Se os videogames com temas políticos não são apenas entretenimento e competição, mas também representam ideias e fatos, então eles têm muito a aprender e ensinar em termos de história e teoria política. Se é assim, devemos conversar mais sobre como a política é feita, como os papéis políticos são interpretados por algumas pessoas e como as sociedades constroem jogos de poder. Talvez você já tenha experimentado essas coisas in-game, principalmente em estratégia, simulação ou RPG.
No clássico livro Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, é dito que as funções de um jogo podem ser definidas em dois aspectos fundamentais: “uma luta por algo ou a representação de algo”. Curiosamente, a citação também pode servir para definir as funções da política: toda política é feita para lutar por algo ou alguém e/ou para representar (em um sentido diferente de jogos) a expressão parcial de um povo. Neste ensaio, mostrarei como ambos esses aspectos podem ser capturados e elaborados pela ficção política em RPGs, principalmente em RPGs táticos.
Como discuti em outro texto aqui no Nintendo Blast, nos RPGs ocidentais, muitas vezes os jogadores podem personalizar seu próprio avatar ou desfrutar de ampla liberdade para o fluxo da história. Por outro lado, nos RPGs japoneses é mais comum que os jogadores assumam o papel de personagem bem-definidos e tenham uma liberdade mais limitada em suas escolhas.
De uma forma ou de outra, o fato é que os desenvolvedores podem criar RPGs com maior foco na própria jogabilidade (primeira parte da definição do Huizinga), como no recente Dungeon Encounters, dirigido por Hiroyuki Ito, ou com maior foco representacional (segunda parte da definição), como na arte, na narrativa e no design de várias mecânicas de Disco Elysium (Multi), de 2019, dirigido por Robert Kurvitz.
No decorrer deste texto, focarei na parte representacional dos RPGs para comunicar ideias sobre política e interagir com os ideais e as intuições políticas dos jogadores. A delimitação do assunto nos RPGs, claro, não é fortuita; reflete as preocupações comuns desse gênero com mecânicas táticas de RPG e com propostas para desempenhar papéis em uma trama que envolve países e nações. Dessa forma, como alguns RPGs tentam representar fenômenos políticos ou ideias políticas, eles têm muito a aprender com a “política real” (realpolitik), enquanto jogo de poder, e as teorias políticas.
Para RPGs com proposta política ou político-militar, é fundamental estudar esses temas para escrever personagens persuasivos, diálogos diplomáticos e planos de poder e governo. Por outro lado, na medida em que alguns RPGs são capazes de criar representações interativas interessantes da política, eles precisam ser levados cada vez mais a sério para que possamos pensar em problemas reais e teóricos que surgem nesses jogos.
Política real nos videogames
Ao se pretender fazer um videogame sobre política, há muitas razões para estudar o que chamamos de realpolitik, ou seja, fenômenos políticos que realmente aconteceram ou estão acontecendo que podem ser interpretados friamente como disputas de poder. As principais razões que tornam este estudo extremamente útil para desenvolvedores de jogos são: background da ficção histórica; exemplos para aumentar a verossimilhança de eventos políticos; e a inspiração para a mecânica.
Como jogador, mas também historiador e filósofo das ciências históricas, devo dizer que o nível de precisão historiográfica e plausibilidade da história contrafactual em videogames como as séries Assassin's Creed e Call of Duty é muito baixo comparado ao nível de precisão e plausibilidade de brilhantes ficções cinematográficas e, principalmente, na literatura, como A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, ou Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. Felizmente, existem algumas exceções como Medal of Honor (1999), também dirigido por Steven Spielberg, e alguns jogos de estratégia como Crusader Kings III (2020), dirigido por Henrik Fåhraeus.
Uma “boa ficção histórica” requer atenção principalmente a dois fatores: precisão histórica e plausibilidade histórica. No primeiro caso (precisão histórica), estou me referindo ao fato de que uma ficção histórica sobre certo evento em um período determinado precisa levar em conta o que os historiadores sabem sobre o tal evento e definir os eventos ficcionais de tal forma que eles remetam corretamente ao seu tempo. Caso você leia em inglês, como introdução ao tema, recomendo Whose History?: Engaging History Students through Historical Fiction (2013), de Grant Rodwell, que acho bem didático para abordar o assunto.
