Killing Harmony tira esse desafio de letra, tranquilamente passando por cima do péssimo port para o Switch — mais um, e de longe o pior entre as três versões de aniversário adaptadas para o console — e dignamente fechando (pelo menos até agora) a cronologia principal da franquia com chave de ouro, ainda que com algumas manchas de sangue rosa.
Na dúvida, vamos de amnésia mais uma vez
No manual de desenvolvimento de roteiros para um novo Danganronpa, guardado em um cofre nas profundezas do prédio principal da Spike Chunsoft, a regra básica mais importante provavelmente é “comece a trama com um protagonista acordando em um lugar ao qual não sabe como chegou”. Pelo menos em Killing Harmony o jogo não perde tempo e já estabelece o clima de suspense e mistério, sem uma introdução inocente.
A jovem Kaede Akamatsu desperta dentro de um armário, sem a menor ideia de como foi parar lá. Ao seu lado, está Shuichi Saihara, um rapaz igualmente confuso. Juntos, eles percebem que estão dentro de uma escola com aparência questionável. Após um demorado corre-corre pra lá e pra cá, chegamos ao costumeiro ponto de partida: 16 estudantes colegiais se veem nas garras do temido, mas carismático urso de pelúcia Monokuma, que os obriga a participar de um jogo de matança como única forma de escapar do confinamento forçado.
O palco da vez é a Ultimate Academy for Gifted Juveniles, uma escola para alunos que são os melhores em seus talentos. Com a ajuda dos Monokubs, um caótico grupo de ursinhos coloridos que pilotam mechas (afinal, por que não, né?) e que são facilmente a melhor novidade do game no quesito personagens, Monokuma pretende manter a “brincadeira” em curso até que restem apenas dois sobreviventes.
Cedendo meu tempo livre para o chato falar. Vai, chato, fala
A essa altura, a maioria de vocês já deve saber como funciona o esquema em Danganronpa. Para os que ainda estão por fora e nunca experimentaram um título da série, não tem segredo: é ler minhas análises de Trigger Happy Havoc e Goodbye Despair, jogar os joguinhos e depois voltar aqui.
A cartilha da Spike Chunsoft para a trocação franca entre esperança e desespero segue firme e forte, e agora estamos de volta ao claustrofóbico e desconcertante cenário escolar deserto e autossustentável, graças ao trabalho invisível do Monokuma e da mente criminosa por trás de tudo.
A Ultimate Academy difere de Hope’s Peak, apresentando regiões externas aos muros do prédio principal, o que tira um pouco da sensação de completo encarceramento. Ela não chega a ter as dimensões da Jabberwock Island de Goodbye Despair, mas há uma variedade muito boa de locais onde a trairagem, a matança e as reviravoltas rolam soltas.
No mais, a gincana é a mesma: passar tempo livre com os colegas até o momento em que alguém vai pro saco e investigar o que aconteceu até a hora do julgamento, onde os fatos e evidências são expostos para revelar a identidade do criminoso, que é sumariamente executado.
O sistema de relacionamentos é semelhante ao de Goodbye Despair: após socializar com alguém, você pode dar a essa pessoa um presente, obtido na máquina de gacha localizada na loja da escola. Se o objeto agradar, você conhece mais sobre a vida do escolhido ou da escolhida e recebe um Fragmento de Amizade, a moeda de compra de habilidades usadas nos julgamentos. Coletar todos os fragmentos de um colega nos dá uma habilidade específica da pessoa.
Me dói um pouco falar sobre os períodos de tempo livre, porque envolve a minha maior decepção com Killing Harmony: os personagens. Enquanto o elenco de THH se sai melhor como grupo e a turma de GD tem os seus destaques individuais, KH (não confundir com Kingdom Hearts) tem a maior concentração de xaropes e pés no saco por metro quadrado em toda a trilogia.
Foi incrivelmente difícil encontrar colegas que eu quisesse conhecer melhor, principalmente entre os homens. A quantidade de personagens irritantes, pessimamente estereotipados, com vocabulário repetitivo e um desenvolvimento pobre é frustrante e cansativa. Dá para fazer drinking games com praticamente metade dessa galera — talvez só assim mesmo para lidar com alguns dos tipos que temos que aturar.
Não que o elenco inteiro seja esse desastre — aliás, muito pelo contrário. Há personagens que desde o começo conseguiram me cativar, e outros que seguiram um caminho diferente, inicialmente ficando mais nos bastidores e ganhando protagonismo e camadas conforme a história foi se desenvolvendo. E, claro, eu já citei os Monokubs, que incorporam com perfeição um bizarro, mas cômico grupo de super sentais, das cores e personalidades variadas que incluem o vermelho como líder à pilotagem de mechas colossais.
