Desenvolvido pela Atlus e publicado pela Sega, Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster é uma remasterização em alta resolução de Shin Megami Tensei III: Nocturne (PS2), um influente RPG pós-apocalíptico de dungeon crawler em estilo japonês desta clássica franquia.
O título originalmente exclusivo do console da Sony era o único da série principal ainda não presente em um console da Nintendo e chegou em boa hora para aqueles que já estão à espera de Shin Megami Tensei V (Switch), cujo lançamento está previsto para novembro deste ano. Contudo, essa terceira entrada na série não é a mais indicada para iniciantes na franquia, e ainda menos para iniciantes em RPGs de dungeon crawler.
Apesar de originalmente lançado em 2003, Shin Megami Tensei III continua sendo sério, sombrio e desafiador como poucos jogos em geral. Por outro lado, não se pode dizer o mesmo de sua liberdade narrativa, level design e mecânicas de combate, de modo que muito do que havia de interessante nesses aspectos já foi aproveitado e desenvolvido por títulos posteriores dentro e fora da série Shin Megami Tensei. Ainda assim, como veremos, ao menos em narrativa e design em geral, existem coisas únicas para as quais ainda pode valer a pena retornar a esse clássico.
Uma mundo cujo final procura por seu começo
Já do ponto de vista narrativo, Shin Megami Tensei III está recheado de referências filosóficas, principalmente nietzschianas, que nem sempre estão explícitas. O jogador se vê diante de uma busca para se encontrar com seu mundo e consigo mesmo, uma busca sombria e aterradora que passa por difíceis combates e escolhas que o levarão a um entre seis finais alternativos.
Cada final é relativo a posições filosóficas de ordem moral, política e metafísica acerca do que a humanidade deve se tornar como um todo ou do que o jogador acha que convém ao futuro dos demônios ou do protagonista em particular, que se encontra entre eles e os humanos.
O jogo começa com o protagonista (a ser nomeado pelo jogador) indo se encontrar com seus amigos Chiaki e Isamu na ocasião de uma visita a uma amiga, Takao, que se encontra no hospital de Tokyo. Caminhando pela cidade, o jogador ficará sabendo de um confronto mortal entre dois cultos locais e, ao chegar ao hospital, encontra-o sem ninguém, exceto Chiaki e Isamu.
Ele é então abordado brevemente por Lúcifer (em forma infantil) e quase acaba morto por Hikawa, diretor-chefe de uma grande empresa de comunicações, mas é salvo por Takao, que o leva para a cobertura do estabelecimento, onde testemunham juntos um evento chamado de “Conception” (Concepção).
Conception é um evento apocalíptico que resulta em um Vortex World (Mundo Vortex) que permanece até que haja um próximo momento de “criação” de um novo mundo. Pouco antes deste evento, o protagonista é transformado em um Demi-fiend, um humano com poderes de um demônio, para possivelmente liderar um exército contra a chamada Great Will (Grande Vontade).
O jogo começa para valer após, ao escapar do hospital em que se encontrava, o jogador começar a procurar seus amigos e explorar o Mundo Vortex, aprendendo mais sobre os dois cultos conflituosos ligados à Assembleia de Nihilo, criada por Hikawa, e a uma organização em separado chamada de Mantra Army (Exército de Mantra).
À medida que o nosso Demi-fiend avança na narrativa, ele precisará escolher entre apoiar ou não determinados ideais para a criação de um novo mundo. Hikawa, por exemplo, tentará convencer-lhe da importância de se criar um mundo de quietude e em conformidade a um serviço bem-ordenado a um mundo pacífico, enquanto Chiaki busca um mundo de constante evolução onde os mais fortes governem e/ou suprimam os mais fracos. Temos ainda Isamu, que deseja um mundo onde todos os indivíduos possam simplesmente viver suas expressões pessoais sem depender dos demais. E há ainda vários outros. Diferentes finais resultarão de combinações em apoiar ou não essas e outras Reasons (Razões) para a “nova criação”.
Uma arte sombria e coerente em um remaster problemático
A trilha sonora do terceiro Shin Megami Tensei continua a série principal com um tom sombrio, inclusive com algumas músicas regravadas, como a clássica “Ginza” de Ginza Building, que remonta ao primeiro Shin Megami Tensei. De modo geral, predomina nas músicas uma influência maior de rock, ritmos de andamento moderado ou lento, notas graves, tons menores e uma mescla de timbres elétricos, acústicos e vozes graves. A qualidade dos sons na remasterização acabou, infelizmente, com quase nenhuma melhoria.