Existem muitos jogos políticos que acontecem na época medieval, mas os “RPGs medievais”, ou pelo menos a maioria deles, não se passam exatamente no período medieval, mas se inspiram em coisas do período para os eventos políticos de seu próprio mundo de fantasia. Isso ocorre, por exemplo, na série Dragon Age, na série Ogre e muitas outras. Essa tendência remonta à origem desse gênero em Dungeon & Dragons e à influência dos livros de Tolkien.
No segundo caso (plausibilidade histórica), estou me referindo ao fato de que uma ficção histórica, por ser ficção, pode especular além do que realmente aconteceu, mas precisa fazê-lo de tal forma que os eventos fictícios sejam plausíveis, ou seja, “poderiam ter acontecido”, tanto em termos de conhecimento histórico quanto em termos de regras ficcionais estabelecidas pelos desenvolvedores. Esse segundo aspecto nos leva à segunda razão pela qual os designers de jogos precisam estudar a realpolitik: “exemplos”.
Em um dos meus ensaios anteriores para SUPERJUMP, também traduzido aqui para o Nintendo Blast, escrevi sobre o conceito aristotélico de verossimilhança e demonstrei uma série de escolhas de design (principalmente narrativas) que tornam os eventos em um jogo mais críveis. O conceito de plausibilidade tem a ver com verossimilhança, mas não só, e é muito bem discutido no livro Plausible Worlds: Possibility and Understanding in History and the Social Sciences (1991), de Geoffrey Hawthorn.
Tudo o que eu disse no texto sobre a poética do design narrativo (recomendo como complemento) vale também para o caso dos jogos de ficção histórica, mas com a adição de que eles também precisam levar em conta o que acontecia no período histórico que abordam ou que teve algum paralelo na história humana, para deixar claro para o jogador que, embora um evento fictício não tenha ocorrido, se o passado fosse diferente, poderia plausivelmente ter ocorrido no lugar de um fato histórico. Assim, para que desenvolvedores de jogos de ficção histórica com temática política saibam como escrever diálogos, personagens, cenários e eventos ficcionais plausíveis dentro de um período histórico, eles precisam estudar exemplos de eventos análogos na história humana.
Um bom exemplo de inspiração histórica no campo político é The War of the Lions in Final Fantasy Tactics (1997/2007), dirigido por Yasumi Matsuno. Esta guerra fictícia é uma clara alusão à Guerra das Rosas, uma série de guerras civis travadas pelo controle do trono inglês em meados do século XV, entre apoiadores de dois ramos rivais de cadetes da Casa Real de Plantageneta: Lancaster e York. Além disso, a Guerra dos Cinquenta Anos, no jogo, pode aludir à histórica Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França, com Ivalice representando a Inglaterra e Ordallia representando a França. A inspiração histórica nesses eventos também levou os tradutores Alexander O. Smith e Joseph Reeder a usar termos — como “ser” no lugar de “sir” — de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, outra obra inspirada na Guerra do Rosas.
Paralelamente às inspirações históricas para o enredo político e o cenário, a mecânica política dos jogos de RPG também deve ser mencionada. Quando se trata de RPGs não táticos, é comum o jogador seguir uma trama política do ponto de vista individual, o que pode eventualmente envolver escolhas individuais, como em Disco Elysium. Por outro lado, nos RPGs táticos as escolhas individuais do protagonista podem ditar o destino das nações, como em Tactics Ogre (1995/2010), também dirigido por Yasumi Matsuno. Para emular escolhas democráticas, não só do protagonista, também é possível adotar um sistema de persuasão e votação, como em Triangle Strategy (Switch), dirigido por Kazuya Miyakawa. Outro exemplo nesse sentido é o caso do sistema de Assembleia, da série Disgaea.
