Análise: Dungeon Encounters (Switch) é um Dungeon Crawler único, engenhoso e minimalista

O título não se destaca por gráficos ou história, mas suas mecânicas e seu level design entregam uma experiência minimalista, criativa e desafiadora.

em 05/11/2021



Desenvolvido e publicado pela Square Enix, Dungeon Encounters é um RPG do subgênero dungeon crawler com uma proposta única e rica em gameplay e uma estética audiovisual minimalista, proporcionando uma exploração em dungeon com visão aérea, elementos de jogo de tabuleiro e inovadoras mecânicas de sistema de batalha e gerenciamento de grupo.


Para conceber e executar essa proposta, a obra não contou com um grande orçamento, mas com grande talento. O projeto foi desenvolvido com alguns dos nomes mais notáveis da Square Enix e da série Final Fantasy. Temos músicas de Nobuo Uematsu, principal compositor da franquia; desenhos de Ryoma Ito, de FF IX, XII, Tactics Advance e outros; e direção de Hiroyuki Ito, que dirigiu alguns dos melhores títulos da cronologia principal (FF VI, IX e XII).

Além de suas direções, vale ressaltar que Hiroyuki Ito é conhecido como uma das mentes mais brilhantes por trás da ciência dos sistemas das batalhas em RPGs. Entre suas principais contribuições para o gênero, estão sofisticados e influentes sistemas e subsistemas de combate criados e desenvolvidos por ele, como o ATB (Active Time Battle) para os FFs IV-IX e outros inspirados; o Job System para os FFs III, V,  Tactics e outros inspirados; o Junction System, de FF VIII; e também o ADB (Active Dimension Battle) de FF XII, o qual pode ser considerado como um sistema de Quasi-Action RPG.

Levando em conta o baixo orçamento e os trabalhos prévios desse “Dream Team”, era esperado um design geral minimalista, uma arte mais cartunesca, personagens sérios com traços infantis, cores vivas, peças que misturam tendências do rock e da música erudita, e, por fim, um level design e mecânicas diferenciados que entregassem uma experiência mais dinâmica e estratégica em turnos, provavelmente reinterpretando o clássico ATB.

De modo geral, o resultado é muito satisfatório em todos esses sentidos, exceto talvez pela subutilização do potencial artístico de Ryoma Ito, alguns problemas na execução do minimalismo e, aqui e ali, algumas limitações no gameplay.



O minimalismo narrativo e audiovisual de Dungeon Encounters

Diferentemente dos RPGs de mundo aberto, que, inspirados na clássica série Ultima, costumam focar em exploração e batalhas épicas de proporções globais, envolvendo diferentes ambientes a céu aberto e cidades, além de veículos para viagens longas, travessias de rios e passeios aéreos, os RPGs de dungeon crawler, inspirados na série Wizardry, geralmente enfatizam a exploração e o combate em calabouços. Aliás, não são raras as vezes em que o gameplay se resume a isso, e esse também é o caso de Dungeon Encounters.

Há duas premissas principais no level design do game: construir uma dungeon complexa e labiríntica com uma centena de andares em uma perspectiva de tabuleiro; e integrar a exploração espacial com gerenciamento de grupo e combates estratégicos de alto fator replay. A intenção era executar essas ideias de uma forma minimalista, mas algumas vezes a simplicidade acabou se confundindo com repetitividade e falta de polimento.

Os cenários de exploração são literalmente tabuleiros sem quaisquer adornos com uma simplória estampa de fundo com cores e alguns poucos efeitos visuais que tentam passar a impressão de ambientações distintas, como de florestas, deserto, área de gelo, etc., a depender do andar.




Em todos esses casos, os caminhos estreitos do tabuleiro são compostos por quadrados que vão sendo coloridos à medida que o jogador passa por cima deles, “mapeando” a dungeon. Em algumas células haverá inimigos, outras vezes, pontos para lojas de equipamentos, altares para ressuscitar unidades, fontes de cura, locais onde o jogador conseguirá novas habilidades, e mais.

Todas essas localizações são apenas representadas abstratamente por números e letras, não havendo quaisquer modelos 3D além do personagem que o jogador escolher para representar seu grupo no tabuleiro. Além disso, os campos de batalha são compostos apenas por uma pintura de paisagem, que representa o bioma do andar, e quadrados com desenhos estáticos e simples dos personagens do grupo e dos inimigos, localizados em lados opostos da tela.




Conforme afirmado pelos próprios autores em uma entrevista oficial de Square Enix, um dos conceitos principais de desenvolvimento é que o jogo fosse direto e simples de aprender. Porém, apesar de a proposta ser intencionalmente minimalista, e a representação abstrata ser coerente com a inspiração em tabuleiro, as escolhas tomadas chegaram a um ponto problemático de simplicidade. Os cenários são muito pobres e sugerem muito vagamente as características do bioma, prejudicando a imersão.

