Desenvolvido pela ADELTA e publicado pela Dramatic Create, Hashihime of the Old Book Town Append é uma Visual Novel indie de mistério e BL (“Boys’ Love”, romance entre garotos). Com um estilo cinético, apenas com interações pontuais para divergência de rotas, o jogo se passa na Era Taishou, período do reinado do Imperador Taishou entre 1912 e 1926 — mais especificamente em Tóquio, em junho de 1922.
Apesar de ser uma história de BL, trata-se de um porte com cenas censuradas, diferente da versão para PC, Hashihime of the Old Book Town, publicada pela MangaGamer. Para os menos familiarizados, uma Visual Novel é um tipo de ficção interativa muito popular no Japão, originando-se por lá na primeira metade dos anos 1980 em um formato que buscava mesclar dois subgêneros de Adventure: o Text-Adventure e o Graphic Adventure.
No primeiro caso, temos um jogo com pouco ou nenhum gráfico e que se resume à interatividade textual, combinando leitura com mecânicas como as de escolha de palavras ou de digitação de comandos por frases. No segundo, há um design de narrativa com foco menor na experiência textual e maior nos gráficos e em mecânicas simples, geralmente de puzzle, walking simulator ou point-and-click.
De modo geral, uma Visual Novel tenta trazer uma experiência híbrida entre esses dois, mas algumas estão mais próximas do Text-Adventure, por terem mecânicas muito limitadas para interação. Esse é o caso de Hashihime of the Old Book Town, que é basicamente uma “VN cinética”, ou seja, uma VN em que o jogador precisa apenas passar caixas de texto, ou deixar a rolagem de linhas no automático. Há escolhas de ações apenas após terminar a primeira rota e tão somente uma para cada rota.
A história em questão explora o lado criativo de um escritor em uma jornada psicodélica de investigação de assassinatos em viagens de loop temporal perpassadas por alguns casos de romance que envolvem a lenda japonesa de Hashihime. Contextualmente, a trama também aborda tópicos de história e literatura japonesas, além de problematizar o senso de realidade, o autoconhecimento e a perspectiva de futuro.
Analisar uma Visual Novel não é uma tarefa fácil para um crítico de videogames, pois envolve também uma boa dose de crítica literária, em se tratando de um gênero de fronteira entre videogames e literatura. Em vez de dedicar um momento específico para as mecânicas simples dessa VN, vou percorrer três tópicos mais gerais, os quais abordam o design narrativo, a estética audiovisual e o contexto da trama, sempre evitando spoilers.
Um psicodélico e cíclico mistério de assassinatos
A narrativa de Hashihime of the Old Book Town tem como fio condutor Tamamori, um jovem aspirante a escritor que se mudou para Tóquio com seus amigos de infância, Minakami e Kawase, para ingressar na Universidade imperial. Infelizmente, ele não passa na prova de admissão, e continua estudando nos próximos dois anos para tentar novamente.
Acontece que Tamamori não vive de uma forma exatamente “normal”: ele vê e interage com alucinações, frequentemente entidades míticas japonesas, como youkais, cenários oníricos e personagens em geral de seus próprios escritos fantásticos. Isso o levou a ser expulso de sua pensão.
Por sorte, em um dia chuvoso, um misterioso dono da Umebachidou, uma livraria de livros usados, fica com pena dele e lhe oferece um trabalho e um lugar onde pernoitar, cuidando também de suas despesas diárias. Estranhamente, o homem não gosta de revelar sua aparência ou identidade, mas Tamamori segue sua vida satisfeito, imerso em fantasia por suas leituras e principalmente pelas histórias bizarras que escreve e compartilha com seus amigos.
Certa noite, Minakami o convida para ver um filme, mas quando Tamamori chega ao cinema, seu amigo não está lá. Na manhã seguinte, o protagonista descobre que ele morreu. Embora oficialmente o incidente tenha sido considerado um suicídio, Tamamori está convencido de que foi um assassinato. Enquanto procura uma resposta para o caso, ele nota que um misterioso homem mascarado vive no sótão da livraria onde trabalha, suspeitando que possa ser o responsável pelo crime.
