Shin Megami Tensei III: Nocturne como um experimento de Filosofia Política

Descubra como o mundo desse clássico pode levar a reflexões profundas acerca do humano e de seus ideais da sociedade.

em 11/07/2021



Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster (Switch), apesar de se tratar de uma remasterização de um título de 2003, traz uma experiência única para o híbrido da Nintendo. Isso, na medida em que ele continua tendo uma das ambientações mais sérias e sombrias no mercado de JRPGs, um dos gameplays mais desafiadores do subgênero dungeon crawler e, do ponto de vista narrativo, também continua sendo um dos jogos mais interessantes se tratando de temas de filosofia política.

No artigo exploraremos, neste clássico JRPG, um dos mais antigos problemas discutidos na área de Filosofia Política, o qual remonta ao menos à antiga filosofia grega. Trata-se da questão acerca de qual seria o melhor fundamento racional para se estabelecer uma sociedade ideal para os seres humanos.

Como explicado na prévia do remaster de SMT III, não é novidade que a série Megami Tensei (e suas subséries) ofereça narrativa e mundo propícios para o tratamento de problemas filosóficos, inclusive porque estão recheados de referências mitológicas e filosóficas. Algumas das quais são razoavelmente constantes em boa parte dos títulos da série.

Como lembra Sam Hatting, em seu ensaio para a Megatengaku, uma dessas constâncias na franquia é a ideia de que as religiões consagradas na tradição ocidental se fundamentam em uma concepção de que os humanos precisam se ver como inescapavelmente subservientes a certos interesses divinos a eles inacessíveis ou até incompreensíveis. Nesse sentido, o “deus” apresentado nos jogos de Megami Tensei é representado como um tirano, conhecido como YHVH (o nome hebraico de “Deus”) e sem empatia para com aqueles que não são seus seguidores.

Contudo, Shin Megami Tensei III — doravante apenas SMT III — é especialmente interessante para abordar a questão filosófica, ora proposta por dois motivos ao menos.

Em primeiro lugar, porque o jogo possibilita ao jogador ter o poder de reiniciar a humanidade, ou seja, de realizar um projeto de novo mundo a partir de determinados dogmas filosóficos (Razões), tendo que escolher entre uma dessas ou simplesmente nenhuma.

Em segundo lugar, porque, ao se passar em um universo pós-apocalíptico — com poucos sobreviventes humanos dispersos pelo que restou de seu antigo mundo —, essa premissa metafísica permite ao jogador ter uma experiência mais introspectiva sobre o problema sem que precise se questionar tanto sobre os meios para chegar ao seu projeto ideal de sociedade.

Ou seja, como a humanidade já está praticamente extinta, o jogador não se sente compelido a rejeitar alguns projetos de sociedades por exigirem meios danosos para alcançá-los, afinal de contas, a humanidade, tal como era conhecida, já vive uma era póstuma e cabe ao jogador decidir o valor daquilo que ela significava e o valor do que ela ainda poderá assumir perante um certo ponto de vista (à escolha do jogador).

Em concordância com a abordagem teórica de Ian Bogost, em seu livro Persuasive Games, podemos dizer que SMT III formula uma espécie de “simulação política” muito particular em um cenário imaginário e metafisicamente carregado. Um tipo de simulação, porém, que não é usado para uma política, mas sim para falar sobre política de modo mais geral, oferecendo uma experiência ímpar de liberdade, desafio e reflexão.

Assim, SMT III propicia algo como um sonho (ou pesadelo) a partir do qual se possa inventar os fundamentos do mundo, no qual o jogador desejaria se despertar.  Ou seja, um sonho ou pesadelo que consistiria em uma espécie de experimento ficcional para o problema filosófico da sociedade ideal desejada, e é nesse sonho sombrio que entraremos nos tópicos a seguir.