Além disso, a escolha por pontos do mapa exclusivamente representados por números e letras dificulta na identificação e memorização desses pontos. Por fim, a extrema simplicidade dos visuais nos combates os torna esteticamente pouco atraentes e não valoriza a elegante e carismática arte de Ryoma Ito.

A escolha minimalista de design é levada ao extremo no roteiro. A história é tão simples quanto possível: basicamente , trata-se do surgimento de um labirinto de outro mundo que apareceu subitamente nos arredores de uma cidade tranquila, supostamente representada no primeiro andar da dungeon, onde estão localizadas lojas, uma academia de personagens escaláveis para o grupo e outros pontos. No futuro, progressivamente haverá pontos de teletransporte que servirão de atalho para diferentes andares do calabouço.




Apesar da total falta de profundidade no enredo ou no desenvolvimento dos personagens, a escolha de design narrativo não prejudica decisivamente a experiência, já que ela está claramente voltada ao gameplay. Por outro lado, uma maior dedicação nesse aspecto ajudaria a engajar os jogadores no mapeamento dos andares, já que são muitos e às vezes o gameplay é um tanto frustrante e repetitivo.

Onde, porém, o minimalismo deu mais certo parece ser na trilha sonora. Ainda que conte com poucas faixas, e nenhuma originalidade na composição em si, a OST de Nobuo Uematsu trouxe arranjos excelentes de músicas eruditas, quase sempre executadas de forma concisa apenas com duas guitarras.

Entre essas peças, há um relaxante arranjo do segundo movimento da sonata Patética de Beethoven para o primeiro andar da dungeon, além de peças velozes e intensas para combate: arranjos para o Estudo Revolucionário de Chopin; para o primeiro movimento da 9ª Sinfonia de Dvořák; para o interlúdio operístico O Voo do Besouro, de Rimsky-Korsakov; para a Cavalgada das Valquírias (peça do início do Ato III da ópera A Valquíria), de Richard Wagner, e muito mais. Todas essas peças funcionam muito bem nesses arranjos simples para os combates, e algumas delas inclusive combinam com o bioma dos andares.


Inovações e estratégias em combate e exploração

No clássico livro Homo Ludens (1938), de Johan Huizinga, é dito que a função de um jogo pode ser definida em dois aspectos fundamentais: “uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa.” Claramente o foco de Dungeon Encounters está no primeiro aspecto — de lutar por algo —, e os esforços de game design na obra foram quase exclusivamente dedicados a ele.

Para chegar ao final da dungeon, que é o objetivo principal do jogo, é preciso uma boa dose de paciência e estratégia para aprender, treinar e dominar os mecanismos únicos de Dungeon Encounters, sendo algo bastante diferente de qualquer outro dungeon crawler.

Em primeiro lugar, porque RPGs desse subgênero tradicionalmente usam visão em primeira pessoa para maior imersão atmosférica nas dungeons, embora cada vez tenham se tornado mais frequentes dungeon crawlers em terceira pessoa, como em alguns da série Shin Megami Tensei. Dungeon Encounters não faz nem uma coisa nem outra, optando por uma perspectiva aérea e sem paredes nos caminhos do labirinto.


Essa ideia imediatamente impõe um problema: como dar a sensação de estar perdido em um labirinto se é possível ver seus caminhos de modo aéreo? A solução encontrada foi a de utilizar uma câmera fixa aérea, que pode ser expandida posteriormente por meio de uma habilidade que aumenta o campo de visão. Em todo caso, como os labirintos tendem a ser grandes, essa estratégia acaba funcionando bem. Além disso, há segredos e puzzles para chegar a locais escondidos nos andares.

Saltam aos olhos as inovações mecânicas aproveitadas no level design, sendo provavelmente o maior trunfo de Dungeon Encounters. Há opção de acelerar a movimentação dos personagens, facilitando passar por áreas já exploradas, e há várias habilidades adquiridas que interagem direta e exclusivamente com a exploração, como a habilidade (de uso limitado) de subir ou descer de andar em um determinado ponto, a habilidade passiva de expandir a visão aérea, e a possibilidade de mudar o padrão em que os inimigos se encontram no mapa.






Além disso, o gerenciamento dinâmico e de fator replay do grupo foi também integrado à exploração. A maioria dos personagens não são iniciais, mas devem ser encontrados durante a dungeon. Alguns possuem traços fofos, como costumeiro de Ryoma Ito, mas também inusitados, como um robô ou um gato gigante e gordo. Quando seus personagens morrem, eles desabam em um determinado ponto do mapa, podendo ser lá abandonados ou levados pelo seu grupo até um altar de ressurreição.

