Começar a se aventurar por um novo gênero de videogames nem sempre é uma tarefa fácil, ainda mais com a quantidade de jogos à nossa disposição, tanto existentes quanto sendo lançados com frequência. Certas experiências podem ser meio assustadoras, deixando impressões ruins em quem ainda está tentando se familiarizar com um estilo de gameplay, sobretudo jogadores mais novos em termos de costume e idade.
Nesse quesito, Ayo the Clown é um singelo exemplo de como introduzir um universo inédito de mecânicas e conceitos de gameplay de uma maneira divertida e confortável, mas também desafiadora. Desenvolvido e publicado pela Cloud M1, este sidescrolling platformer não traz nada inovador, mas resgata uma boa dose de nostalgia e qualidade dos clássicos que o inspiraram e a insere na medida certa aos que não estão acostumados a avançar da esquerda para a direita desviando de inimigos e outros obstáculos.
Respeitável público, meu cachorro sumiu!
Ayo é um simpático palhacinho que mora com Bo, seu cachorrinho de circo, em uma cidade cheia de habitantes gentis e peculiares. Certa noite, nosso protagonista acorda assustado com um barulho no quarto e descobre que Bo desapareceu. Partimos então em uma jornada para descobrir o que aconteceu com o bichinho e recuperá-lo.
A primeira fase mostra que Ayo começa a aventura sem qualquer habilidade, incluindo ações básicas como pular, correr e deslizar pelas paredes. Esses “poderes”, digamos assim, vão sendo adquiridos ao longo da campanha ao ajudarmos as pessoas que encontramos pelo caminho, em pequenas missões que geralmente incluem coletar uma quantidade de objetos ou eliminar certos inimigos em um determinado trecho do estágio.
A ideia de começar com um personagem sem recursos e fazer com que ele vá expandindo seu leque de habilidades facilmente nos faz lembrar da série Mega Man X, mas aqui ela não é tão bem utilizada. A quantidade de habilidades é muito grande e diluída em ações extremamente básicas que já poderiam estar inclusas desde o início, tanto que em pontos bastante avançados do jogo ainda estamos aprendendo novas mecânicas.
Outro problema é que alguns desses movimentos são pouco aproveitados, exceto pela fase em que os coletamos, que naturalmente funcionam como um tutorial para aprendermos a utilizar cada um. Ao passo que uns são vitais e constantemente usados, como o balão que permite que Ayo flutue por poucos segundos, outros são facilmente ignoráveis. Uma enxugada nesse excesso de habilidades faria um bem considerável ao ritmo de progressão da campanha.
Junto às habilidades, o destemido palhaço tem ao seu dispor algumas armas, como uma espada feita de balão, uma marreta com som de buzina e um balão d’água. Esses itens estão espalhados pelas fases, e ao levarmos dano perdemos a arma que estivermos segurando.
Alguns estágios têm ainda veículos para conduzirmos, ora um helicóptero que atira e joga bombas, ora um tanque que dispara mísseis e tem um propulsor para planar por um breve período de tempo — Ah, e uma máscara de dinossauro que nos permite cuspir fogo e destruir prédios, claro.
Um repertório de truques digno dos grandes
Eu já bati nessa tecla durante a análise, mas Ayo The Clown é bastante competente no que se propõe, ao mesmo tempo que não tenta muita coisa de diferente do que já existe há décadas em jogos de plataforma.
Suas 30 fases seguem o padrão dos títulos do gênero, com inimigos a derrotar, trechos que exigem precisão e coordenação motora, e as ocasionais batalhas contra chefes. Felizmente, há muito conteúdo diferente e pouquíssima repetição no padrão dos desafios apresentados. O único porém na qualidade desse conteúdo é o supracitado excesso de fases que funcionam como tutoriais às habilidades aprendidas pelo protagonista.