Logo Tamamori percebe que outros também correm risco de morte, inclusive ele próprio. Felizmente, o jovem escritor descobre que possui o poder de viajar no tempo, mais especificamente de repetir ciclicamente os três dias chuvosos em que se passa a história. A partir de então, o jogador entra em uma aventura bizarra para tentar impedir as mortes que presencia e desvendar os mistérios por trás da natureza do poder de Tamamori e do verdadeiro estado da sua realidade em relação à parte de fantasia que ele criou para si.
A parte BL de Hashihime perpassa a trama em possíveis romances de Tamamori com os amigos mencionados e mais outros personagens, cada qual em uma de cinco rotas, e também está relacionada aos fenômenos paranormais que ocorrem com o protagonista.
Contudo, os momentos de afeto ocupam pouco espaço no enredo, até porque Tamamori pensa, por um bom tempo, ser bastante autossuficiente e satisfeito com sua rotina. Esse aspecto do personagem está relacionado na trama à circularidade temporal e a ideia de imaturidade contidas no clássico símbolo mitológico do Ouroboros.
As poucas cenas sexuais — que foram censuradas nesta versão de Switch — praticamente não fazem falta para a compreensão da história e seu propósito; contudo, saber ao menos da existência desses momentos sexuais em certos pontos faz alguns acontecimentos terem mais sentido.
Em contrapartida, não subestime o tom sentimental de Hashihime of the Old Book Town. Ele não é exatamente do tipo “fofo” (talvez o que mais se aproxime disso seja a quarta rota), e não está sempre presente, mas nos momentos certos é profundo e comovente como poucos, principalmente nas duas primeiras rotas, e algumas vezes também consegue ser leve e descontraído.
A imersão audiovisual na era Taishou
Um dos fatores atrativos de Hashihime of the Old Book Town é a sua direção de arte. O design dos personagens criados pela ADELTA é ao mesmo tempo sério e carismático. Seus traços são elegantes e delicados, mas a aparência deles é mais realista, com, por exemplo, corpos brancos e esguios, cabelos em cortes mais comuns e olhos levemente puxados e escuros, como se esperaria de um japonês médio. No caso dos personagens com olhos azuis, há uma razão específica para isso no enredo.
A escolha de arte é muito acertada, pois a delicadeza e a elegância dos traços resultam em grande beleza em cenas extraordinárias, psicodélicas, coloridas e vivas; por outro lado, o realismo da aparência dos personagens aumenta a imersão de época no Japão em cenas ordinárias em um palco histórico tanto citadino quanto rural, e combina também com o tom da dublagem em japonês, quase sempre meditativo ou dramático, com destaque para algumas ótimas atuações, como de Tamamori (protagonista) e Hikawa (The Professor).
O figurino e os cenários remetem com sensibilidade ao cotidiano urbano de classe média da Era Taishou. Há, por exemplo, o emprego de trajes militares japoneses antigos, óculos arredondados, guarda-chuvas em estilo oriental e uma coexistência de roupas formais em estilo ocidental e em estilo tradicional japonês.
A coerência de design dos personagens com a contextualização proposta, além de fatores estritamente textuais, como o fato dos personagens serem bem-motivados e persuasivos e não haver um lado definitivo de “bem” e “mal”, contribuem para a VN ser imersiva e para os acontecimentos na trama soarem mais verossímeis, mesmo em momentos absurdos de psicodelia. Caso se interesse por esse assunto em design de narrativas, abordei-o com mais detalhes na SUPERJUMP (em inglês).
"Minamimoto disse-me que todas as coisas têm dois lados. Um lado direito e um lado esquerdo. O bem e o Mal. Contudo, o dono da livraria e eu caímos na mesma categoria."
Seguindo a tendência realista do figurino, os ambientes são ilustrados com um tom mais sério de sombreamento e textura. A cenografia segue a arquitetura e o urbanismo da época, o que pode ser observado em veículos públicos, restaurantes, moradias, templos, no design de interior de cafés da década de 1920 e mesmo em referências literais a locais da região, como o famoso Cinema de Touyou, aberto em 1921 (um ano antes do início da história), que sobreviveu aos ataques aéreos da Segunda Guerra, mas foi demolido em 1992.
