Auterismo e videogames

Às vezes, um videogame é como um romance, livremente concebido e planejado por um único autor, uma porta para seu mundo pessoal e imaginário.

em 11/02/2022



Se um escritor de livros pode ter sua personalidade encontrada em um labirinto de palavras, um diretor criativo de um videogame não tem nem onde escondê-la em seu trabalho, basta que ele tenha os meios e a inspiração para isso.


O termo ‘auteur’ (do fr., “autor”) ganhou um significado mais estrito no final da década de 1950, inicialmente no campo da crítica cinematográfica, depois também em outras mídias, como os videogames. Dentro desse conceito, dizemos que um diretor é um auteur em relação ao seu trabalho se, e somente se, ele tem “assinatura”, liderança e autonomia em sua criação; isso é:
  • Ele tem seu próprio estilo reconhecível e/ou um tema recorrente em sua carreira;
  • Possui alto grau de controle sobre as partes envolvidas no desenvolvimento do trabalho; e
  • Tem autonomia no processo criativo geral do seu trabalho.
Andrew Sarris (2012) sintetizou esses três elementos da definição em uma frase:
“Um cineasta com estilo individual e controle total sobre todos os elementos da produção que dá a um filme sua marca pessoal e única.”
Essas três premissas da “teoria do auterismo” ou “auterismo” datam das décadas de 1940 e 1950. A primeira designa a assinatura de um auteur, o que reflete, por exemplo, a afirmação de André Bazin, em Cahiers du Cinéma (1943), que escreveu:
“[…] Os diretores são os autores do filme e devem criar seu próprio estilo de assinatura e não serem totalmente influenciados pelo roteiro fornecido.”
A segunda e terceira premissas refletem a comparação da direção em obras audiovisuais com a do escritor em prosa ou poesia, feita inicialmente por Alexandre Astruc. Nesse sentido, um auteur de cinema ou videogame tem controle central sobre os elementos de sua obra e pode se expressar por meio dela como um escritor faz apenas com palavras.

Devido a essa tripla constatação, o nome oficial da teoria surgiu em um artigo de François Truffaut, em 1955, em que observava estilos e temas recorrentes nas obras de diretores como Alfred Hitchcock e Howard Hawks. Também vale a pena notar que dois dos principais teóricos do auterismo — Truffaut e Jean-Luc Godard — mais tarde se tornaram grandes diretores do movimento artístico da Nouvelle Vague francesa.

Neste artigo, abordarei dois aspectos envolvendo auterismo e videogames. Primeiro, explicarei até que ponto o auterismo se aplica a alguns diretores de videogame. Depois, discutirei algumas críticas frequentes ao auterismo nos videogames.
Alfred Hitchcock

Auterismo nos videogames

De acordo com algumas críticas que serão comentadas no último tópico deste artigo, a aplicação do auterismo no cinema não é tão simples quanto parece. Já nos videogames, surgem algumas dificuldades adicionais pelo fato de não ser apenas um meio audiovisual, mas também um meio altamente interativo.

O auterismo, que foi derivado em grande parte da elucidação de Astruc do conceito de caméra-stylo (“câmera-caneta”), sustenta que o diretor, que supervisiona todos os elementos de áudio e visual do filme, está mais para ser considerado o “autor” do filme do que o escritor do roteiro. No entanto, como a diferença dos videogames não são as câmeras, mas os controles, também precisamos considerá-los nos três aspectos do auterismo. Um auteur de videogame precisa necessariamente de controle e liberdade no design de jogabilidade, e seu estilo de assinatura pode ou não estar presente na jogabilidade.

Os dois primeiros aspectos são trivialmente satisfeitos por criadores de jogos indie de diferentes gêneros desenvolvidos praticamente por uma pessoa, como é o caso de Cave Story (de Daisuke “Pixel” Amaya), Braid (de Jonathan Blow), Undertale (de Robert F. Fox ou “Toby Fox”), entre outros. Esses dois aspectos também são encontrados em alguns diretores de jogos de maior orçamento, principalmente quando são desenvolvedores que presidem ou são altamente respeitados dentro de uma empresa, como é o caso de Shigeru Miyamoto, da Nintendo; Hideki Kamiya, da Platinum Games e Hidetaka Miyazaki, da From Software.
Escritórios da From Software
Hidetaka Miyazaki
Quanto à terceira premissa para um auteur (ou seja, ser facilmente reconhecível em estilo ou abordagem temática), isso pode ocorrer em diferentes campos do design de jogos simultaneamente. É o caso, por exemplo, de Yoko Taro, como nos mostra Nicolas Turcev em seu livro The Strange Works of Taro Yoko (2018).

Os jogos da série Drakengard/NieR, de Taro, têm traços estéticos peculiares (devido ao contraste audiovisual entre brutalidade e melancolia, e a alternância entre câmera livre e fixa em diferentes ângulos). Apresentam também uma conhecida trama que expõe e critica a violência e a fragilidade humanas em um design narrativo de rotas sobrepostas, além de uma jogabilidade que investe, de forma única, tanto na experiência do texto quanto no shooter (em diferentes modos), e RPG de ação ao seu estilo.