Concepção

Ainda no início de Shin Megami Tensei III há um evento chamado Concepção (Conception). Na análise de seu remake para Switch, o acontecimento foi resumido da seguinte forma:
“[...] um evento apocalíptico que resulta em um Vortex World (Mundo Vortex) que permanece até que haja um próximo momento de “criação” de um novo mundo. Pouco antes deste evento, o protagonista é transformado em um Demi-fiend, um humano com poderes de um demônio, para possivelmente liderar um exército contra a chamada Great Will (Grande Vontade).”
A “Grande Vontade” está associada ao deus de Megami Tensei, YHVH, já apresentado no tópico anterior. E, após o acontecimento acima mencionado, o protagonista se vê sozinho no deserto infernal no qual se tornou o mundo, repleto de demônios e espíritos de humanos em caminhos arenosos, além de cidades vazias ilhadas que escondem labirintos mágicos e sombrios dentro dos quais encontram-se as mentes e os braços do submundo desse Mundo Vortex.

Nesse contexto, o jovem protagonista Demi-fiend (parte humano e parte demônio) vê-se em uma encruzilhada entre demônios e humanos remanescentes e diferentes razões de ambos os lados para a criação ou não de um novo mundo. Afinal, se cabe a você escolher quem ou o que apoiar para o ressurgimento da humanidade, como deveriam ser os fundamentos desse recomeço? Ou será que o melhor seria que nem mesmo recomeçasse?



Rejeição e libertação

Sim, em SMT III, há diferentes finais, cada qual relativo ou a uma das “razões de mundo” ou a nenhuma delas. No caso de se optar por rejeitar essas razões, o jogador terminará em um dos três seguintes finais possíveis:
  • Libertário: quando se opta por restaurar o mundo como era, caótico e sem futuro definido. Nessa escolha, o Demi-fiend é elogiado por Lúcifer por negar a ordem da Grande Vontade e recomenda que mantenha seus poderes demoníacos, já que a Grande Vontade acabará por caçá-lo também.
  • Demoníaco: quando, na ausência de vontade para criar um novo mundo, opta-se por deixá-lo para os demônios até que venha um novo momento de Concepção. O que remete à ideia de “eterno retorno” do mundo, também de “Assim falou Zaratustra”. Para esse final, o jogador precisa ou não escolher nenhuma razão ou se contradizer entre duas.
  • Verdadeiramente demoníaco: quando o que resta do mundo é sacrificado para o nascimento de um novo demônio, resultando em uma batalha final entre Lúcifer e a Grande Vontade, em que o Demi-fiend torna-se o maior general de Lúcifer.
Em qualquer um desses finais o jogador, de certa forma, “opta por não escolher”, porém isso por si só é uma escolha e terá consequências que irão variar de acordo com o contexto. A variação ocorre porque quando alguém não escolhe algo em tempo para fazê-lo, outro escolherá no seu lugar e dividirá o peso da responsabilidade com aquele que optou por não escolher.

Seja qual for a decisão do jogador em SMT III, ele aprenderá duas coisas: primeiramente, que é inevitável arcar com peso das escolhas enquanto se está vivo, mesmo na ausência de alinhamento com uma razão específica para manter a própria vida ou para recriar o mundo em que se habita.

Em segundo lugar, aprenderá que as escolhas não são apenas opções de pensamento, mas suas realizações necessitam da imposição da vontade no mundo, ou seja, são também conquistas. Isso ocorre porque a dificuldade do jogo e os temas subjacentes são representativos da teoria do Übermensch de Nietzsche, introduzida em seu livro “Assim falou Zaratustra”, segundo a qual o homem deve ser levado a superar todos os obstáculos a fim de ascender ao status de Übermensch, ou “super-homem” (ou “além-homem”). Mas isso não se reflete apenas na dificuldade do gameplay.

Dungeon após dungeon, o Demi-fiend se depara com um desapontamento contínuo conforme as pessoas que ele considerava seus amigos saem do seu lado e as pessoas que lhe prometeram respostas revelam sua fraqueza e incompetência. Para Nietzsche, essa situação é esperada se alguém confia apenas no que os outros transparecem de seus valores morais.

Isso porque a ascensão ao nível de “super-homem” é um processo no qual se descobre o impedimento do convencionalismo à sua própria capacidade de alcançar a grandeza pessoal. Em outros termos, o indivíduo atinge seu potencial quando rompe com as convenções e afirma seu domínio pessoal sobre os valores e moralidade conhecidos.