Acompanham esses cenários uma trilha sonora acústica, principalmente com cordas e instrumentos de teclas, como piano e cravo, e umas poucas vezes, sopro; melodias suaves; momentos de harmonia altamente dissonante para cenas mais dramáticas ou de mistério; ritmos de jazz (principalmente para os cafés); e um tema principal mais alegre, tonal e bem marcado, que lembra músicas de fundo em outros Adventures de época, como os da série Professor Layton, da Level-5.
As canções no começo e fim também são boas. A peça de abertura tem um tom pop, mas também captura um pouco dessas tendências das músicas de fundo, enquanto que a de encerramento segue um estilo mais típico de pop japonês.
A falta de variedade de composição talvez seja em parte fruto do baixo orçamento da obra, mas as escolhas foram bem justificadas e executadas. As peças são relaxantes, muito bem-feitas em suas propostas harmônicas e sempre funcionais com o contexto enquanto músicas de fundo, mesmo que possam se tornar um pouco repetitivas ou monótonas depois de um tempo.
As limitações de orçamento também são sentidas na simplicidade do menu, da interface e na economia de efeitos sonoros para rangidos, estalos, sons de objetos quebrando etc., quase sempre inexistentes, bem como na ausência de animação e na falta de maior integração da ilustração dos personagens nos cenários.
Temporalidade, realidade e imaginação
O mundo ficcional de Hashihime of the Old Book Town possui grande apelo em duas premissas contextuais: a primeira é histórica, de ambientação no período Taishou, como já mencionado; a segunda é temporal, de um tipo específico de aplicação do conceito de viagem no tempo. A ambientação histórica não é apenas visual, mas também literária, o que é justificado pelo fato do protagonista, Tamamori, ser um escritor.
Contextualizada em um Japão recém-aberto à cultura ocidental, a VN menciona dezenas de livros clássicos japoneses de então, muitos dos quais são versões plagiadas de notáveis obras ocidentais, como The World Eight Hundred Thousand Years Later, adaptação de Ruikou Kuroiwa de The Time Machine, de H.G. Wells. Os diálogos não só referenciam os livros, mas indicam referências ficcionais internas, como a rua Baker Town Irregulars Regiment, uma versão japonesa de Shunrou Oshikawa para a clássica Baker Street da série Sherlock Holmes.
O texto acaba sendo uma boa oportunidade para conhecer bastante da cultura japonesa, tanto por livros que são versões ocidentais quanto por ficções originais japonesas, além de parte do contexto militar da época e da religiosidade.
Há vocábulos específicos do budismo, como Asura, Deva e um Nome de Dharma, e todos os principais termos diferentes (geralmente mantidos em japonês) podem ser encontrados em um mapa e em um dicionário dentro do jogo. As palavras vão surgindo no dicionário à medida que aparecem nos trechos, e podem ser consultados a qualquer momento pelo menu, tanto pela tradução para o inglês quanto pelos comentários históricos.
Apesar do enfoque literário, a principal referência cultural é a da lenda da “donzela da ponte”, Hashihime (橋 姫), uma figura do folclore japonês representada como uma mulher que passa noites solitárias esperando a visita de seu amante, e mais tarde como um feroz “Oni” ou demônio alimentado pelo ciúme. Essa figura passou a ser associada a uma ponte em Uji, mas a VN da ADELTA dá uma interpretação mais particular à sua conexão com os romances, uma ponte na cidade e mesmo viagens no tempo.
Infelizmente, não dá para dizer muito do conceito de viagem no tempo sem dar spoilers. Apenas duas premissas podem ser comentadas aqui, mas sem entrar em detalhes. Primeiramente, Temos uma viagem no tempo com circularidade. Apenas na ramificação das rotas é aplicada uma lógica de ramificação de linhas do tempo, mas no geral lidamos com um esquema de retorno no tempo, em loop, a um mesmo ponto — nesse caso, um loop de três dias.
A circularidade também implica na possibilidade de se encontrar consigo mesmo no passado e gerar fenômenos como o Paradoxo de Bootstrap, que é basicamente quando uma coisa, para ter existido, precisa já ter sido feita no futuro. Quem já tiver assistido à série alemã Dark, dirigida por Baran bo Odar, saberá de vários exemplos, mas o mais clássico é o de alguém voltar no tempo com um livro que ensina como fazer uma máquina do tempo, dando-o a quem a criou. Assim, o criador da máquina do tempo a cria porque tem o livro, mas só tem o livro porque “já a criou” no futuro.
