Tenho evitado analisar RPGs para o Nintendo Blast por dois motivos. O primeiro é minha agenda apertada com compromissos acadêmicos; o segundo, meu backlog gigantesco no Switch. Porém, quando vi o trailer de Crystar, minha intuição me disse que valia a pena experimentar o jogo. O resultado foi uma experiência que não me deixa largá-lo, graças à sua excelente narrativa aliada de uma poderosa trilha sonora capaz de intensificar cada detalhe da história.
Pobres corações infelizes
A história gira em torno de Rei Hatada, uma garota reclusa de 15 anos, e sua irmã mais nova, Mirai Hatada, por quem a protagonista está disposta a fazer qualquer coisa. Órfãs de pai e mãe, as duas são a única família que restou uma para a outra. Contudo, isso muda quando elas são levadas ao Purgatório (Purgatory) — uma espécie de “ponte” entre a vida e a morte — por uma entidade chamada Anamnesis, uma Vingativa (Revenant).
Anamnesis tem como objetivo alcançar o Renascimento (Revival) e, para isso, tem devorado Almas (Souls) presas no Purgatório, a fim de conseguir restaurar a sua própria e voltar à vida. Contudo, isso tem causado um distúrbio no lugar, fazendo com que outros Vingativos também comecem a caça por Almas para obter seu próprio Renascimento.
Na tentativa de proteger Mirai e voltar para casa, Rei desperta o poder de seu Guardião (Guardian), Heraclitus, e passa a destruir os Vingativos e os Espectros (Specters) em seu caminho. Porém, em um novo confronto com Anamnesis, a protagonista perde o controle sobre si e acaba matando sua própria irmã.
Tomada pelo desespero e dor da perda, Rei concorda em assinar um Contrato (Contract) com Mephis e Pheles, as Administradoras (Managers) do Purgatório, e se torna uma Executora (Executor) com o objetivo de coletar Ideias (Ideas) para as duas em troca do Renascimento de Mirai. No entanto, a garota de 15 anos está com o tempo contado, pois, quando uma Alma chega à camada mais inferior do Purgatório, onde estão as Engrenagens de Renovação (Cogs of Renewal), ela renasce como uma pessoa totalmente nova, sem memórias de quem era em sua vida anterior.
Durante sua missão de completar as inúmeras Provações (Ordeals) solicitadas por Mephis e Pheles, Rei se alia a outras duas Executoras, Kokoro Fudoji e Sen Megumiba, que também foram levadas ao Purgatório por diferentes motivos, e a uma Vingativa chamada Nanana, que, diferentemente dos outros Vingativos, não tem vontade de voltar à sua vida mortal. Dessa forma, o quarteto se aventura no Purgatório com a missão de derrotar Anamnesis e garantir o Renascimento de Mirai.
O poder dos sentimentos
A parte que mais me chamou a atenção em Crystar foi a tradução de elementos de RPGs para sentimentos e sensações. Para não dar spoiler da trama toda e estragar as reviravoltas da incrível narrativa do jogo, vou focar na Purificação (Purify) de Tormentos (Torments), que captura a essência do RPG em si.
Quando Vingativos são derrotados, eles derrubam seus Tormentos, que, ao serem purificados, se transformam em Sentimentos (Sentiments), como são chamados os equipamentos em Crystar. Estes são divididos em três categorias: Agressivos (Aggressive), que são as armas; Protetivos (Protective), as armaduras; e Amplificadores (Bolstering), os acessórios.
Como os Tormentos são as lástimas dos últimos momentos de vida dos Vingativos, a única forma de se redimir com eles é chorando — daí o nome do jogo. Conforme completamos as Provações e avançamos nos capítulos, novos Sentimentos podem ser obtidos a partir dos Tormentos.
Talvez a parte mais legal disso tudo seja a Fusão (Fusion) de Sentimentos. Todos os equipamentos, com exceção dos acessórios, podem ser melhorados. Conforme atingem um ranque maior (II, III e End), suas descrições vão sendo completadas, como se estivessem, de fato, transmitindo seus sentimentos.
A Modificação (Modify) de Sentimentos também é bem interessante. Quando derrotamos Espectros e Vingativos, podemos receber Pensamentos (Thoughts) relacionados à temática da seção do Purgatório em que estamos. Esses Pensamentos são utilizados para atribuir características únicas, porém aleatórias, aos Sentimentos, como aumento no HP, ataque físico e até mesmo imunidade a condições negativas.
Combate morno, temática excelente
Cada capítulo de Crystar dá acesso a uma nova camada do Purgatório, que consiste em quatro Provações (três principais e uma opcional). Cada uma dessas missões tem, geralmente, três andares e a exploração se dá no melhor estilo dungeon crawler, no qual temos que descobrir o caminho para o próximo andar.
As Provações têm suas próprias histórias, que servem como "capítulos" da trama principal. As seções do Purgatório seguem sua própria temática e todas, sem exceção, são acompanhadas de uma imersiva trilha sonora capaz de transmitir as sensações do capítulo em que estamos.
Apesar de uma bela apresentação audiovisual inspirada no gênero mahou shoujo (garotas mágicas), com especial destaque a Madoka Magica devido à temática sombria de Crystar, fãs mais assíduos de RPGs de ação provavelmente não verão nenhum apelo nas missões, especialmente o sistema de combate. O primeiro motivo para isso é a extensão das dungeons, especialmente as dos capítulos finais, que deixam o jogo um pouco "arrastado".