Investigando à base do tapa
Uma hora ou outra, alguém será assassinado, e não adianta ficar igual ao John Travolta em Pulp Fiction. O jeito é partir para a boa e velha (e pragmática) investigação. Em um novo esforço para evitar um gameplay meticulosamente idêntico, temos os costumeiros recursos estreantes em meio a ideias reaproveitadas de títulos passados.
O sistema de evolução por níveis está de volta, mas agora ele não aumenta mais as barras de Influência e Foco, apenas a quantidade de Pontos de Habilidade, que usamos para equipar as já citadas habilidades. A experiência permanece sendo adquirida por meio de caminhadas, interações com objetos e pessoas e da obtenção de evidências para os julgamentos.
As estatuetas escondidas do Monokuma também foram mantidas, porém sem a recompensa em moedas, apenas em experiência. Ainda assim, continua sendo uma boa diversão paralela procurá-las pela Ultimate Academy, e os modelos 3D do Monokuma com diferentes acessórios ficaram bem legais.
O método extra de tirar uns trocados em monocoins, à parte do desempenho nos julgamentos, é a inédita mecânica de socar objetos, que saem voando do cenário e te deixam moedas. Não é tão divertido quanto achar os Monokumas ocultos, mas é inusitadamente terapêutico sair metralhando mesas, cadeiras e tudo mais que puder ser derrubado na porrada. Só achei um pouco complicado distinguir o que pode ser atingido em algumas salas, principalmente no modo portátil.
Fiel à fórmula, Killing Harmony não arrisca muito no território das investigações, se atendo à tradicional procura linear por pistas e depoimentos. Confesso que já me acostumei a esse “não fede nem cheira” que antecede os julgamentos, e não deixa de ser divertido ir estudando o material coletado e imaginando o que essa turminha do barulho vai aprontar nesses julgamentos de arrepiar.
Não precisei fazer juramento, então tá liberado bancar o Pinóquio
Para a surpresa de ninguém, os julgamentos de classe são os momentos que fazem o turismo pela Ultimate Academy valer a pena. Nada em Danganronpa supera botar a cachola para funcionar e ir desemaranhando os nós de cada caso em meio a discussões acaloradas e minigames de qualidade duvidosa, e Killing Harmony não foge à regra.
O gameplay segue o roteiro consagrado da série: os estudantes conversam entre si para saber exatamente o que aconteceu e liquidar o responsável pela existência de um cadáver nos terrenos da escola, já que a alternativa é todos os inocentes se ferrarem. Entre um surto e outro, vêm os minigames de diversos subgêneros, que revelam elementos cruciais para a progressão.
Os Nonstop Debates, que já haviam recebido em Goodbye Despair o incremento da ação de concordar com argumentos específicos, destacados em azul ao invés do laranja das mentiras e contradições, trazem em KH mais uma nova mecânica: a possibilidade de mentir.
Em certos pontos durante cada julgamento, você não conseguirá convencer o grupo a seguir o seu raciocínio. Nessas horas, será preciso cometer perjúrio, transformando uma Truth Bullet (Bala da Verdade) em uma Lie Bullet (Bala da Mentira), que faz com que passemos informações falsas para corrigir o curso da discussão em direção à verdade que sabemos que nos espera.
É por esse tipo de criatividade que eu aplaudo a Spike Chunsoft, pois assim como a ideia de reforçar argumentos ao invés de ir contra eles, permitir que você minta em pleno tribunal para salvar a pele da turma revela uma camada moral muito interessante e cria mais um novo desafio de raciocínio, diversificando uma parte do gameplay de Danganronpa que já era muito bem elaborada desde o primeiro jogo. O único defeito desse recurso é que ele não é utilizado tão frequentemente quanto eu gostaria.
Outro elemento argumentativo que faz sua estreia é o Mass Panic Debate (Debate de Pânico em Massa). Ele funciona de maneira semelhante aos Nonstop Debates, mas ao invés de uma única conversa ininterrupta, temos três discussões acontecendo simultaneamente, cada uma inflamada por um personagem diferente. Eventualmente, um dos exaltados pode começar a gritar mais alto que os outros, exigindo que você atire repetidamente com o silenciador na frase em questão.
