Demi-fiend: "Nem humano, nem demônio... tudo se curva à minha vontade"

A peça chave no tabuleiro da recriação cíclica do mundo de Shin Megami Tensei III: Nocturne.

em 21/07/2021



A clássica série Shin Megami Tensei da Atlus, como explicado na prévia de Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster, tradicionalmente possui personagens humanos e demônios que convivem, interagem e / ou lutam entre si para decidir o futuro de um mundo devastado por meio das posições éticas ou políticas do jogador no decorrer da narrativa. No terceiro título da série, porém, há uma peculiaridade da relação do protagonista (“Junya Enoki”, na versão HD Remaster) com esses demais personagens: ele é parte humano e parte demônio; um “Demi-fiend”, como é chamado.


Shin Megami Tensei III: Nocturne (PS2) — doravante apenas “SMT III” — foi um marco na série Shin Megami Tensei por sua ruptura com o alinhamento moral do tipo tripartido (caótico-pacífico-neutro) e, em seu lugar, a introdução de um sistema mais complexo de posições filosóficas que resultam em diferentes finais.

Além disso, SMT III trouxe várias inovações mecânicas que vão desde um movimento em perspectiva de terceira-pessoa até várias novas mecânicas, como a inclusão de um sistema de fraquezas e o Press Turn, ambos explicados já na análise de Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster (Switch ) e que foram aplicados, com variações, em outros títulos dentro e fora da série Shin Megami Tensei.

Nesta matéria, confira um pouco da história de Demi-fiend em SMT III, como seu conceito híbrido humano-demônio interfere em seu papel na trama não-linear e no contexto filosófico desse clássico JRPG e veja algumas de suas aparições em outros títulos da série Shin Megami Tensei.



De um estudante japonês a um meio-demônio

O pratagonista silencioso de SMT III, de apenas 16 anos, inicialmente é um estudante japonês de Ms. Takao, em Tokyo, e sobrevive a um evento apocalíptico chamado “Conception” (Concepção) ressurgindo como um meio-demônio (Demi-fiend), alguém com corpo preponderantemente humano e poderes de demônio. Em Digital Devil Saga (PS2), título derivado da série Shin Megami Tensei, uma mensagem do protagonista faz alusão à sua identidade de forma metafórica:
“A vastidão da morte não tem paz. Eu chego no final da longa estrada. Nem humano, nem demônio... tudo se curva à minha vontade.”
Na iminência da Concepção, o protagonista é transformado por Lúcifer em um Demi-fiend para possivelmente liderar um exército contra a chamada Great Will (Grande Vontade). Passada a grande catástrofe, o personagem desperta em um centro médico de Shinjuku, onde se encontra com um o clássico demônio Pixie no meio do caminho, que concorda em trabalhar com ele para encontrar o cartão-chave do anexo e escapar do hospital em troca de levá-la para o Parque Yoyogi, que agora é o território de seu clã.

Seguindo os padrões da franquia, o protagonista é uma “folha em branco” no início do jogo, inseguro quanto ao papel que desempenhará no mundo que está por vir. E isso é constatado quando a energia divina em forma de Kagutsuchi escaneia seu coração no momento da concepção, já que o ser divino não encontra nenhuma ideia ou motivo definido no âmago de sua alma, e decide que precisa encontrar sua própria ideologia e Razão no Mundo Vortex.




Durante o jogo, a personalidade do protagonista se desenvolve dependendo das escolhas do jogador, moldando-o em um seguidor de uma ou mais de três Razões cultuadas por humanos remanescentes e seus patrocinadores demônios. Tais razões, como explicado em uma matéria recente (11/07) sobre Filosofia Política em SMT III, dizem respeito a diferentes posições filosóficas para a construção de um mundo ideal para a vida humana.

No interior dessas escolhas filosóficas reside a conexão entre o jogador e o protagonista, ambos se encontram dentro de um experimento filosófico para o qual se perceberão inclinados a certas preferências morais e políticas e delinearão o seu destino final. O jogador pode optar por alguma Razão por afinidade com seus representantes, por um desejo verdadeiro de ver o mundo renascer ou ainda por um desejo sincero para terminar o ciclo eterno de morte e renascimento.

