Análise: Road 96 (Switch) mostra que existem vários caminhos em uma jornada

Essa mistura de elementos roguelike com um tradicional point and click cria uma experiência única e com diversas possibilidades.

em 16/08/2021
Grandes viagens pela estrada, desbravando locais desconhecidos e conhecendo novas pessoas a cada trajeto, não são tão evidentes assim na cultura brasileira. Partir em uma road trip, no entanto, é algo enormemente romantizado na cultura norte-americana, desde os livros da geração beat até os diversos filmes e músicas sobre o tema. 

Com certeza existe algo muito atraente na ideia de chamar a estrada de casa e seguir sem rumo explorando o mundo, mas mesmo que a mídia generalizada tenha se aproveitado da ideia por muitos anos, os videogames ainda não souberam representar a magia da road trip de forma efetiva. 

Aproveitando os mapas gerados de maneira procedural dos roguelikes, Road 96 busca inserir o jogador em uma viagem pela estrada de uma maneira imersiva que mantém a típica sensação de mistério e descoberta de uma road trip. Seguindo o formato dos point-and-clicks para apresentar a narrativa, o título utiliza escolhas fragmentadas para construir uma história profunda, ainda que um tanto linear, e desenvolver um pequeno, porém carismático grupo de personagens de forma bastante orgânica.

A esperança de atravessar a fronteira

Os eventos de Road 96 possuem um pano de fundo fortemente político. Em uma nação oprimida por um presidente corrupto e prestes a entrar no período de eleições, adolescentes do país inteiro buscam uma realidade melhor, seja atravessando a fronteira, se rebelando contra o sistema ou lutando por um resultado diferente na urna. O seu próprio ponto de vista sobre a melhor solução para os problemas da área é constantemente contestado e resumido nessas três possibilidades pelos diálogos e escolhas da aventura.

O poder do voto, a força da rebelião e a opção de se ausentar, cada uma dessas escolhas reverbera por toda a narrativa do jogo e influencia diretamente no destino de toda a região. Desde grafitar posters dos candidatos espalhados pelas áreas da estrada até expressar com todas as palavras a sua opinião sobre a situação política para os personagens-chave, o game deixa claro que determinadas escolhas afetam o rumo da trama. 


A grande quantidade de adolescentes inconformados fugindo pela estrada encaixa perfeitamente na premissa estilo roguelike do título. Dentro dos 10 capítulos que montam a narrativa central, você sempre controla um adolescente diferente, com uma quantidade de dinheiro específica no bolso, assim como uma barra de stamina própria e uma distância pré-determinada do objetivo final de cada um desses capítulos: chegar até a fronteira.

O sistema de progressão cria um mix interessante entre uma narrativa maior que avança aos poucos e escolhas específicas que afetam não só cada capítulo, mas também eventualmente o destino do país e a história do jogo como um todo. O relógio está andando sempre em direção ao fatídico dia da eleição, que pode representar a salvação ou a desgraça definitiva desse povo, e cabe a você fazer ou não o melhor que puder para garantir um resultado positivo.


Sua aventura é dividida em blocos de acontecimentos, geralmente em pontos de descanso pela estrada, como postos de gasolina e acampamentos, ou simplesmente dentro de um veículo ou a céu aberto no deserto. A maioria das interações com o mundo acontecem por meio de diálogos (geralmente com um grupo seleto de personagens principais), mas um pouco de exploração pode ser feita para conseguir algumas recompensas, como dinheiro, comida, fitas cassete secretas e chaves de carro. 

Além de prestar atenção na história e em suas escolhas narrativas, também é necessário que você equilibre bem a sua quantidade total de stamina, assim como, de certa forma, o seu dinheiro. Passar de uma área para a próxima utiliza uma quantidade variável da sua barra de energia, que pode ser recuperada com alimentação ou descanso. A comida, grande parte das vezes, pode ser adquirida com dinheiro em alguns lugares, mas a grana também exerce outras funções pelos acontecimentos da história.


A grande força de Road 96 está em sua trama. Sinto que entregar parte da história nesta análise faria um desserviço à experiência e ao sentimento de descobrimento que existe ao longo de suas ações e escolhas pela jornada. No entanto, irei compartilhar que os personagens realmente impulsionam a força narrativa do jogo. Todos têm personalidades bem-desenvolvidas, relações muitas vezes não explícitas entre si e uma boa quantidade de realismo em seus sentimentos e ações.

A imersão nesse mundo é real e pode ser percebida em vários momentos distintos. Um dos personagens possui certas tendências homicidas, por exemplo, e, após ele me matar de repente em uma das campanhas, comecei a tomar bastante cuidado ao seu redor. Ainda assim, até mesmo ele conseguiu se redimir de certa forma. Durante uma das minhas “encarnações”, pude constatar um lado humano e sensível dele que eu não fazia ideia. 


Outro personagem parecia ser perigoso pela sua primeira aparição bêbado no deserto, mas em poucos instantes ele me convidou para jogar futebol e logo dividiu alguns conselhos realmente bonitos sobre a vida. Compartilhar o pôr do sol com aquela pessoa virtual, machucada pelos caminhos percorridos, trouxe um peso emocional especial à minha jornada, assim como uma série de outros eventos durante o jogo. 

