Erotismo em jogos: censura e retrocesso em tratar o assunto como tabu

Fanservice pode, mas relações sexuais não?

em 31/03/2022
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Ao projetar um jogo, as equipes de desenvolvimento precisam avaliar o seu conteúdo em relação ao público a que se destina. Isso implica em ajustes variados, alguns dos quais podem até mesmo ir contra a proposta original para garantir a sua adequação, ação que pode ser considerada como censura mesmo que ocasionalmente autoimposta. Critérios como as classificações indicativas de vários países servem como parâmetro do que é apropriado ou não para diversas faixas etárias.


Em geral, dois tópicos acabam tendo maior peso nessas avaliações. Um deles é a violência, que, apesar de ser comum nas obras, pode ter um grande peso psicológico ao ser muito exagerada e/ou realista. O outro abrange conteúdos de cunho sexual, sendo obras muito explícitas nesse sentido consideradas impossíveis de vender nos consoles, mesmo que para um público adulto.

Por conta disso, muitas vezes obras dessa natureza optam pelo corte desse tipo de conteúdo, criando o que é chamado de "all ages". Ou seja, em tese, a retirada de sexo é o suficiente para deixar o título acessível a (quase) todas as idades, como se esse tipo de conteúdo fosse algo abominável — e que nem mesmo um público adulto deveria acessar nas plataformas. Essa prática é muito comum em visual novels especialmente, tendo em vista que elas são o principal formato do que é chamado no Japão de eroge (a grosso modo em português, jogos eróticos).
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Evenicle II (PC)


Quando há um planejamento prévio, já pensando nessa restrição de idade, o conteúdo base de um jogo é adaptado para contemplar as mudanças e a censura raramente afeta a experiência em si. Cito aqui duas visual novels que analisei para o Nintendo Blast, The Language of Love e Blackberry Honey, que tiveram CGs de cenas de sexo removidas nas versões para consoles, mas no PC (via Steam) os jogadores têm a opção de baixar um patch com o conteúdo deixado de lado na versão "all ages".

Do outro lado desse "purismo", temos diversos jogos com conteúdos tão sexuais quanto um momento de intimidade em um relacionamento desenvolvido em uma visual novel. Títulos com um alto teor de fanservice — às vezes, implicações tão mais escancaradas do que o ato sexual em si — têm ganhado cada vez mais espaço nas plataformas atuais, especialmente o Switch. Nesse sentido, este texto busca pensar nas limitações e censuras que jogos com conteúdos sexuais sofrem e na forma como a falta de discussão séria sobre o assunto ajuda a manter um grande retrocesso na representação do erotismo e até mesmo dos relacionamentos em jogos.

O fanservice e a objetificação dos corpos femininos

Obviamente, esse fanservice, cuja estrutura gira em torno da sexualização e objetificação do corpo feminino, é voltado a um público-alvo masculino (em sua maioria heterossexual), raramente pensado em uma parcela (mesmo que pequena) de mulheres que podem vir a gostar desse tipo de conteúdo. Por que esse tipo de material é aceito pela sociedade, mas o prazer feminino advindo de uma relação mais íntima é visto como algo abominável e impróprio em videogames?

Se colocarmos esses dois opostos em uma balança, tem mais peso uma demonstração de amor que um ângulo sugestivo durante uma cena de ação. Mesmo o fanservice é censurado, mas essa "censura" é bem mais branda do que uma cena de sexo.

Não raramente temos jogos que também se apropriam de fanservice mesmo quando sua temática não é necessariamente essa. Em 2019, houve um grande bafafá na comunidade gamer a respeito da mudança de trajes das lutadoras em Mortal Kombat.
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Fire Emblem Heroes (Android/iOS)
Ao justificar tais mudanças, os responsáveis pelo jogo deixaram bem claro que, até então, as roupas usadas pelas mulheres não eram práticas, dado o cenário e o contexto de Mortal Kombat. Como resposta, os jogadores — homens em sua maioria — retaliaram a decisão nas redes sociais. Esse exemplo é o que mais evidencia como as pessoas estão tão condicionadas a ver "um corpo feminino bonito em trajes mínimos", que aproximar as vestimentas de uma realidade palpável beira o absurdo.

Infelizmente, o que mais se vê é uma prática infeliz do uso do corpo feminino como ímã de lucro, com personagens femininas de personalidade rasa e, infelizmente, sem desenvolvimento algum. São mulheres que se resumem a poses sugestivas, roupas rasgadas de maneira conveniente, um "mostra-mas-não-mostra", ênfase na famosa prática de "tits and butt". Mobages são um bom exemplo aqui, em especial Fire Emblem Heroes, que busca transformar heroínas e vilãs em um caça-níquel de pulls em, pelo menos, 90% das vezes, ou até mesmo o próprio DanMachi.

Um fanservice bem-feito, isto é, representado de maneira artística, pode ser aproveitado inclusive por mulheres, seja como uma forma de representação ou de prazer. Isso acontece quando os desenvolvedores demonstram esforço em fazer uma boa representação da situação — aqui incluso também o cuidado de adicionar um contexto plausível para a ocorrência desse tipo de sexualização — e sem demonstrar desconforto por parte das mulheres retratadas naquela mídia.