Não é nem um pouco fácil continuar inovando uma fórmula sem perder a essência do que funcionou tão bem até agora, mas no que diz respeito aos julgamentos de classe, pelo terceiro título seguido o pacote de casos é maravilhosamente intrincado e único. Ele segue uma curva de dificuldade que respeita o jogador e deixa bem claro desde o começo que a essa altura já devemos estar acostumados à dança das cadeiras que o Monokuma nos obriga a dançar.
Não sou a Angélica, mas vou de táxi
Seguindo adiante com o manual Danganronpa, o próximo passo é introduzir novos minigames e trazer de volta alguns dos já existentes, mas com alterações.
Os velhos conhecidos são: Hangman’s Gambit, o jogo de forca; Rebuttal Showdown, o duelo de espadas em que temos que cortar os argumentos do adversário e finalizar com a Truth Blade (Lâmina da Verdade) correta, assim como nos Nonstop Debates; e o Closing Argument, a história em quadrinhos incompleta que devemos preencher para encerrar os casos.
Eu simplesmente não consigo gostar do Hangman’s Gambit, mas pelo menos em Killing Harmony ele finalmente chegou a um ponto em que não basta apenas saber soletrar palavras em inglês, havendo de fato algum resquício de dificuldade, o famoso “parabéns, não fez mais do que a obrigação”.
Alguns dos novos minigames entram como substitutos de joguinhos anteriores. É o caso do Psyche Taxi, que substitui o Logic Dive de Goodbye Despair; e do Argument Armament, a terceira versão do confronto de ritmo que surge quando alguém quer refutar veementemente o argumento que o jogador está apresentando.
O Psyche Taxi nos coloca no controle de um veículo que segue por uma pista em linha reta para coletar caixas que formam as palavras de questões que precisamos responder. Após a pergunta ser formada, surgem opções em forma de passageiras, e para escolher a correta basta permanecer na faixa que contém a caroneira correspondente.
Particularmente, achei o Logic Dive um pouquinho mais divertido pelos seus trechos de platforming, mas no fim das contas nenhum dos dois minigames brilha muito. Ambos são apenas jeitos diferentes de incluir um desafio de chegar a uma conclusão lógica específica por meio de uma sequência de perguntas.
Por sua vez, o Argument Armament deu uma melhorada significativa em comparação com o Bullet Time Battle de Trigger Happy Havoc e o Panic Talk Action de Goodbye Despair. Ele é bem semelhante a títulos do gênero, como Elite Beat Agents e osu!, em que precisamos ficar atentos ao ritmo das músicas em combinação com a barrinha de carregamento de cada botão para saber o tempo certo de pressioná-los.
E a energia aqui nesses debates, ó, lá em cima
A rigor, os únicos minigames genuinamente únicos em Killing Harmony são a Mind Mine (Mina Mental) e o Debate Scrum. O primeiro é um puzzle de quebrar agrupamentos de blocos de diferentes cores para revelar a imagem correta para a pergunta que está sendo feita. Mais um minigame facilmente esquecido no churrasco.
Já com os Debate Scrums, a coisa muda completamente de figura. Posso dizer sem um pingo de dúvida que os momentos individuais de maior empolgação durante toda a minha jogatina foram durante as ocorrências desse formato de discussão que acontece durante os julgamentos.
No Debate Scrum, que ocorre quando os estudantes estão divididos entre duas opiniões, cada lado forma uma equipe para apoiar a resposta que acreditam corresponder à verdade. Para provar o ponto do seu time, o jogador precisa identificar, nos argumentos dos adversários, os termos-chave que também apareçam nas respostas dos seus parceiros ou nas suas próprias. Isso faz com que cada ponto de vista rival seja refutado e o seu grupo consiga dar prosseguimento ao caso sob a ótica vitoriosa.
Esse pode até não ser um minigame muito difícil ou super elaborado, mas toda a atmosfera criada em torno dessas ocasiões, com uma música e uma cutscene de montagem do palco que botam a animação lá em cima, é o suficiente para me fazer ansiar pelo momento em que o Monokuma gira a chave e os pódios dos participantes começam a subir (aliás, que musiquinha chiclete essa dos Debate Scrums, hein? Deixei em loop por um bom tempo enquanto escrevia a análise).
Desapega, gente. Uma hora ia ter que acabar
A história de Killing Harmony se mantém interessante e coesa na maior parte do tempo, mas sofre demais com problemas de ritmo. Do começo ao fim da campanha, temos investigações demoradas; julgamentos exageradamente prolongados; subtramas desnecessárias; diálogos pré e pós-execuções que poderiam terminar muito antes, mas teimam em se estender… Praticamente todos os elementos narrativos do jogo são afetados por esse inchaço no tamanho.