O segundo motivo é a parte da ação em si. Cada personagem tem dois tipos de ataque (fraco e forte) e podem equipar até quatro habilidades que fazem uso do ataque físico ou do ataque mágico das garotas do grupo. Embora Rei, Kokoro, Sen e Nanana tenham estilos combativos e parâmetros diferentes, o combate se resume a apenas atacar incansavelmente os inimigos.
Por falar neles, a variedade é ínfima. Na verdade, as dungeons trazem sempre os mesmos monstros com cores e nomes diferentes para indicar que estamos em uma nova área do Purgatório. A meu ver, a parte mais interessante do combate insosso é recolher as Memórias dos Vingativos para descobrir o motivo por trás de seus Tormentos.
A partir de certo ponto na história, temos acesso ao Medidor de Lágrima (Tear Gauge), como é chamada a barra de especial das garotas. Atacar os monstros em sequência e levar dano deles faz com que ela seja preenchida e, quando o limite é atingido, podemos invocar o Guardião da personagem que controlamos no momento.
Quando entramos nesse modo, o Guardião auxilia no combate, servindo como duplicador de dano. Temos também a possibilidade de desferir um golpe especial poderosíssimo ao custo de esvaziar completamente o Medidor, dando fim à invocação. Particularmente falando, ativar a Ideia de cada uma das garotas é um espetáculo à parte e, possivelmente, o ápice do combate morno de Crystar.
Sinceramente falando, até mudei a dificuldade do jogo para Hard porque a ação é muito fácil e desestimulante, mas não desgosto dela. Talvez eu seja um ponto fora da curva nesse quesito, porque adoro grinding em jogos e Crystar me deu todos os incentivos para essa prática, em especial a trilha sonora — que, inclusive, está disponível no Spotify.
Porém, como eu sei que nem todas as pessoas pensam como eu, já deixo avisado que sim, a ação é o ponto fraco do jogo. O lado bom é que a maioria dos combates pode ser evitada e sempre existe a opção de mudar a dificuldade para Easy caso a intenção seja apenas progredir na história.
Completo em diversos sentidos
Crystar conta com um vasto glossário com os termos presentes no jogo e os tutoriais podem ser acessados sempre que necessário, bem como as músicas desbloqueadas durante a campanha. Podemos ainda conferir o diário da Rei, no qual ela descreve suas experiências no Purgatório, uma forma de acompanharmos seu crescimento pessoal na trama.
Quero destacar aqui que a história é assinada por Naoki Hisaya, um dos responsáveis pela ambientação da visual novel Kanon, e tanto o tema de abertura quanto o de encerramento de Crystar foram escritos e cantados por Nagi Yanagi, conhecida por já ter feito parte da banda de J-pop Supercell e interpretado canções para os animes Jormungand e Owari no Seraph, entre outros.
A qualidade audiovisual não termina por aí. Os vídeos de abertura e encerramento do jogo ficaram sob direção de Tatsuya Oishi, do estúdio SHAFT (de Madoka Magica, Nisekoi, Sangatsu no Lion, entre outros), e a localização ocidental conta com nomes grandes no ramo da dublagem, como Brianna Knickerbocker (Sakura e Charlotte, de Fire Emblem Fates), Cassandra Lee Morris (Sothis, de Fire Emblem: Three Houses) e Cherami Leigh (Rhea, de Fire Emblem: Three Houses).
Por fim, quero abordar a performance do jogo. Diferentemente de alguns RPGs que já analisei para o Nintendo Blast, o port para Switch de Crystar é excelente. O jogo roda muito bem tanto no modo TV quanto no modo portátil do console, além de contar com a possibilidade de remapeamento dos botões. A única ressalva que tenho é um pequeno lag ao utilizar habilidades ou ao abrir o menu quando vários elementos visuais estão presentes na tela, mas nada que comprometa gravemente a jogabilidade como um todo.
Pois quando choro, sou mais forte
Crystar é um RPG de ação que abdica justamente da parte de ação para focar na história, elemento que, por si só, já compensa a simplicidade dos combates. Sua apresentação audiovisual também não deixa a desejar e capta muito bem as sensações e sentimentos transmitidos no decorrer da trama. O jogo talvez não agrade aos fãs de RPGs com sistemas mais elaborados, mas quem gosta de temas mais complexos com certeza não pode deixar esta oportunidade escapar.
Prós
- Apresentação audiovisual impecável, com grandes nomes do ramo, inclusive na localização ocidental;
- Trama envolvente, com temas complexos e ambientação à la Madoka Magica;
- Trilha sonora imersiva;
- Excelente performance no Switch;
- Vários conteúdos desbloqueáveis, como músicas, Memórias dos Vingativos, descrições de equipamentos e o diário da Rei;
- Interessante sistema de obtenção e melhoria de equipamentos.
Contras
- Combate e exploração pouco trabalhados, por muitas vezes maçantes;
- Pouca variação de inimigos;
- Pequeno lag quando muitos elementos simultâneos estão na tela.
Crystar — PS4/PC/Switch — Nota 8.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Janderson Silva
Análise produzida com cópia digital cedida pela NIS America