Análise: No More Heroes 3 (Switch) é o estiloso retorno de Travis Touchdown ao campo de batalha

Game conta com história criativa e ótimo sistema de combate, mas também com mundos abertos vazios e side quests repetitivas.

em 11/09/2021
No More Heroes 3 Art

Em janeiro de 2017, quando o desenvolvedor Goichi Suda, conhecido como SUDA51, subiu ao palco da primeira apresentação do Nintendo Switch ao público e à imprensa com uma arte do assassino Travis Touchdown ao seu lado, a mensagem foi clara: a série No More Heroes estava de volta. Finalmente, após dois jogos no Wii, fãs iriam continuar a saga do anti-herói no console híbrido.


Tecnicamente, isso aconteceu primeiro com o lançamento do controverso spin-off Travis Strikes Again: No More Heroes (Switch). Seu gameplay mais simplificado dividiu as pessoas, deixando a dúvida de se, algum dia, a plataforma da Big N receberia uma verdadeira sequência da franquia, com a mesma jogabilidade hack and slash sanguinolenta pela qual era conhecida.

Em 2021, esse dia chegou. Desenvolvido e publicado pela Grasshopper Manufacture, No More Heroes 3 devolve Travis ao seu habitat natural, batalhando contra os maiores assassinos do universo com sua Beam Katana em mãos. O game traz de volta ótimos elementos de seus antecessores, como narrativa nonsense e combates engajantes, mas não consegue solucionar plenamente os problemas que já prejudicavam a experiência nos títulos passados.

O Jardim da Insanidade de SUDA51

Devotos de SUDA51 podem ficar tranquilos. No More Heroes 3 faz jus ao legado de narrativa ditado por No More Heroes (Wii), No More Heroes 2: Desperate Struggle (Wii) e Travis Strikes Again. Ou seja, a história é loucura atrás de loucura, muito bem costurada graças a criativos recursos artísticos e de gameplay.

Desta vez, Travis deve encarar uma ameaça de fora deste mundo. O alienígena e príncipe Jess Baptiste VI, conhecido como FU, escapa da prisão interplanetária e desce à Terra com seus capangas do Ranking Intergaláctico de Super-Heróis. Além de se reencontrar com seu antigo amigo, Damon Riccitiello, que o ajudou a retornar ao espaço quando sua nave caiu em nosso planeta há 20 anos, o extraterrestre tem um objetivo: dominar o mundo.

Para impedir que sua cidade e seus amigos sejam destruídos, o protagonista aceita o jogo de conquista proposto por FU, o número 1 do Ranking Intergalático. Sua missão agora é subir na lista dos dez maiores matadores do universo, chegar ao topo e eliminar Jess Baptiste e sua ameaça à Terra.
O príncipe Jess Baptiste VI, ou FU


Pense no enredo já maluco dos primeiros jogos da série, troque os assassinos humanos por ETs e acrescente um perigo mundial como motivação para a matança. O resultado é uma narrativa ainda mais nonsense, mas que, com a direção de SUDA51, consegue se tornar coesa dentro de seu absurdo. O desenvolvedor sabe muito bem usar artifícios estilísticos e de jogabilidade para conduzir a história e, várias vezes, subvertê-la completamente.

Por exemplo, somente na primeira hora com o game, o jogador experimenta um gameplay em pseudo-16-bit; momentos de ação com a Beam Katana; combate usando mechas, mísseis e lasers; animações estilo anime; cutscenes em 3D rodando na Unreal Engine; e vinhetas de abertura e encerramento dignas de desenhos japoneses.

É fato que tal variedade de linguagens pode se tornar cansativa. Alguns elementos citados acima se repetem em diversos momentos, podendo atravancar o ritmo da história para alguns. Porém, é inegável que isso também traz um frescor ao game. A imprevisibilidade tanto narrativa quanto estética está presente em todo o jogo e deixa quem está com o controle em mãos sempre curioso pelo que virá. A complexidade e a qualidade desses recursos são os maiores já vistos na série. É bom ver uma franquia supostamente nichada recebendo um investimento desse tipo.