Outra mecânica interessante nesse sentido é a da petrificação. Quando um personagem do grupo é petrificado, ele fica imóvel naquele quadrado do tabuleiro. Para despetrificá-lo, é preciso achar um ponto específico, existente em alguns andares, e dar as coordenadas exatas de onde está a estátua do personagem para então ir lá buscá-lo.




O aspecto mais desafiante nessa interação de gerenciamento de grupo e exploração é a morte da equipe inteira, o que leva o jogador de volta ao primeiro andar, tendo que formar um novo grupo na academia. E se todos os personagens morrerem, naturalmente vem o Game Over, desativando todos os quadrados já mapeados, mas preservando o nível dos personagens. Isso fortalece o fator replay e incentiva o método de tentativa e erro para aprendermos mais sobre os mecanismos do jogo e os pontos fracos dos inimigos.

Contudo, como há muitos andares, o ritmo de exploração não varia muito e as descobertas de novidades não são tão impactantes, a experiência tende a se tornar excessivamente repetitiva. Ademais, isso pode ser agravado nos momentos em que o grupo morre e é preciso voltar desde o primeiro andar, podendo gerar frustração, algumas vezes.




O sistema de batalha também é significativamente engenhoso. Hiroyuki Ito voltou a desenvolver seu sistema de ATB, uma barra que determina a vez de selecionar a ação de um personagem. O interessante desse sistema é que ele propicia uma batalha mais dinâmica de turnos, além de capturar a ideia de que um personagem mais ágil vai agir com maior frequência do que um personagem pesado.

Em Dungeon Encounters, o tempo de todas as barras de ATB trava quando chega a vez de alguém agir, assim impedindo que o jogador tenha desvantagem frente aos comandos automáticos dos inimigos.

Também chama a atenção que Ito desenhou três tipos de “barras de vida”: uma de HP, uma de MD e outra de PD. Teoricamente, a barra de MD é uma “barra de vida de defesa mágica”, já que somente quando ela é anulada que o jogador pode tirar dano do inimigo (ou vice-versa) com magia; e analogamente o mesmo vale para a barra de PD, de defesa física. Mas isso não significa que não exista uma noção usual de defesas física e mágica. Não só há, mas quanto mais defesa desse tipo você tiver (por meio de armaduras, por exemplo), mais resistência terá em suas barras de PD e MD.

Além desse sistema muito interessante, continuam a valer propriedades comuns em RPGs, como esquiva e vulnerabilidade a determinados equipamentos, como armas de longo alcance . Por outro lado, não há uma evolução de habilidades mágicas muito complexa, o que limita a estratégia em combate nesse aspecto.

Há uma grande variedade de estados negativos, vários dos quais podem tornar algumas batalhas desafiadoras de modo imprevisível. Alguns desses elementos lembram títulos de Final Fantasy, como a possibilidade de transformar os inimigos em porquinhos (em Final Fantasy, seria em sapos).



Definitivamente um experimento para cientistas de RPG

Dungeon Encounters carece de profundidade narrativa em todos os sentidos, mesmo que não seja o foco. A arte de Ryoma Ito,  ainda que simples, é minimalisticamente elegante e simpática, e os arranjos clássicos de Nobuo em guitarra são particularmente bons e coerentes com a simplicidade proposta, mas acima de tudo esse jogo deve ser entendido como um experimento do laboratório de Hiroyuki Ito.

O ponto forte de Dungeon Encounters não está em sua arte, mas em sua ciência. Trata-se de um RPG único e competente na função à qual se propõe: ser um jogo focado na essência mecânica de um dungeon crawler ao mesmo tempo em que reinventa o modo de se pensar a exploração e a dinâmica de combate em games desse estilo.

Esse é um RPG recomendado a fãs do gênero que apreciam especialmente a ciência por trás dos dungeon crawlers em interações criativas entre mecânicas de combate e gerenciamento de grupo com uma exploração única em dungeons.

Prós

  • Bons arranjos de música erudita em suítes para guitarras;
  • Arte minimalista elegante e simpática;
  • Sistema de batalha engenhoso, intuitivo e bem funcional;
  • Level design refinado, criativo e único;
  • Coerência e boa interatividade entre mecânicas de gerenciamento de grupo e exploração de dungeon.

Contras

  • Narrativa básica demais para contextualizar os personagens (mesmo não sendo o foco da obra);
  • Visuais excessivamente simples que prejudicam alguns aspectos do gameplay e subutilizam seu potencial artístico;
  • O ritmo de exploração e combate pode ser um tanto repetitivo e frustrante.
Dungeon Encounters — PC/PS4/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: Switch
 
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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