“O homem é algo que deve ser vencido. O que você fez para vencê-lo?” (Nietzsche)
Contudo, isso não significa que o jogador não possa se alinhar, por sua própria vontade, a uma das razões encontradas pelo caminho, e que é encabeçada por diferentes peças do tabuleiro dessa batalha pós-apocalíptica.

As Razões (Reasons) podem ser entendidas como dogmas ou posições filosóficas internas concorrentes que, cada uma a seu modo, configura cultos específicos que desejam formar as leis naturais no novo mundo. Há muitas espalhadas pelo mundo de SMT III, mas as principais talvez sejam as de Shijima, Musubi e Yosuga.



“Tudo em sintonia com o mundo” (Razão de Hikawa)

Shijima é um final coerente com o culto da “Razão de Hikawa”, que é sustentado também pelos poderes demoníacos de Ahriman. O culto baseia-se na primazia da ideia de quietude e de unidade. Esse culto pretende formar um mundo de perfeita harmonia, sem a ideia de um “eu”, sem individualidades e, portanto, sem paixões pessoais, sem conflitos a partir dessas e, por conseguinte, sem a causa da destruição entre os povos.

Para chegar a esse final, o jogador deve concordar que a individualidade deveria, portanto, ser erradicada e, no lugar dela, existir simplesmente uma paz interior coletiva, em que todos são análogos a um Deus sereno e sensato, mas sem vontade própria. Esse coletivo funcionaria como um aglomerado de engrenagens na máquina gigante e estável que é o universo.


A posição de Hikawa em SMT III guarda semelhança com várias posições filosóficas no decorrer da história, como, por exemplo, a posição dos estoicos na Grécia Antiga ou alguns filósofos modernos, como Espinoza. Para tais pensadores, o mundo é regido por um determinismo de tal ordem que o humano, no fim das contas, não exerce real liberdade de se impor sobre os fenômenos do mundo. Em vez disso, o humano deveria buscar uma harmonia com ele, aceitando que, por natureza, cada um está destinado a passar por certos acontecimentos, mesmo que não o saiba com  antecedência e mesmo também que esse destino não tenha sido formulado por uma entidade superior.

O experimento mental do filósofo e matemático Laplace, conhecido como “Demônio de Laplace”, ilustra bem essa posição. Laplace sugere que nós imaginemos uma criatura capaz de contabilizar todas as variáveis que influem no universo a partir de todas as leis da física e suas aplicações.

Como uma das consequências, se essa criatura tivesse pleno conhecimento da natureza, em tese, seria capaz de saber o que qualquer pessoa “decidiria” fazer, pois para que ela tomasse uma decisão qualquer, como, por exemplo, de levantar a mão, isso ela faria por motivações que não são mais do que fenômenos regidos por estruturas biológicas e psicológicas em seu corpo, que poderiam ser quantificadas e calculadas pelo Demônio de Laplace.



“Eu sou o centro do mundo” (Razão de Isamu Nitta)

O final Musubi, por sua vez, é adquirido quando se adere ao culto à Razão de Isamu Nitta. Baseia-se na solidão e no isolamento. O jogador pode obter esse final caso concorde com a maior parte das afirmações de Isamu. Basicamente, o culto defende, em oposição à Razão de Hikawa, que o “eu” é absoluto, e cada ser vivo deve viver em um mundo independente, completamente separado de todos os outros seres vivos.

O indivíduo poderia usar sua mente para moldar seu mundo à sua vontade em seu próprio paraíso pessoal, sem consequências ou interferências indesejadas de outras pessoas. Trata-se de um motivo isolacionista e solitário patrocinado pelo demoníaco Noah.

Essa posição filosófica também já foi sustentada por pensadores no passado e leva a questões interessantes, também relacionadas à ficção científica. Por exemplo: será que no futuro não seria interessante que as pessoas (ou melhor, as suas mentes) vivessem em mundos isolados artificiais projetados cuidadosamente para si no lugar de viverem em um mundo complicado e caótico como o da realidade. Essa ideia foi explorada por filmes como Matrix, por sua vez, inspirado nas reflexões do livro Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard.