Outro ponto de relevância é a maturidade do roteiro. Isso não significa que o jogo é mais sério que seus precursores, longe disso. O game ainda é repleto de piadas e referências à cultura pop e ao próprio SUDA51 que em diversas horas me fizeram abrir um sorriso. Mas essa diversão vem menos às custas de insinuações sexuais e de tachar Travis como um pervertido, coisas das quais os primeiros games eram cheios e que não necessariamente envelheceram bem.
No More Heroes 3 Cutscene
A cutscene de abertura é uma das melhores já feitas na franquia


Além disso, o jogo traz um pouco mais de propósito à busca pelo topo do ranking. Colocando FU como o principal antagonista desde o início, sua presença iminente se faz sentida em todos os momentos. De cenas em que interage com os integrantes de sua gangue a falas que vão mostrando gradativamente o seu desprezo a Travis Touchdown, sua personalidade é mais tridimensional que a de muitos personagens da série. Destruí-lo torna-se mais engajante e ganha mais significado dessa forma.

Nós, brasileiros, também conseguimos acompanhar a narrativa, pois todos os textos do game estão localizados em português, algo inédito na franquia. O trabalho de adaptação para nosso idioma está muito bem feito, com expressões típicas de nossa cultura e — como não podia deixar de ser nesse jogo para maiores de 18 anos — palavrões bem nacionais.

E não se preocupe se você não jogou outros lançamentos da franquia. É perfeitamente possível compreender a história principal sem saber o que aconteceu nas aventuras anteriores. Referências irão passar batido caso esse seja seu primeiro jogo, mas toda a qualidade da apresentação do script permanece a mesma.

Com a Beam Katana (ou o Joy-Con) nas mãos

Quando o assunto é a jogabilidade durante batalhas, No More Heroes 3 pega o já ótimo sistema utilizado no Wii e acrescenta novas opções que deixam os embates mais interessantes.

A interface Wii Remote/Nunchuk é substituída pelos dois Joy-Con separados, um em cada mão. Como de costume, golpes de Beam Katana são desferidos com o apertar de botões. Controles de movimento são usados para finalizar inimigos com um corte fatal ou para realizar ações de luta-livre. Esse método de batalha continua bastante consistente, permitindo a precisão de um hack and slash convencional com a visceralidade dos movimentos, que se provaram responsivos, com pouquíssimos erros de registro.

Assim como nos remasters dos dois primeiros jogos da série, lançados para Switch em 2020, o título também pode ser experimentado sem motion controls, por meio de inputs nos analógicos no lugar dos acelerômetros. Apesar de ser um esquema de controle funcional e até mesmo mais estável, ele perde a imersão que mover o Joy-Con traz ao gameplay. Cortar o ar com os controles e ver Travis dilacerando inimigos como consequência provoca um empoderamento único.

No More Heroes 3 Battle


O gameplay pode parecer o mesmo de antigamente. No entanto, ele é aprimorado por alguns fatores. O primeiro, fãs da franquia notarão logo de cara: não é mais necessário segurar o controle para cima ou para baixo para desferir golpes distintos. Agora ataques rápidos e fracos ficam em um botão e investidas poderosas, mas lentas ficam em outro. Não é algo revolucionário, mas que torna as lutas melhores, impedindo ações erradas por causa da posição dos Joy-Con.

As contendas também são aperfeiçoadas com o uso das habilidades da Death Glove. O item, original de Travis Strikes Again, retorna e dá ao assassino um arsenal de técnicas inéditas. Com elas, é possível desferir um chute após se teletransportar ao inimigo, empurrá-lo usando forças gravitacionais, criar uma área em que oponentes recebem dano constante ou desacelerar o tempo ao redor do anti-herói.

De início, é complicado entender como essas ações podem se integrar ao jogo, mas, após identificar os padrões de ataque de cada vilão, a implementação fica mais evidente. ETs distantes podem ser arremessados pelo ar enquanto os próximos são mais fáceis de lidar em câmera lenta, por exemplo. Como cada poder possui um tempo de cooldown, cabe ao jogador criar estratégias para utilizá-los nos momentos certos. Com esse recurso, a sensação é que Travis nunca está parado em combate, tirando a morosidade do gameplay.

Essa dinamicidade pode ser encontrada também no novo método de recuperação de vida e de energia da Beam Katana durante os níveis. Saem os antigos baús com itens dentro, acessíveis de maneira limitada, e entram sushis com diferentes tipos de benefícios que podem ser usados em qualquer momento.