A questão a ser levantada aqui, levando em consideração os prós e contras do uso da imagem feminina nas mídias, em especial os videogames, não é censurar, condenar ou banir a sensualização do corpo feminino, mas sim se atentar ao fato de como ela é feita. Para isso, é necessário discutir como torná-la parte do jogo sem fazer com que se transforme em uma ferramenta voltada exclusivamente ao público masculino e de forma que também se torne atraente para as próprias mulheres — sem que a representação delas se resuma a ilustrações vazias e sem conteúdo.
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Is It Wrong To Try To Pick Up Girls In A Dungeon? Infinite Combate (Switch/PC/PS4)


Sexo como uma etapa natural de um relacionamento

Sejamos honestos que sexo é uma parte natural da vida de boa parte das pessoas no mundo. O assunto é muitas vezes colocado como um tabu, algo que causa vergonha de falar ou não deveria ser tratado de forma séria. Porém, especialmente quando se fala da representação de relacionamentos em qualquer tipo de mídia, seja ela um livro, filme ou um jogo, deveria ser até mesmo natural que uma obra voltada para um público adulto retrate o sexo como parte do relacionamento.

Quando se fala dos eroges, apesar do termo “erótico”, há muitas obras em que até o jogador chegar em um evento da história com cunho sexual, já se passaram várias horas de desenvolvimento narrativo. Dependendo da obra, esses momentos podem ser realmente importantes para um arco de personagem ou até para chocar o jogador com eventos que deveriam na verdade causar repulsa, assim como pode acontecer em peças literárias. Obras realmente pornográficas, cujo foco é totalmente no sexo em si, os chamados nukige, são apenas um dos estilos possíveis desse conteúdo.

O que acaba acontecendo é que as representações de sexo em jogos são avaliadas de forma imatura, como se eroges e nukiges fossem exatamente a mesma coisa, e cortadas na transição para consoles. É curioso pensar que existem órgãos de classificação indicativa no mundo todo e cenas de sexo explícito, mesmo em um contexto tranquilo, são consideradas algo mais inadequado do que enormes jatos de sangue e tripas.

É óbvio que é necessário ter uma regulamentação indicando que tais títulos só devem ser acessados por maiores de idade. Contudo, o que acontece na prática é que apenas alguns jogos, como The Last of Us Part II (PS4), têm autorização para tal, com o ESRB nem mesmo considerando o jogo AO ("adults only", termo utilizado para obras que apenas maiores de idade deveriam jogar).
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Blackberry Honey (PC/PS5/PS4/XBX/XBO/Switch)
A realidade dos eroges no Ocidente atualmente é a de uma grande incerteza em relação à possibilidade de sequer trabalhar com o assunto. Enquanto nos consoles os desenvolvedores são obrigados a cortar o conteúdo sexual, no PC é difícil ter boas vendas fora do Steam.

Para publicar um “jogo adulto” na loja da Valve, há, em geral, duas opções. A primeira é fazer um processo similar ao dos consoles, criando uma versão "all ages" e adicionando um patch com o conteúdo deixado de fora. A segunda é colocar o título na seção adulta, fazendo com que apenas usuários que marcam a opção de acessar essa área nas configurações da sua conta possam vê-lo.

Mesmo com essa restrição, o Steam ainda faz um processo de seleção dos títulos, cujos critérios arbitrários não são claros. Infelizmente, isso acabou levando ao banimento de alguns jogos que não têm nada demais em seu conteúdo erótico, como a visual novel Meteor World Actor, e clássicos japoneses como Full Metal Daemon Muramasa, Evenicle 2 e o RPG de terror Abaddon: Princess of the Decay. Alguns deles até mesmo contariam com edições censuradas e mesmo assim tiveram seu lançamento negado pela loja.

O resultado nesses casos é que as publicadoras são forçadas a encontrar outras lojas para publicação e suas vendas acabam sendo severamente reduzidas. Ao mesmo tempo, é possível encontrar obras que podem ser até mesmo mais polêmicas com suas abordagens de estupro e temáticas pesadas e mesmo assim passam pela avaliação da loja. O ideal seria que ela fosse pelo menos consistente e definisse com clareza os limites do que pode ser aceito pela loja e seus critérios de avaliação.
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Kindred Spirits on the Roof (PC)

Essas circunstâncias atuais acabam sendo um grande limitador para esse tipo de conteúdo. Com isso, a discussão sobre representações de relacionamentos, erotismo e as possibilidades do conteúdo sexual em jogos acaba permanecendo em um patamar raso.

Sexo em mídias não precisa se resumir a pornografia, assim como conteúdos de cunho erótico não precisam ser tratados como uma grande piada sem sentido. Existem formas artísticas de lidar com o assunto e essa limitação que corta todas as possibilidades já na base acaba apenas mantendo o status quo de uma representação que ignora o prazer dos indivíduos envolvidos na relação em prol apenas de uma objetificação dos seus corpos por fanservice.

Sem esse tipo de discussão, continuamos a alimentar uma visão machista muito presente em nossa sociedade de que a representação feminina nas mídias só é vista como alvo do prazer masculino.

Revisão: João Gabriel Haddad
Coautoria: Ivanir Ignacchitti


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Também conhecida como Lilac, é jornalista e atualmente trabalha com assessoria de imprensa. Fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas.
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