Se o maior objetivo de Road 96 era passar a sensação de uma road trip, com todos os possíveis percalços e encontros do acaso pelo caminho, eu diria que ele foi atingido com êxito. 

Cruzando pela estrada nos anos 90

Fugindo das facilidades do mundo atual, constantemente conectado pela internet por meio de celulares e computadores, Road 96 volta um pouco no tempo para contar sua história — mais precisamente, ao verão de 1996. A decisão foi ótima para reforçar a sensação de isolamento da vida na estrada, tirando a facilidade tecnológica de acesso a informações, mas a estética noventista em si não chega a ser muito bem explorada durante a jornada.

As localidades espalhadas pelos trechos da estrada não deixam muito clara nenhuma estética específica de um período ou outro dos tempos modernos. Claro que você irá se deparar com elementos como telefones públicos, máquinas de fliperama e lanchonetes ou postos de gasolina mais antiquados; no entanto, não seria tão estranho ver esse tipo de coisa pelas estradas dos dias de hoje. Ao menos em relação ao visual e ao senso estético do game, é fácil esquecer que a narrativa se passa especificamente nos anos 90.


Os cenários também não demonstram muito estilo ou variedade como um todo. Os gráficos do jogo em si, que seguem um estilo mais simples, são bastante agradáveis, mas o mundo não chama assim tanta atenção. Da mesma forma, é normal visitar os mesmos locais de forma constante durante a aventura, algo que tira ainda mais o apelo visual da ambientação do título. Pelo menos em relação aos personagens, o design de cada um agrada bastante, mantendo uma integridade visual bem distinta e atrativa entre eles. 

Já em relação ao som, Road 96 aposta em uma trilha sonora original de qualidade que evoca elementos dos maiores hits dos anos 90. A música se faz presente em diversos momentos durante a história, seja para aliviar ou apertar a pressão de algum ponto narrativo ou apenas para colorir o mundo à sua volta durante uma viagem de carro. A música ainda marca o único verdadeiro colecionável do título: fitas cassete que você pode procurar pelo cenário ou simplesmente encontrar durante a história. 


Assim como a trilha sonora, a experiência do jogo não desaponta na maior parte do tempo. Pelo menos na primeira vez que você completar os 10 capítulos, é difícil não ficar intrigado e entusiasmado pelo o que poderá vir pela frente. Os problemas não são assim tão aparentes graças à narrativa envolvente e ao ritmo bastante dinâmico do gameplay.

Suas campanhas com cada adolescente podem acabar extremamente rápido, como em 15 minutos caso você tome algumas decisões equivocadas. Em geral, no entanto, essas runs irão durar cerca de 40 minutos a uma hora. Um tempo bastante saudável para você completar a jornada de um personagem específico, parar de jogar logo depois e fazer outra coisa. 

Com certeza a melhor forma de consumir a aventura de 96 é tomando seu tempo e explorando cada local e opção de diálogo presente. É fácil entrar na narrativa e escrever a própria história do seu personagem na sua cabeça. Será que ele é a favor da democracia, ou talvez um anarquista? Será que ele conseguirá fugir pela fronteira ou será preso pela polícia patrulheira do presidente corrupto? Cabe a você tomar essas decisões e seguir em frente da melhor forma. 


Indo um pouco além, jogatinas posteriores à sua primeira não serão tão agradáveis. É totalmente possível fazer uma série de escolhas distintas e mudar bastante o final de uma campanha. Entretanto, você sempre será recebido pelos mesmos confinados locais do mapa e uma arquitetura geral da narrativa bastante similar. Afinal, os personagens e as suas relações são bem-definidas o bastante, e certamente funcionam para contar uma história intrigante, mas perdem um pouco do aspecto de surpresa que ocorre na primeira vez.

Alguns leves problemas técnicos também ocorrem, como a já tradicional queda da taxa de quadros por segundo no Nintendo Switch, mas nada que anule o seu aproveitamento da experiência. Vale lembrar também que Road 96 é um jogo bastante lento, muito mais similar a um point-and-click do que a um roguelike de fato. Você precisa estar disposto a encarar uma série de interações mais passivas e uma grande quantidade de texto a todo momento. 

Vale a pena experienciar


Para quem gosta de um bom adventure game ou um visual novel mais voltado à narrativa do que à jogabilidade, Road 96 não só entrega uma experiência rica e bastante única, como surpreende e inova em alguns aspectos.

A sensação de cruzar a estrada, experienciando tudo o que a vida tem a oferecer, é alcançada com maestria e mantém essa habilidade até o final. Jogatinas subsequentes podem revelar alguns problemas, como a repetição de locais e pontos narrativos, mas vale bastante a pena jogar a história de coração aberto pelo menos uma vez e conhecer esse interessante elenco de personagens. 

Prós

  • Premissa bastante interessante de unir uma experiência narrativa a eventos gerados de maneira procedural;
  • Visual agradável;
  • História intrigante alavancada por um elenco de personagens bastante carismático;
  • Trilha sonora original de qualidade.

Contras

  • Alguns problemas de queda de fps;
  • Repetição constante de locais e personagens;
  • O jogo perde parte da magia após a primeira jogatina completa;
  • Pouco para explorar fora da trama principal.
Road 96 - Switch/PC - Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: Switch 
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Digixart
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