Os alimentos podem ser adquiridos em barracas antes das disputas e incluem não só vida e energia extras, como também buffs de ataque e diminuição do tempo de resfriamento das habilidades da Death Glove. A possibilidade de serem consumidos livremente faz com que os enfrentamentos não percam seu ritmo rápido, criando uma experiência muito mais direta e simplificada.
No More Heroes 3 Death Glove
Travis ativando poder de sua Death Glove


No entanto, isso não significa que todos os pontos da jogabilidade são positivos. A mecânica de Tensão — que aumenta a complexidade dos combos a cada sequência de golpes ininterruptos — é confusa por não ser formalmente esclarecida; o mecanismo de chips para Death Glove, que provoca alterações nos atributos de Travis, interfere pouco nos combates; as animações de Travis, por não poderem ser canceladas, às vezes provocam danos ou mortes desnecessárias; e as sequências de luta com robô gigante são mal utilizadas.

Esse último é especialmente decepcionante, pois, apesar de aparecer na introdução do game, o modo Full Armor Travis nunca realmente mostra seu potencial. A armadura só é um especial extremamente forte nos duelos ou aparece em alguns poucos embates espaciais. Embora lentos e exigirem uma acomodação com os controles, esses níveis divertem, remetendo a shooters 3D arcade, em que desviar dos ataques padronizados dos inimigos e descobrir seus pontos fracos é fundamental. É uma pena que somente haja quatro desafios desse.
No More Heroes 3 Full Armor
Fases com o Full Armor Travis mudam o gameplay completamente


Aliens vs. Assassino

Vou admitir que, mesmo sendo fã da série, estranhei de início a premissa de No More Heroes 3 de usar aliens como combatentes. Acreditei que isso descaracterizaria a franquia, conhecida pelos galões de sangue jorrando de humanos desmembrados. Porém, após passar cerca de 30 horas com o game, eu consegui captar como os ETs tornam até mesmo o design do jogo mais atrativo.

Por serem alienígenas, os inimigos comuns são desenhados para serem muito distintos uns dos outros. Se antes era possível diferenciar vilões somente pela roupa que usavam ou pela arma que seguravam, agora o próprio formato e cor do corpo indicam essas distinções, tornando mais fácil reconhecer contra quem se está lutando, lembrar de seus padrões de golpes e criar planos de ataque.

Com esse tema extraterrestre, a equipe de desenvolvimento da Grasshopper Manufacture pôde ser mais imaginativa ao bolar o moveset dos adversários. Bolas de energia, explosivos que acionam com a proximidade do protagonista, cubos holográficos, tiros que desativam a Death Glove… tudo isso substitui o que antes se limitava a espadas, machados, tacos de beisebol e armas de fogo.

A imaginação também está presente nas contendas contra os chefões. Mantendo a tradição dos games principais da franquia, esses enfrentamentos permanecem o ponto alto da experiência. Cada um apresenta algum tipo de reviravolta de gameplay ou de enredo, colocando o jogador em situações no mínimo inesperadas. De fato, algumas delas priorizam esse twist à própria dificuldade da luta, criando conflitos muito fáceis de se resolver, mas essas guinadas repentinas compensam a frustração. Sem dar muitos spoilers, prepare-se para encarar diferentes estilos de jogos ou até antagonistas surpreendentes.
No More Heroes 3 Boss
Mr. Blackhole, o primeiro chefe do jogo


Falando nos chefões, é importante ressaltar que o game enxugou bastante o acesso a eles. Os longos e repetitivos corredores repletos de capangas que levavam à sala do boss nos títulos anteriores não existem mais. Em seu lugar, Partidas Designadas foram espalhadas pelo mundo aberto e devem ser cumpridas antes das Ranking Battles. Isso trouxe mais ritmo ao progresso no game, eliminando a parte mais arrastada desses níveis.

A volta do mundo aberto

No entanto, para chegar a esses chefes criativos, No More Heroes 3 obriga o jogador a passar por atividades repetitivas em mapas sem vida, um flashback nada agradável do primeiro jogo de Wii.

Ausente em No More Heroes 2, o mundo aberto retorna nesta terceira edição e, desta vez, é expandido para além da cidade de Santa Destroy. Outros quatro ambientes também podem ser explorados tanto a pé quanto na moto à la Akira de Travis. Esses espaços servem como uma espécie de hubworld em que o anti-herói pode acessar minigames e missões de assassinato para adquirir dinheiro para pagar a taxa de entrada para a próxima disputa ranqueada.
No More Heroes 3 Neo Brazil
Um dos novos ambientes é uma direta referência ao nosso país, pelo menos no nome


Lá em 2007, quando SUDA51 tentou esse conceito de open world no No More Heroes original, o resultado foi um mundo vazio com atividades repetitivas para poder prosseguir na história. Os minijogos não ajudavam muito, sendo tediosos ou muito previsíveis. Em 2021, a experiência foi um pouco melhor. Ênfase em “pouco”: a principal diferença é que, agora, várias missões já estão presentes nos cenários, sem a necessidade de serem ativadas previamente nos centros de trabalho. Basta chegar até elas e jogá-las, acabando com aquele vai e vem desnecessário que tornava o primeiro jogo lento. Soma-se a isso o fato de que novas fases e mais desafios são desbloqueados conforme se avança no jogo, dando uma inicial sensação de variedade.

