Em Citizen Sleeper, temos agora um contexto mais facilmente associável a esse tipo de história: a vida em uma estação espacial em ruínas. Com ambientação crível e envolvente, a obra traz uma narrativa bem desenvolvida que definitivamente vale a pena para quem está à procura de um bom sci-fi.
O sonho de outra vida
Em um contexto futurista, a vida no espaço agora é uma realidade comum. A sociedade humana se desenvolveu para outros pontos do universo com grandes corporações impulsionando a busca pelo progresso a todo custo. Essas expedições ao espaço levam pessoas de todos os tipos em busca de suas ambições e sonhos.Em Citizen Sleeper, você assume o papel de um sleeper, um robô que carrega dentro de si uma consciência digitalizada. Inicialmente, o seu personagem sente a desconexão entre corpo e mente de forma notável e, mesmo depois de se habituar, ainda acaba tendo que se perguntar sobre a sua própria existência. Afinal, ele é a pessoa de antes da digitalização, uma máquina que apenas carrega memórias e instruções baseadas nisso ou uma criatura totalmente nova?
Composta por vários grupos com intenções conflitantes, a estação é um lugar vibrante em que as pessoas se esforçam para sobreviver um dia (“ciclo”, na terminologia do jogo) de cada vez. A interação com elas é uma parte fundamental de uma discussão sobre valores e alianças que consegue não ser apenas um monólogo moralizante vazio e sim uma reflexão sobre assuntos profundamente pertinentes.
O único ponto que senti que poderia ter sido um pouco melhor trabalhado é na interconexão das ações com o mundo em questão. Cada micronarrativa relacionada a um personagem é bem construída, mas algumas ramificações são pouco exploradas. Como se trata de um mundo particularmente denso e interconectado, é uma pena quando certos eventos não levam em consideração o impacto da resolução de outras histórias adjacentes, assim como a tendência do jogo à pouca diversidade das opções de diálogo. Porém, isso não significa que a obra não ofereça consequências, sendo elas mais relacionadas ao gerenciamento do tempo, que pode fechar certas linhas de história.
Um outro corpo
Em termos do gameplay, Citizen Sleeper é um título pautado pelo gerenciamento de tempo e ações. Cabe ao jogador explorar o Erlin’s Eye para conhecer mais a fundo o lugar, as pessoas que nele habitam, as possibilidades de emprego e até mesmo fontes básicas de sobrevivência como alimentação e reparos.
Uma grande dificuldade do corpo do sleeper é a sua obsolescência programada, ou seja, um prazo de validade que a fabricadora Essen-Arp estipulou e a única forma de superar essa barreira é através de um estabilizante produzido pela própria empresa. Com isso, ela teria garantia de contato constante durante a manutenção, sendo também capaz de rastrear o seu produto em qualquer lugar.
Um elemento que impacta bastante a progressão do jogador é a escolha de build. É possível selecionar três classes (maquinista, operador, extrator), cada uma com tendência para habilidades específicas. Com os bônus atribuídos inicialmente, o extrator tem mais facilidade em trabalhos manuais, o operador, em interagir com interfaces e o maquinista, em engenharia. Porém, isso é apenas a condição inicial deles, sendo fácil subverter a lógica com os pontos obtidos ao resolver as missões (“drives”, na terminologia do jogo).
Vivendo um dia após o outro
Em termos da rotina, é necessário escolher uma série de ações para realizar durante cada ciclo. Algumas ações exigem itens (ex: vender resíduos) ou dinheiro (ex: comprar comida), mas a maioria delas envolve o uso de dados que seguem o formato mais comum, D6 (que possui seis lados). A cada novo ciclo, o jogador recebe mais e as faces já são indicadas no início do turno. A quantidade de dados obtidos varia de acordo com a condição do corpo do sleeper, sendo no máximo cinco.
Dependendo da face do dado, as ações terão probabilidades diferentes de dar certo, sendo preferível utilizar dados de maior valor usualmente. Ao fortalecer sua build, ações associadas àquele atributo receberão bônus nos dados, com um máximo de +2, ou seja, é possível ter garantia de 100% para resultado positivo com face 4 ou superior.