Olhando para jogos como os mencionados acima, é fácil ver como o estudo de fenômenos políticos reais pode enriquecer um RPG político em termos de cenário, enredo e até mesmo no design da mecânica do jogo. Na medida em que jogos como esses podem emular parcialmente fenômenos políticos reais, isso significa que os jogadores podem aprendê-los enquanto jogam, enquanto ainda se sentem imersos nesses fenômenos.
No entanto, infelizmente, a maioria dos RPGs com uma abordagem política não corresponde à real complexidade política. Com muito esforço, alguns conseguem escapar do estereótipo do mal vs. bem, mas dificilmente passam um bom entendimento de que a política é essencialmente o meio coletivo pelo qual tanto o conflito quanto o diálogo começam e terminam na tentativa de alcançar interesses divergentes que são geralmente racionais e compreensíveis em seus respectivos contextos socioculturais.
Para que um RPG com foco político se torne interessante, em termos de reflexão política, não basta que os desenvolvedores utilizem elementos de fenômenos políticos reais na trama, cenário ou mecânica. Tudo isso, se bem feito, pode garantir, por si só, um aprendizado político parcial para os atores, mas é preciso ir além se se pretende refletir criticamente sobre os fenômenos políticos, é preciso ir à teoria política.
Teoria política nos videogames
Assim como a história política pode ser útil para desenvolvedores de RPGs com temas políticos, a teoria política também pode ser útil para esses desenvolvedores. Acredito que os principais usos sejam base para experimentos ficcionais em jogos com temática política; exemplos de argumentos a serem usados em linhas de diálogo; e inspiração para criar personagens.
A teoria política pode ser entendida como o esforço intelectual para compreender ou resolver problemas de natureza política. Estes são numerosos, alguns dizem respeito às relações internacionais, outros à teoria jurídica, outros à sociologia política etc., e os mais fundamentais desses problemas dizem respeito à filosofia política. Geralmente, não há respostas consensuais para os problemas teóricos colocados, mas isso não significa que “vale tudo”. Normalmente, existem diferentes abordagens teóricas que trazem soluções igualmente aceitáveis ou cada uma com diferentes consequências indesejáveis.
Alguns desses problemas são “o que uma sociedade deve ser?”, “pessoas com princípios morais radicalmente divergentes podem viver na mesma sociedade?” e “como as sociedades culturalmente diferentes podem colaborar?”. Esses três problemas são tocados por RPGs como Shin Megami Tensei III: Nocturne (2003), de Katsura Hashino, Triangle Strategy e Disco Elysium.
Shin Megami Tensei III: Nocturne — recentemente com versão remaster para Switch — é um caso de aplicação da teoria política nos três níveis mencionados. Podemos dar nomes a esses níveis: uso político como experimento ficcional, uso político em argumentação e uso político em criação de personagens. Cada um dos personagens principais de Shin Megami Tensei III foi criado de forma a representar uma postura ética diferente: um deles defende uma ligação estreita e harmoniosa entre o humano e o determinismo da natureza, como Baruch Spinoza; outro defende uma sociedade regida pelo evolucionismo social, ao estilo de Herbert Spencer; e assim por diante.
Cada um desses personagens tenta convencer o jogador, por meio de argumentos, a ficar do seu lado, sua Razão. Tais argumentos, embora simples, refletem claramente um estudo prévio de filosofia política por parte dos desenvolvedores. Conforme demonstrado por Sam Hatting, e como já comentei em outro texto, essa construção narrativa foi pensada com inspiração na filosofia de Niezstche, como uma espécie de “experimento político” que acaba por dar uma resposta pessimista, crítica e realista de como o humano pode lidar com seus ideais de “sociedade perfeita”.
O realismo na teoria política é marcado por uma premissa de ver as relações políticas como uma luta contínua pelo poder. Essa tese remonta mais diretamente a filósofos do início da era moderna, como Maquiavel e Hobbes, mas rudimentarmente essa posição já se encontra na República de Platão, opondo-a a uma posição que hoje consideramos idealista, ou seja, uma posição de reflexão sobre “como uma sociedade deveria estar".