Continuamente bebendo da fonte de franquias clássicas como Mario, Donkey Kong e Kirby (além do já mencionado Mega Man X), muitas das mecânicas vistas aqui remetem a fases e trechos memoráveis, como as seções de escalar grades em Super Mario World (SNES) e as cavernas com os carrinhos de mina em Donkey Kong Country (SNES). A Cloud M1 fez bem o dever de casa no que diz respeito a criar um ambiente familiar a quem já está acostumado a dar seus pulos com personagens consagrados na história dos videogames.
Em relação a alguns aspectos técnicos, no quesito visual, o cenário 3D não chama muita atenção, mas as artes feitas a mão que ilustram as cutscenes são um festival de beleza e fofura. Junto a uma narração feita por uma voz confortavelmente suave, elas dão aos acontecimentos na história de Ayo um maravilhoso traço de storytelling. A trilha sonora também não é particularmente brilhante, mas pelo menos há uma variedade suficiente de faixas para que não haja uma repetitividade incômoda.
Aproveito para destacar um dos recursos de game design mais charmosos de Ayo the Clown: a caracterização. Foi feito um excelente uso de elementos circenses para compor diversos aspectos do jogo, que passam com êxito o bom humor e o espetáculo de um circo e da profissão exercida pelo nosso herói.
Incluir objetos comuns ao trabalho de palhaço no arsenal de armas do protagonista já é uma boa sacada, mas a criatividade não para por aí: detalhes como as estátuas que jogam uma torta na cara de Ayo para marcar os checkpoints nas fases e as tendas de circo espalhadas pelo mapa geral, que servem para locomoção rápida (fast travel), dão um toque encantador à ambientação do universo do palhacinho.
Quem deixou tanta tralha espalhada por aí?
Ayo the Clown tem um aspecto colecionista que, apesar de não se aprofundar muito, não deixa de ser um ponto positivo para quem gosta de vasculhar cada cantinho de cada estágio à procura de objetos escondidos.
Existem três ursinhos de pelúcia e três pirulitos para encontrarmos por fase, totalizando 90 por item, além das missões secundárias que nos rendem prêmios que vão para o Baú do Tesouro, que não tem muita utilidade além do colecionismo em si e da satisfação de interpretar corretamente as dicas dos cidadãos e descobrir em quais estágios estão os desafios que nos rendem os objetos.
Algumas dessas missões são requisitadas por habitantes na cidade, enquanto outras são apresentadas diretamente em estágios específicos, e assim como na obtenção das habilidades de Ayo, seus objetivos consistem em realizar tarefas como eliminar uma peste de ratos ou levar uma tartaruga ao seu irmão virado de cabeça para baixo.
A moeda do jogo são gemas de cores, formas, valores e tamanhos variados. O jogador é fortemente incentivado a recolher o máximo possível das pedrinhas preciosas, visto que elas estão constantemente presentes em quantidades massivas e dispostas em arranjos variados. Coletá-las serve para obter vidas extras e comprar dois upgrades: um quarto ponto de vida e um balão maior. Uma terceira compra ainda pode ser feita: uma chave que libera duas fases secretas que não fazem parte da campanha regular, mas que também contêm três ursinhos e três pirulitos.
No último desses estágios, descobrimos que coletar as 90 pelúcias nos dá a opção cosmética de trocar a maquiagem de palhaço de Ayo por uma cabeça de ursinho, uma recompensa pouco animadora, considerando que a essa altura já fizemos tudo que o jogo tem a oferecer. Para piorar, confesso que não consegui descobrir o que se ganha por encontrar todos os pirulitos.
Os upgrades podem ser comprados na cidade ao custo 25 mil gemas cada e a chave vale 15 mil, o que eu considerei um valor altíssimo. Mesmo coletando praticamente todas as gemas em toda santa fase, só conseguimos as três compras praticamente ao fim da campanha. O mapa geral tem pontos em que podemos jogar um minigame de pescaria e juntar uma boa quantidade de gemas, mas isso significa cair em um grinding bem maçante.