Yoko Taro
Por outro lado, Tim Schafer (Psychonauts, Grim Fandango, The Secret of Monkey Island, etc.), por exemplo, é especialmente reconhecido por um estilo cômico peculiar de design narrativo. Éric Chahi (Another World e Heart of Darkness) deixa sua marca principalmente no design visual de seus jogos. E Keita Takahashi (Katamari e outros jogos) é mais conhecido por sua jogabilidade inventiva.

Todos esses autores são igualmente auteurs de videogames, porque contempla os dois primeiros critérios e também possuem uma marca, não importando em que campo do design de jogos ela esteja. O que importa é que exista tal marca e que eles gozem de alta liberdade e poder de gestão.
Tim Schafer (ao seu lado, "Manny", o protagonista de Grim Fandango)
Éric Chahi (ao fundo, Another World)
Mas como exatamente podemos definir a “marca” de um auteur de videogame? Isso é realmente tão claro? Esse é um ponto importante que acredito valer a pena parar um pouco para falar sobre duas dificuldades na caracterização de um “estilo ou tema autoral”:
  • Dificuldade em descrever construções de projetos complexos em que a experiência de sua totalidade não se limita à mera soma de suas partes; e
  • Dificuldade em reconhecer o estilo ou identidade temática de uma obra após forte influência e disseminação de seus elementos na indústria.
A primeira dificuldade surge quando nos deparamos com um diretor cujos jogos não possuem um aspecto específico e único, mas sua identidade está no conjunto deles. É o caso de Fumito Ueda (ICO, Shadow of the Colossus e The Last Guardian), pois seu estilo é reconhecível não separadamente pelo minimalismo da interface, pela saturação de cores, pela animação realista, por tramas sutis que são mais abertas à interpretação etc.
Fumito Ueda (ao seu lado, um cartaz The Last Guardian)
Todos esses elementos (e outros), tomados isoladamente, existem e existiram em outros jogos. Mas Ueda traz consistência a esses e outros elementos de design de jogos em suas criações. Sua filosofia de design de subtração cria uma identidade única em seus jogos não para seus elementos individuais, mas para o todo.

Mas daí surge a segunda dificuldade. Antes de Metal Gear (1987) já existiam games que hoje poderíamos chamar de “stealth”. Muitos consideram Castle Wolfenstein (1981) o primeiro jogo desse tipo. E antes de Metal Gear Solid (1998) também havia títulos com inspirações cinematográficas, como Ninja Gaiden (1988), Prince of Persia (1989) e o já mencionado Another World (1991). Mas é inseparável de Metal Gear Solid de Hideo Kojima a popularização e desenvolvimento do gênero stealth, assim como diversas escolhas cinematográficas de Hollywood em videogames.
Hideo Kojima (na extrema esquerda)
Mas o estilo de direção cinematográfica de Kojima e a mecânica furtiva de Metal Gear Solid inspiraram muitas outras franquias. Algo assim também pode ser dito dos vários jogos que aplicaram a filosofia de design de subtração de Fumito Ueda, como Journey, RiMe etc. E esse tipo de influência de longo prazo é ainda mais notável no caso de Another World, que foi uma grande influência no design para Ueda e, por sua vez, mais tarde, em vários jogos de plataforma com foco artístico.

No entanto, acredito que, em parte, a resolução desse problema está na formulação da questão. Se conseguimos ver que vários jogos “copiaram” uns aos outros, isso já é um sinal de que podemos reconhecer claramente traços de estilo e/ou tema ali e traçar sua origem, provando que um estilo e/ou tema é do próprio autor (embora outros tentem copiar parcialmente sua abordagem).





A outra parte da resposta está na aplicação da abordagem inventada por esses autores. Embora existam outros jogos com foco cinematográfico e também jogos subtracionistas, os de Kojima e Ueda, por exemplo, ainda têm estilos únicos e obsessões temáticas dos autores que claramente diferenciam suas obras de outras inspiradas neles.

Assim, uma vez que os diretores de videogames podem ter controle e liberdade criativa tanto no aspecto audiovisual quanto na interação, e uma vez que as duas dificuldades listadas podem ser superadas, acredito que não há razão para supor que o auterismo não possa ser aplicado também a diretores de videogames como Arnt Jensen, Kojima, Ueda, Suda51 (na imagem de capa) entre outros. Mas a pergunta que fica é: é desejável que um diretor seja um auteur? Qual é a vantagem do desenvolvimento de videogames por um auteur?