"O mundo pertence aos mais aptos para governá-lo" (Razão de Chiaki Hayasaka)

Ainda há Yosuga, a Razão de Chiaki Hayasaka. É uma razão baseada no elitismo e na sobrevivência do mais apto. Aqueles que são inúteis ou fracos não mereceriam viver e seriam expurgados da sociedade. E somente aqueles que são mais fortes poderiam governar, de modo que o poder seria reconhecido como a propriedade de maior valor. Os fracos serviriam aos fortes para sempre.

Convém destacar que, ao que parece, Chiaki criou essa Razão a fim de se proteger de algum momento se tornar fraca ou de classe baixa, refletindo, portanto, seu medo. O  medo no qual ela tivesse sempre que olhar por cima do ombro e temer ser derrubada. É uma razão caótica, portanto, e que, desse ponto de vista, se assemelha a parte da experiência que se tinha no mundo pré-apocalipse. Seu patrocinador demoníaco é Baal Avatar e, além disso, muitos anjos seguem essa Razão.

A ideia de que uma sociedade deveria ter por fundamento a “vitória do mais apto” é também algo encontrado desde antigamente na filosofia. E as motivações para sustentá-la são várias, por exemplo, como uma forma de maximizar aquilo que o humano consegue produzir de melhor, tornando o mundo mais rico e o humano mais bem realizado.



Outras Razões

Há várias críticas na área da Filosofia a posições como as acima expostas, mas não convém a este artigo detalhar. Cabe observar, porém, que foram apresentadas de forma bastante primária e introdutória e que dificilmente na atualidade são defendidas com seriedade, ao menos não em versões tão extremas/rígidas. Ainda assim, o jogo possibilita refletir sobre premissas filosóficas importantes e ainda influentes, mesmo que hoje em dia sejam formuladas com maior moderação.

De todo modo, cabe ainda discernir que, em SMT III, pode-se constatar que há outras pessoas que tentaram ou que efetivamente conseguiram formar cultos independentes em torno de uma Razão. Mas, por algum motivo (depende do caso) não estão ao alcance do jogador. Entre eles, podemos destacar dois casos:
  • O de Yuko Takao, que conseguiu uma aliança demoníaca para promover seu ideal, mas que fracassou, pois aparentemente carecia de convicção e fundamentação suficientes para sua tese.
  • E o de Futomimi, culto dos Manikins, que conseguiu desenvolver sua própria Razão, a qual consistia em desenvolver um mundo no qual todos deveriam ter uma felicidade em nível igual. Para tal, o mundo seria povoado por pessoas que não seriam mais que escravos de uma vontade maior que balanceasse aquilo que daria felicidade a cada uma delas. Esse culto, porém, é derrotado pelo de Chiaki, sobrando poucos remanescentes, os quais não são capazes de realizar sua Razão.


Recriação

Nietzsche escreveu que a vida pode ser entendida como um ciclo interminável sem começo e sem fim (ideia do “eterno retorno”). Entretanto, uma vez que uma pessoa entre em sintonia com o ciclo de criação-destruição, ela pode ascender a um nível mais alto de “autorrealização”.

Em SMT III, esse conceito é executado pela energia Kagutsuchi que flui através do Mundo Vortex, após o fim do mundo no início do jogo. A energia reúne-se em torno das chamadas Razões, as quais devem ser apresentadas ao deus japonês Kagutsuchi para formar um novo mundo em conformidade com alguma delas.

Após enfrentar muitos conflitos com outros cultos, Demi-fiend tem a oportunidade de criar um entre quatro mundos possíveis, relativos a anseios por mais liberdade ou força ou silêncio ou simplesmente pelo mundo tal como era. Ademais, como vimos, há encerramentos nos quais o mundo não é recriado.

Seja qual for a decisão do jogador, ele se encontrará dentro de um experimento muito interessante, não apenas teórico, mas também prático, de uma das formas possíveis de se representar o caminho de ascensão descrito por Nietzsche e a encruzilhada moral e política em que se encontram os humanos diante do processo de criação do futuro social e de compreensão dos valores morais.
 
Referências: Megatengaku, MegamiTensei Wiki, Megami Tensei Fandom, Assim Falou Zaratustra (livro, Friedrich Nietzsche), Persuasive Games (livro, Ian Bogost)
 
Revisão: Felipe Fina Franco

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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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