Palhaçadas sem graça
Ainda que acerte em grande parte do que tenta, Ayo the Clown não escapa de ter seus problemas, uns maiores que outros. Já citei alguns, mas agora quero abordar o que tem maior potencial de afastar jogadores, apesar de isso ser exatamente o contrário do que a experiência geral quer passar: a inconsistência na dificuldade.
Fica claro que o jogo foi feito para um público consumidor mais jovem, dado o tom infantil simples e descompromissado que a sua história tem. Porém, se o foco está em encantar mais a criançada do que os adultos entusiastas de platformers, o nível dos desafios muitas vezes não reflete essa proposta.
A curva de dificuldade tem irregularidades ocasionais, com fases prematuramente difíceis e estágios muito fáceis em meio a partes mais tardias da campanha. Os chefes também têm esse ponto negativo, com um ou outro exageradamente mais difícil que os demais, ao ponto de que certos chefões podem ser vencidos sem muito esforço, enquanto outros passam um pouco do ponto médio de exigência.
Outra questão que prejudica a jogabilidade em si é a câmera, que tem posicionamento e movimentação péssimos. O ajuste de enquadro feito automaticamente enquanto movimentamos Ayo é horrível, muitas vezes deixando a câmera em uma posição na qual não podemos enxergar o que tem na direção para onde queremos ir, o que pode nos colocar em uma situação de ter que fazer um salto de fé. Também acontece de alguns balões de diálogo ficarem cortados e não podermos ler tudo que aparece neles.
Por fim, fica aqui a menção a duas pequenas rusgas, que praticamente não comprometem o gameplay, mas que acho importante abordar. A primeira delas é a tradução incompleta para o Português, que ainda mantém em inglês alguns textos, como o das opções da tela inicial e dos nomes das habilidades e brinquedos no momento em que os obtemos. Também identifiquei traduções feitas com um certo desleixo, como “World Map”, que virou “Menu Mapa”.
A segunda é uma escolha de mapeamento de botões que designou o B para avançar nos menus e o A para retroceder, um detalhe pouco relevante, mas que me deixou levemente confuso, principalmente enquanto eu me aclimatava ao jogo.
Um espetáculo para aplaudir de pé
Ayo The Clown não é nada revolucionário no espectro dos jogos de plataforma, mas isso não tira nem um pouco do brilho que ele tem como uma obra ideal a quem nunca teve o prazer de se aventurar em uma experiência do gênero.
Apesar das inconsistências na dificuldade, ainda mantenho a recomendação prioritária ao público infantil (o que não significa que ele não se encaixe no gosto de jogadores mais velhos e experientes, claro), que sempre pode contar com a ajuda de um pai, mãe e uma irmã ou irmão mais velhos para ensinar ou ajudar a passar dos apertos. Afinal, o que seriam dos videogames sem o seu lado didático e a sua capacidade de juntar as pessoas para boas horas de diversão?
Prós
- Excelente tanto como uma experiência inicial em jogos de plataforma quanto a quem já está acostumado com o gênero;
- Muita competência na inspiração em franquias consagradas de platformers;
- O conteúdo do jogo é bastante satisfatório, com muita variedade de desafios e pouca repetição;
- Caracterização sensacional, com uso primoroso de elementos do universo circense e da profissão de palhaço;
- Tem uma quantidade e variedade muito boa de colecionáveis.
Contras
- Um excesso de habilidades aprendidas, que poderiam já estar disponíveis desde o começo da campanha;
- Inconsistência na curva de dificuldade tanto das fases quanto dos chefes;
- A tradução para o Português é incompleta e rudimentar em alguns momentos;
- O preço dos upgrades e da chave que libera as fases secretas é muito alto, praticamente obrigando o jogador a fazer grind nos minigames de pesca;
- O posicionamento e o ajuste da câmera são bem ruins, muitas vezes nos forçando a fazer saltos de fé.
Ayo The Clown - Switch/PC - Nota: 7.5Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: João Gabriel Haddad
Análise produzida com cópia digital cedida pela Cloud M1