Arnt Jensen 

Críticas à teoria do auterismo

Desde que o auterismo foi proposto, foram discutidas as desvantagens e vantagens das produções dirigidas por um auteur. Aqui vou discutir três críticas comuns ao auterismo:
  1. O conceito é incompatível com produções de grande orçamento;
  2. Ao contrário da literatura, não é honesto atribuir a autoria de uma obra cinematográfica ou de videogame a uma única pessoa;
  3. O trabalho criativo coletivo tende a ser mais frutífero do que o de um único indivíduo.
A primeira dessas críticas, creio, é a mais fácil de contornar, pois não consiste necessariamente em um argumento para invalidar a possibilidade de atuação de auteurs. Ao contrário, chama a atenção para o fato de que o contexto atual da indústria cultural – pelo menos nas grandes produções – não é favorável à proliferação de auteurs. De fato, quando pensamos em grandes estúdios de videogame, como Xbox Game Studios, PlayStation Studios e Nintendo Entertainment Planning & Development, dificilmente podemos encontrar algum diretor que seja um bom candidato a auteur.





Pode-se lembrar que diretores como Kazunori Yamauchi (Gran Turismo) e Neil Druckman (Uncharted e The Last of Us) na Sony, assim como Eiji Aonuma (The Legend of Zelda) e Masahiro Sakurai (Kirby e Super Smash Bros.), na Nintendo, são nomes altamente respeitados e têm grande liderança nos projetos que coordenam. Isso é verdade, mas eles têm liberdade comparável a um escritor que pode escrever praticamente qualquer coisa que quiser em seu livro? Claramente não.

Quanto maior o investimento (especialmente o investimento dos acionistas), maiores os riscos na publicação de uma obra, e isso tem um efeito catastrófico no incentivo a autores em jogos AAA. Não é à toa que muitos diretores com um estilo mais único trabalham em produções menores, e muitas vezes fundam seus próprios estúdios, como Ragnar Tørnquist (The Longest Journey e outros) fundou a Red Thread Games para seus notáveis jogos de aventura.


Ragnar Tørnquist
Mas isso não significa que a existência de auteurs em jogos AAA seja completamente inviável. Claro que a comparação “ideal” com um escritor ainda pode ser apenas aproximada, mas dada sua fama com a série Metal Gear Solid, bem como seu estilo artístico que cativa o público em geral, Hideo Kojima consegue sustentar projetos AAA à sua própria maneira.

Outro bom exemplo é Hidetaka Miyazaki, que criou sua própria fórmula que, apesar de desafiadora, também engaja um grande público para comprar seus jogos. Fumito Ueda, por sua grande importância na indústria, também conseguiu um bom apoio financeiro da Epic Games, com liberdade criativa; e Yoko Taro é um raro exemplo de diretor com obras inquestionavelmente pessoais dentro de uma grande empresa, a Square Enix. Antes de Taro, também Yasumi Matsuno (Ogre, Final Fantasy Tactics e Vagrant Story) foi um bom exemplo de auteur na Square Enix, mas por motivos de saúde ele deixou a empresa em 2005 (Gamespot).


Yasumi Matsuno
Quanto à segunda crítica, parece ignorar o fato de que pode haver autores mais centrais para a realização de uma obra, são esses casos de controle mais centralizado que se tem em vista quando se pensa no segundo dos critérios para um auteur. Por fim, quanto à terceira crítica, refere-se às vantagens de uma criação coletiva e não centrada em uma direção criativa individual. De fato, mentes pensando juntas muitas vezes implicam em mais ideias para um jogo, e também uma percepção mais presente para antecipar possíveis problemas antes do seu lançamento.

No entanto, nem tudo são desvantagens. Uma direção criativa centralizada tende a garantir maior coerência e personalidade a uma obra, conferindo-lhe não apenas uma marca de auteur, mas também fazendo orbitar elementos de design de jogos em torno desse eixo. Nesse sentido, em seu livro The Works of Fumito Ueda (2019), Damien Mecheri compara The Last Guardian e Final Fantasy XV. Ambos tiveram um desenvolvimento de cerca de 10 anos.





The Last Guardian, de Ueda, tem uma consistência e personalidade incríveis, mesmo que você consiga ver algumas falhas, principalmente em sua jogabilidade. Por outro lado, Final Fantasy XV, mesmo tendo seus méritos, passou por vários diretores e roteiristas e acabou com uma narrativa fragmentada, com ritmo quebrado e com escolhas bem mais questionáveis ​​pela harmonia entre level design, enredo, cenário e sistema de batalha. Aqui não se trata de dizer necessariamente que a primeira obra é "melhor" que a segunda, mas que a primeira é mais fechada e coesa em seus elementos devido à forma como foi dirigida.

O auterismo não foi feito para descrever a indústria de videogames como um todo, e nunca servirá a esse propósito, mas cabe para caracterizar algumas produções (como algumas mencionadas neste texto), tanto AAA ou AA quanto jogos independentes com marcas notáveis ​​de seus criadores.
Há vantagens e desvantagens nas produções de auteur, mas, pessoalmente, costumo ser mais receptivo a obras de auteur. Mesmo que alguns desses trabalhos, como Drakengard, tenham execuções problemáticas em vários pontos, é fácil perceber que há algo único neles. Uma alma por trás de pixels e controles, uma alma que não pode ser fabricada na lógica industrial.
Revisão: Janderson Silva
Este texto foi originalmente publicado pelo mesmo autor na SUPERJUMP (inglês)
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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