O momento definitivo da formação de personalidade de Demi-Fiend é quando Kagutsuchi, na entrada da Torre de Kagutsuchi, mais ao final do jogo, novamente escaneia o coração do protagonista e determina o que está dentro dele, o que durante o seu percurso no Mundo Vortex se formou em sua alma.



Entre humanos e demônios

Viajando por um mundo desolado e arenoso sob o qual erige-se o túmulo da humanidade, há povoados de demônios que deram forma e regra em torno do vortex central que espera pela recriação ou não do ciclo de um novo mundo.

Nesse ambiente, entre aqueles (humanos remanescentes e demônios) que ajudam a moldar a personalidade do Demi-fiend está Aradia, que o confronta abertamente sobre o quanto ele estava disposto a sacrificar tudo em busca do mundo e o forçou a enfrentar seus medos ou admiti-los.

Outros ainda são: Gozu-Tennoh, que pergunta sobre sua ânsia de poder; Lúcifer e seus Demônios, que estão prontos para criar um novo demônio do Caos; Metatron, que visa evitar o objetivo de Lúcifer; Sakahagi, que o confronta com sua natureza demoníaca; Futomimi, que encarna um lado mais racional e humano; Hikawa, que oferece a tentação de um mundo governado pela serenidade plena e sem nenhuma dor para os humanos e Yuko Takao, que representa os últimos resquícios do estudante ingênuo que o protagonista costumava ser.

Devido às diferentes escolhas no decorrer do jogo, a personalidade do Demi-fiend pode ser desenvolvida de modo a revelar as falhas e os pontos fortes do personagem, mudando o ponto de vista dos outros sobre ele e afetando o final. Porém a sua personalidade canônica, com base em sua breve aparição na DLC de Shin Megami Tensei IV: Apocalypse (3DS), é claramente de alguém impaciente e imponente, além de com um anseio por batalhas, especialmente evidente por seu desejo de uma revanche com Lúcifer.



O legado de Demi-Fiend

Além da DLC de Shin Megami Tensei IV: Apocalypse (3DS), o protagonista de SMT III faz parte do elenco do Drama CD inspirado na história do mesmo jogo, o qual foi lançado em 2003. No Drama é chamado de Naoki Kashima, aparentemente uma pessoa confiante que começava a namorar antes da ocasião da Concepção. Ainda nos eventos narrados no CD é explicado que Naoki se recusa a tolerar agressores  que não respeitam os fracos e  acredita que uma pessoa deve criar o seu próprio destino com independência.

O mesmo personagem também apareceu em um evento especial do MMORPG Shin Megami Tensei: Imagine (PC) e em Shin Megami Tensei: Digital Devil Saga (PS2). Nesse último título Demi-fiend aparece como um poderoso Chefe Final que só pode ser desafiado se o jogador iniciar o jogo em modo New Cycle+. O icônico protagonista de SMT III pode ser encontrado na masmorra subterrânea de Anahata.




Atualmente, apesar da série Shin Megami Tensei não ser muito popular no Ocidente, e particularmente o terceiro título da série não ter sido à época bem-sucedido comercialmente (vendendo menos de 300 mil unidades em seu ano de lançamento), ainda assim Demi-fiend é não apenas o protagonista mais emblemático da franquia como também um dos personagens mais famosos de JRPG no Japão.

O design desse personagem sombrio, frio e sério e com listras esverdeadas pelo corpo, tal como concebido e desenhado por Kazuma Kaneko nos anos 2000, ao lado de seu papel reflexivo, introspectivo e silencioso em SMT III, foi marcante o suficiente para que se tornasse um dos ícones da Atlus, ao lado de alguns demônios notáveis da série SMT, e para ser parodiado das mais diversas formas até hoje em muitas artes de fãs tanto orientais quanto ocidentais.

Referência: Megami Tensei Wiki
Revisão : Icaro Sousa
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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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