Essa questão é evidenciada durante o prólogo, literalmente nos primórdios da campanha, inclusive com uma brincadeira metalinguística feita pelos próprios personagens. Não adianta muito já começar a trama dentro do ambiente do jogo de matança se até para ela pegar de vez no tranco o enredo vai se arrastando. Eu fiquei com a péssima impressão de que algumas boas horas de jogatina poderiam ter sido cortadas, deixando a progressão muito menos exaustiva.
O gameplay prático também é responsável por essa sensação de maior duração. Da trilogia principal, KH é o que tem mais períodos de tempo livre, que naturalmente são um indicativo de uma história mais longa. É claro que você pode pular esses períodos, mas isso significaria abrir mão dos bônus dos Fragmentos e da compra das habilidades, o que acaba sendo contraprodutivo.
Fechando a trinca de péssimos ports para o Switch (não vou nem me estender sobre a ausência dos controles de toque, porque já seria chover no molhado), KH supera qualquer falha existente nas versões de THH e Goodbye Despair. A performance do jogo é sofrível em diversos momentos, com quedas de frame sobretudo durante as transições de um local para o outro e durante as seleções de evidência nos julgamentos, quando deixamos o cursor sobre uma evidência cujo texto de explicação é muito extenso.
Por falar nos julgamentos, se você conseguir chegar ao final da campanha sem desenvolver ao menos um torcicolo leve, meus parabéns, porque ninguém merece fazer tanto contorcionismo para ler algumas das falas dos personagens. Eu entendo que a intenção era dificultar um pouco mais o elemento FPS dos Nonstop Debates, mas a diagramação maluca de certas frases foi mais uma irritação do que uma dificuldade divertida de superar.
Os erros que forçam o fechamento do jogo estão de volta, só que bem mais numerosos, e todos quando eu estava prestes a começar um minigame. Por sorte, nenhum deles tornou a acontecer, o que criaria uma trava intransponível na minha progressão, mas novamente, se não fosse pela funcionalidade do salvamento automático, eu teria perdido progresso várias vezes.
Excelente trabalho, esperança e desespero. Já podem descansar
Danganronpa V3: Killing Harmony é a prova cabal da consistência que a Spike Chunsoft demonstrou ao longo de toda a trilogia principal da franquia. O salto de qualidade em relação a Goodbye Despair não é tão grande quando o que ocorreu entre as duas primeiras entradas — inclusive, acabei achando GD o melhor dos três —, mas ainda é uma conclusão que mantém a identidade Danganronpa ao mesmo tempo que tem uma cara própria.
Os corriqueiros problemas de port para o Switch e os entraves de ritmo narrativo não comprometem a qualidade o suficiente para que este capítulo derradeiro destoe dos que o precederam. Uma forte metalinguagem, com constantes referências e quebras da quarta parede, marcam o humor de um Danganronpa que talvez tenha ousado até demais, mas que indiscutivelmente se saiu bem na missão de encerrar as palhaçadas do Monokuma — resta saber se para sempre.
Prós:
- Mais um Danganronpa que mantém a consistência da série principal ao mesmo tempo que acerta tanto em novas ideias quando na reciclagem de conceitos já existentes;
- Os Monokubs são facilmente os melhores personagens do jogo, ficando entre os mais divertidos de toda a trilogia;
- A mecânica de mentir durante os Nonstop Debates e o Mass Panic Debate são duas excelentes adições à etapa principal dos julgamentos de classe;
- O recurso de socar objetos para obter monocoins é inusitadamente terapêutico;
- Os Debate Scrums trazem um clima fenomenal de empolgação.
Contras:
- Muitos personagens irritantes, pessimamente estereotipados, com vocabulário repetitivo e um desenvolvimento pobre;
- Sofre demais com problemas de ritmo e enredo arrastado;
- Problemas de performance, principalmente quedas de frame durante transições entre locais e ao selecionar evidências com muito texto;
- A diagramação de algumas falas durante os Nonstop Debates é irritantemente confusa;
- A recorrente ausência dos controles de toque;
- Os erros que forçam o fechamento do jogo voltaram, e em maior número.
Danganronpa V3: Killing Harmony Anniversary Edition - Switch - Nota: 8.5
Revisão: Cristiane Amarante
Análise produzida com cópia digital cedida pela Spike Chunsoft