Em segundo lugar, vale comentar que esse conceito temporal não funciona de forma independente em Hashihime of the Old Book Town, mas sim de forma combinada com os efeitos de uma maldição relacionada à lenda de Hashihime e de uma mistura entre realidade e fantasia/alucinação. Os próprios personagens na trama buscam respostas para esses temas, refletindo sobre teorias como de viagem no tempo e da influência de sonhos de pré-infância.
O jogador definitivamente terá problemas para diferenciar o que é real e o que é alucinação, tanto quanto o protagonista da história, mas isso faz parte da proposta. A imbricação entre o contexto mítico e psicodélico com a viagem no tempo acaba engenhosamente acobertando muitos momentos de aparente inconsistência e/ou arbitrariedade de alguns fenômenos temporais, principalmente após o fim da primeira rota.
Não convém antecipar os resultados dessa complexa aplicação de psicodelia de viagem no tempo, mas posso dizer que ela foi bem-executada para o fim para o qual foi concebida, que, para além da solução do caso dos assassinatos, é o de propiciar uma reflexão única sobre o que é realidade ou não, sobre o autoconhecimento em interações pessoais e sobre como planejamos um futuro para nós mesmos com base nessas duas coisas.
Cada uma das rotas, ordenadamente dispostas ao leitor, trabalha de forma diferente esse conceito, às vezes com adições, como umas pitadas de ficção científica na quarta rota.
A primeira é a mais comovente e engenhosa, até pela forma com que surpreende e apresenta ao leitor as bases desse mundo ficcional junto a um ótimo romance, e as demais não deixam a desejar. A última, porém, é um tanto controversa; a forma como ela resolve a trama, de um modo lateral, pode pegar o jogador de surpresa — não necessariamente de forma positiva —, mas não deixa de ser coerente com a proposta da VN.
Uma brilhante e comovente investigação sobre o elo entre a realidade e a fantasia
Hashihime of the Old Book Town Append é uma VN complexa, imersiva, ousada e criativa que tece uma trama única, comovente e repleta de reviravoltas imprevisíveis à luz de uma arte estilosa de traços tanto sérios quanto vivos e psicodélicos, mas que não está isenta de problemas.
Para além das limitações de orçamento, sentidas um pouco na parte audiovisual, as últimas rotas não parecem conservar a mesma energia da primeira. Além disso, em alguns momentos o equilíbrio entre realidade e fantasia parece se perder em demasia em favor do fantástico e da arbitrariedade, e a última rota, ainda que tenha um lado interessante e radical, é particularmente problemática e controversa.
Certamente trata-se de uma das melhores (ou a melhor) VNs BL já feitas, ao menos em design narrativo, sendo altamente recomendada ao público geral de boas histórias sobre senso de realidade, mistério e romance, mas o jogador precisa estar ciente de estar imergindo em uma obra praticamente cinética. Além disso, a fórmula do enredo requer uma boa dose de suspensão de descrença para mergulhar nessa trágica, imprevisível e comovente teia de sonhos em que se meteu o jovem escritor da livraria de Jinbochou.
Prós
- Direção de arte estilosa, bela e coerente tanto com o contexto histórico quanto com os momentos psicodélicos;
- Trilha sonora relaxante, bem-feita e bem funcional;
- Premissas de enredo criativas e bem-inspiradas para pensar sobre temporalidade, realidade e imaginação;
- Boa contextualização histórica com referências espaciais, literárias e outras;
- Rotas projetadas com personagens bem-desenvolvidos e complementares para explorar por diferentes perspectivas a proposta do mundo ficcional;
- Trama bem-escrita, reflexiva, comovente e imprevisível.
Contras
- Um pouco simples demais em gráficos, interface e design de som;
- Pouca criatividade na aplicação do sistema de ramificação de rotas;
- A trama possui alguns saltos e deslizes na aplicação de viagem no tempo que só podem ser explicados com interpretações mais forçadas;
- Ainda que bem-escrita como um todo, a história não se mantém tão engenhosa no decorrer das demais rotas;
- A última rota pode ser interpretada como um fechamento um tanto arbitrário e problemático para a obra.
Hashihime of the Old Book Town Append — PC/Switch — Nota: 9.0Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Dramatic Create