçadas, ora inquietas, com acordes abruptos e dissonantes. Os timbres seguem tendências sintéticas de eletropop barroco, às vezes também com piano, o que remete ao teclado do quarto de Nuki. Inclusive, é possível tocar o instrumento em algumas ocasiões, o que produzirá melodias diferentes, a depender do estado psicológico do protagonista.




A interação de point-and-click se resume a alguns objetos do apartamento de Nuki, como o já mencionado teclado, o livrinho e outras coisas. Esses objetos são poucos, mas foram todos escolhidos cuidadosamente para funções específicas na experiência do jogo. Entre os itens de banheiro, por exemplo, a escova de dentes contribui para passar a experiência de preocupação consigo mesmo; o perfume, a preocupação com o outro; o espelho, a preocupação com a forma de ver a si mesmo (moral e esteticamente); e assim por diante, com a gilete, o aquário etc. A inclusão de cada objeto é minimalista e bem pensada.

Além disso, o jogo traz uma mecânica particular para os momentos sexuais dos meninos. Nessas ocasiões, não há cenas explícitas e as informações sobre o sexo são parciais. Vale observar que não houve censura alguma, essa foi mesmo a proposta da obra. Essa escolha tem a ver com um sistema com cinco opções de sentidos (visão, olfato, audição, tato e paladar) por meio do qual pode-se saber o que Nuki está sentindo com Sune de forma fragmentada e pontual.


Isso transforma o parceiro de Nuki como que em uma esfinge, cobrindo as escolhas durante o ato de prazer dos dois com suspense, mistério e imprevisibilidade. Salvo o caso em que se escolha a visão, a experiência de Nuki é sempre descrita só em termos textuais, pois a tela fica escura e sem nenhuma mudança na direção de som.

Apesar desse sistema de sentido ser bem interessante e causar um pouco de suspense, ele poderia ser mais bem integrado à proposta, sendo mais aproveitado e desenvolvido. As interações com point-and-click também poderiam ser ampliadas, mesmo que mantendo sua proposta minimalista, mas elas acabam muito limitadas também pela simplicidade dos demais cenários do jogo e pela brevidade da história.

A simplicidade de design também se vê nos personagens, principalmente em Sune, embora seja interessante perceber o contraste de momentos em que Nuki é desenhado de forma mais detalhada e colorida.

Uma estrela brilhante e imperfeita

Mesmo considerando seu intento minimalista, Milky Way Prince: The Vampire Star é demasiadamente simples em alguns aspectos visuais, como em cenário, e sua história poderia ser um pouco mais alongada e polida para trabalhar seus personagens. Seu sistema de sentidos é interessante e traz uma experiência única, mas poderia também ser mais bem desenvolvido.

Em geral, o design do jogo é coerente e bem projetado para a representação de um relacionamento disfuncional, dando forte personalidade, expressão e imersão em uma obra com densa simbologia de temas psicológicos de grande relevância. O título é recomendado para fãs de jogos experimentais e reflexivos, e sobretudo para fãs de VNs de romance com foco psicológico.

Prós

  • Trilha sonora sutil, imersiva e expressiva com piano e eletro pop barroco;
  • Cenografia e design visual minimalistas, coerentes, bem estilizados e simbolicamente densos em torno de metáforas surreais e conceitos que refletem diferentes aspectos de um relacionamento abusivo;
  • Boa representação de TPB e de idealização para os personagens da trama;
  • Design narrativo bem projetado, coeso e coerente em torno do ciclo de vida de uma estrela;
  • Explora com sensibilidade e naturalidade temática LGBTQIAP+ (boys' love);
  • Sistema de sentidos bem interessante para a proposta, dando uma experiência única, sutil, fragmentada e enigmática aos momentos sexuais com Sune.

Contras

  • Cenários pouco desenvolvidos e design visual simples demais às vezes;
  • Desenvolvimento dos personagens muito rápido;
  • As mecânicas ofertadas poderiam ter sido mais exploradas;
  • É difícil de identificar os pontos-chave que impactam no curso da trama;
  • Embora seja uma história curta, faz falta um mecanismo mais prático para revisitar partes específicas da trama para tentar outras rotas.
Milky Way Prince: The Vampire Star — PC/Switch/PS4/XBO — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Fantastico Studio

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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