Porém, após algumas horas, dá para perceber que o título, na verdade, oferece somente variações de cinco minigames e lutas contra aliens em diferentes combinações. Sim, há uma grande quantidade de atividades (cerca de 90 no total), permitindo que o jogador nunca tenha que repetir um desafio em toda a sua jogatina. Porém, após experimentar alguns deles, já se experimentou todos. É como se a repetição condensada do primeiro jogo fosse espalhada aqui.

Para dar um pouco mais de sentido ao mundo aberto, o título também introduz alguns fetch quests, em que Travis deve encontrar itens pelos locais, como cartas colecionáveis, escorpiões, terrenos para plantar árvores e até mesmo estátuas Moai para destruir. No começo, encontrar esses objetos é divertido, resultando em uma exploração mais significativa das áreas. Porém, depois de um tempo, esses elementos vão diminuindo e terrenos vazios com paredes invisíveis arbitrárias vão se tornando mais evidentes. Ao final, o otaku está correndo a esmo por minutos sem achar algo com o qual interagir.
No More Heroes 3 Text
Parte das sidequests e da história principal também são apresentadas no estilo de jogos de texto antigos, como Travis Strikes Again


Já em termos de performance, o mundo aberto não é o mais estável já visto, mas roda de maneira satisfatória. Ao contrário dos cenários de luta, que focam em se manter em 60 quadros por segundo mesmo com uma série de partículas enchendo a tela, os mapas flutuam nos 30 fps ou um pouco menos se o game estiver em modo portátil. Embora perceptível, essa queda não incomoda tanto, pois o overworld não exige ações de precisão extrema. O que acaba incomodando são problemas de carregamento de texturas e pop in de elementos, que são bem comuns.

Olá, velho amigo

No More Heroes 3 é como se fosse um reencontro com um antigo colega. Desses com quem a gente briga por coisas irritantes, mas que, no final das contas, nos trouxe ótimos momentos. Alguém que, apesar dos problemas, a gente não consegue deixar de gostar.

A equipe de SUDA51 ainda não conseguiu decifrar completamente o enigma de como criar um mundo aberto que não seja vazio e sidequests que não sejam repetitivas. Eles até seguiram por um caminho correto, mas ainda não foi o suficiente. Porém, a liberdade narrativa do game, seu sistema de combate aprimorado devido a novas habilidades e as loucuras inesperadas de seus chefões criam uma experiência única, difícil de achar em outros games.

Prós

  • Narrativa nonsense criativa e estilosa, provocando surpresa ao usar diversos estilos de linguagem e de gameplay em sua apresentação;
  • Enredo mais maduro, com vilão principal mais interessante e menos apelação para gags de teor sexual;
  • Ótima localização em português, empregando características típicas de nosso idioma;
  • Combate engajante, usando bem tanto controles convencionais quanto de movimento;
  • Novas habilidades da Death Glove e mecânica de consumo de sushi para receber benefícios durante batalhas tornam os níveis mais dinâmicos;
  • Aliens permitem design e ataques inimigos mais criativos;
  • Lutas contra chefões de mais fácil acesso, cheias de reviravoltas.

Contras

  • Pontuais aspectos da jogabilidade não são explicados direito ou não fazem diferença real durante as lutas;
  • Pouco uso do modo Full Armor Travis;
  • Mundos abertos vazios, com grande quantidade de pop in e demora de carregamento de texturas e modelos;
  • Minigames e missões de assassinato com pouca variedade, apesar de grande quantidade de desafios.
No More Heroes 3 - Switch - Nota: 8.0
Revisão: João Pedro Boaventura
Análise produzida com cópia digital cedida pela Nintendo

Jornalista, analista de mídias, PcD e entusiasta de games desde que jogou Pokémon Azul no Game Boy Color nos anos 90. De lá para cá, tenta aproveitar ao máximo todos os consoles no pouco tempo que a vida adulta permite. Se não está escrevendo para o Blast ou demorando anos para zerar um jogo, está no Twitter (@DanielMorbi) e no Instagram (@danielmorbi_)
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