Porém, isso não significa que dados com face 1 ou 2 precisem ser ignorados. Eles são úteis especialmente na extração de informações da rede. Ao apertar X, o jogador se conecta a essa outra visão da estação espacial, tendo acesso a interfaces variadas tanto com a própria estação quanto com agentes dos grupos Havenage e Yatagan. Os últimos usualmente exigirão dados de face pequena, sendo uma forma bem útil de aproveitá-los.
Em termos das ações, vale destacar ainda que vários eventos dependem da passagem dos ciclos. Com isso, é comum ter que esperar um tempo para que certas ações sejam completadas enquanto são gerenciados outros elementos. Também é importante ficar de olho em todos os nós de ação para ver quais deles podem render novos drives. Por exemplo, comer cogumelos algumas vezes na lanchonete renderá uma missão e trabalhar em alguns lugares e ter efeitos negativos ou positivos podem oferecer não apenas dinheiro e outros bens materiais como também novas linhas curiosas de história.
Gostaria de destacar também os elementos audiovisuais, especialmente a trilha sonora. Trata-se de uma música ambiente que busca um trabalho de imersão que vai além de simplesmente se moldar aos eventos. Por um lado, há o uso de uma sonoridade mais robótica que ajuda a transmitir a sensação de estar vivendo em um futuro com altas implicações tecnológicas, enquanto os toques espaçados com elevamento esporádico do volume ajudam a dar uma sensação de vastidão do universo e pequenez individual com tendência ao isolamento reflexivo.
Isso não significa que o aspecto visual deixa a desejar, mas comparativamente é menos estimulante. Os ambientes são críveis, porém pouco chamativos, especialmente ao jogar no modo portátil, o que ajuda a valorizar o real foco da experiência: o texto. Contudo, o design de personagens também possui altíssima qualidade com ilustrações que, embora estáticas, são riquíssimas em detalhes e nuances de personalidade, contribuindo para a percepção do jogador para além dos elementos textuais.
Por fim, gostaria de salientar dois elementos levemente negativos específicos da versão de Switch. Primeiramente, não é possível usar a tela de toque. Apesar de não ser um problema, a experiência de clicar nos objetos e avançar as falas costuma ser facilitada por essa opção em outros jogos.
Além disso, a interface possui alguns elementos muito pequenos para o modo portátil. O jogo até possui uma forma de aumentar o texto, o que é bastante útil, mas outros elementos continuam em tamanho menor devido ao design. Não chegou a ser um problema para mim pessoalmente, mas imagino que alguns jogadores acabem preferindo jogá-lo em uma tela maior.
Uma ficção científica fascinante
Citizen Sleeper é uma obra de ficção científica sensível e bem escrita cujas discussões são profundamente relevantes. Trata-se de uma obra-prima que qualquer jogador interessado em uma boa história deveria experimentar.
Prós
- Ambientação sci-fi bem escrita cujos vários elementos ajudam a enriquecer o panorama da trama;
- Situações maduras e personagens críveis ajudam a criar eventos envolventes;
- Discussões interessantes sobre conceitos filosóficos como liberdade, existência e agência pelos olhos de uma máquina com consciência emulada;
- Trilha sonora bem empregada utilizando sonoridades mais robóticas para transmitir sensações de isolamento e vastidão do espaço dentro de um prisma futurista;
- O sistema de builds valoriza a capacidade do jogador de explorar as peculiaridades das suas habilidades para criar seus ciclos de rotina dentro do gerenciamento de ações;
- O sistema de dados é balanceado, colocando os valores pequenos demais na rede, enquanto os de valor superior são melhor empregados nas ações da superfície;
- Apesar de estáticas, as ilustrações são detalhadas e cheias de personalidade.
Contras
- Narrativa poderia explorar um pouco mais as interconexões das ações e as consequências de decisões específicas, especialmente em relação aos eixos de força do Erlin’s Eye;
- Não permite a utilização da tela de toque;
- Alguns elementos da interface podem ser pequenos no modo portátil.
Citizen Sleeper — Switch/PC/XBO/XSX — Nota: 9.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Fellow Traveler