Na contramão de Shin Megami Tensei III, Disco Elysium também discute o problema da coexistência de princípios morais radicalmente contraditórios, mas este RPG explora esse problema como uma luta retórica mais complexa, e não simplesmente combate com habilidades e ataques físicos. Sim, também existem opções de diálogo tradicionalmente na série Shin Megami Tensei, mas essas opções são bastante diretas e simples, não o suficiente para caracterizar algo como um debate ou discussão entre jogador e NPC.
Por sua vez, Disco Elysium explora a mecânica de RPG em dois aspectos de diálogo. Existe o diálogo interno, com as faculdades mentais do protagonista, e o diálogo externo, com NPCs, cada um com uma postura moral e/ou política diferente, com posicionamentos como hiperliberalismo, comunismo, fascismo, entre outros. A experiência política de Disco Elysium é muito interessante e mostra a complexidade da retórica política ao mesmo tempo que mostra a complexidade dos agentes políticos: não são apenas pessoas com uma motivação única e coerente, mas seres complexos com várias faculdades mentais, desejos e dúvidas que se deparam com dilemas para tentar harmonizar desejos contraditórios na sociedade e dentro de si.
Pode-se dizer que Shin Megami Tensei III fornece uma experiência realista da política em um nível metafísico e individualista, enquanto Disco Elysium fornece uma experiência idealista da política, em um nível mais naturalista (sem monstros ou demônios). Além disso, Disco Elysium proporciona um debate introspectivo e interpessoal. Triangle Strategy (Switch), por sua vez, possui um elenco de personagens com decisões políticas mais sérias, não são cidadãos comuns, mas nobres ou soldados importantes que representam nações, e proporciona não apenas uma experiência realista e idealista da política, por meio do uso de opções de poder e diálogo, mas também oferece uma experiência em valores liberais, dilemas econômicos e relações internacionais.
Triangle Strategy demonstra a importância da interdependência econômica para a harmonia entre as nações. Além disso, discute golpe de Estado, intervencionismo, pactos bilaterais e soberania das nações, fazendo com que o ator nesses e em outros temas precise escolher entre priorizar a moralidade, a utilidade ou a liberdade. Este é um design narrativo de escolhas políticas e militares claramente inspiradas na série Ogre, embora a tendência de abordagem política medieval e fantástica nos RPGs táticos remonte à série Fire Emblem, cuja influência também é notável em Triangle Strategy. Para quem esteja interessado no tema, escrevi um artigo especificamente sobre a mecânica da votação no mais novo título da Square Enix.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados em RPGs, mas minha intenção não é me aprofundar em estudos de caso nem ser exaustivo nos exemplos. Minha intenção foi de apenas oferecer exemplos suficientes para demonstrar como teorias de realismo, idealismo e liberalismo estão presentes em RPGs com temas políticos, bem como elementos inspirados na história política.
O futuro dos jogos políticos
A qualidade dessas apropriações teóricas e empíricas da política em games pode e deve ser contestada; na verdade, acredito que os videogames ainda têm muito a melhorar nas abordagens políticas. No entanto, a existência desses fenômenos nos videogames merece maior visibilidade tanto no meio acadêmico quanto no debate público. Existem várias questões políticas abordadas nos videogames que, como Ian Bogost demonstrou em seu livro Persuasive Games: The Expressive Power of Videogames (2007), não devem ser subestimadas em sua capacidade de persuasão.
Os jogadores experienciam uma bagagem política e sempre evoluem, em termos de habilidades e conhecimentos, ao experimentar títulos que abordam esse tema. Imagine o potencial que esse meio tem de criar experimentos políticos artificiais, com interação entre jogadores e IA. Várias ideias filosóficas podem ainda ser recriadas em mundos fictícios interativos, tanto para testar as reações dos jogadores a questões éticas e políticas quanto para motivar a criatividade dos jogadores a encontrar soluções para problemas nessas áreas.
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Este texto, com algumas modificações, foi originalmente publicado pelo autor na SUPERJUMP (inglês)