A mudança no visual da remasterização, porém, é mais notável. A nova iluminação tornou o jogo um pouco menos sombrio que o original, mas melhorou a apreciação dos elementos do cenário e também ressaltou, junto com a maior resolução, o estilo artístico único de Kazuma Kaneko, que marca os personagens pálidos, frios e estilosos da série principal. Apenas alguns raros cenários foram esquecidos durante o processo de remasterização, como na cobertura do hospital de Tokyo.
Infelizmente as melhorias gráficas, quando e onde aconteceram, também custaram caro à performance deste clássico de PlayStation 2. Há vários momentos em que é notável quedas de fps, e um dos momentos mais claros disso encontra-se justamente na batalha contra um dos chefes mais icônicos do jogo. Felizmente, como as batalhas são por turno, e quedas maiores de fps estão quase exclusivamente presentes só nessas ocasiões, acaba por não atrapalhar muito na experiência.
Um desafiador e cansativo dungeon crawler repleto de grinding, puzzles e labirintos
Como já explicado na prévia de Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster, a série Shin Megami Tensei (incluso spin-off) contém algumas características gerais, a saber:
- Enredos que tratam de temas sensíveis e controversos (seja em tom mais despojado, ou em um tom mais sombrio);
- Um estilo visual inspirado em animes e geralmente ambientados em locais reais do Japão;
- Mecânicas de RPG (geralmente de RPG tradicional de turno);
- Utilizar um panteão de criaturas mitológicas das mais diversas origens (grega, egípcia, chinesa, judaico-cristã etc.), criaturas essas que coexistem com os humanos, podendo ser aliadas ou inimigas.
Parte das escolhas de SMT III para as duas primeiras características são já visíveis pelo resumo da introdução da história do jogo, mas as duas últimas aparecem sobretudo em suas mecânicas, e é isso que será abordado neste tópico.
A começar pela dinâmica básica de gameplay. A movimentação do Demi-fiend envolve perspectiva em terceira pessoa e os passeios do personagem oscilam entre momentos no mapa-mundi, dungeons e alguns estabelecimentos. A trajetória a ser seguida nem sempre é muito clara, mas, de um ponto de vista narrativo, é bastante linear, como de costume na série e em JRPGs em geral, e em contraste com RPGs ocidentais, como os das franquias Ultima, Fallout e The Elder Scrolls.
As dungeons, palco principal para o gameplay do jogo, tendem a deixar o jogador em um misto entre aflição e tédio, pois podem desafiá-lo com inimigos surpreendentes ou entediá-lo com batalhas após batalhas que interrompem abruptamente sua exploração sem muitas vezes dar-lhe a devida recompensa. Vale observar que vários inimigos são bem-desenhados e bem-inspirados nas mais diversas mitologias orientais e ocidentais, mas as batalhas em si não são tão criativas, inclusive contra os chefes.
Os principais “chefes” podem ser mais sutis: os puzzles e os labirintos. As dungeons não são tão longas e densas como dos dois primeiros títulos de Shin Megami Tensei, mas estão cheias de desafios que fazem o jogador ir e voltar em locais com muito grinding para falar com NPCs, obter itens, abrir portas, destravar armadilhas, acionar mecanismos, etc. Às vezes pode soar uma experiência interessante, e é, mas muitas vezes ela acaba sendo frustrante e cansativa.
Praticamente em qualquer lugar e com frequência, até mesmo em estabelecimentos onde se pode comprar itens, o jogador pode ter encontros randômicos com demônios, iniciando um combate por turnos. Na ocasião, pouco antes ou pouco depois, ele pode, por vezes, interagir/negociar com esses demônios, entregando-lhes itens ou conversando com eles a fim de convencê-los a entrar para o seu time (party).
Esse tipo de negociação é algo comum na série Shin Megami Tensei, mas aqui ela não está associada a uma mecânica independente de diálogo, o que tornaria a negociação mais prática e poderia ser desenvolvida de modo mais interessante. O diálogo não ocorre tal qual no primeiro SMT, que inclusive influenciou, mais tarde, Undertale (Multi). Em outras palavras, não há uma opção específica para estabelecer diálogos, e a negociação dependerá das circunstâncias e das criaturas encontradas.
Ao adquirir demônios, o jogador poderá também, como de costume na série, fundi-los para obter criaturas ainda mais poderosas, as quais podem herdar parcialmente as habilidades das criaturas que lhe serviram de substrato para o ritual de fusão. Esses demônios dividirão a party junto com o Demi-fiend e podem, assim como ele, subir de nível, tornando-se mais poderosos (conforme suas proporções de atributos) e recebendo novas habilidades.
No mais, Shin Megami Tensei III segue muitas convenções de um RPG tradicional de batalhas por turnos, como o emprego de ataque físico e um número limitado de habilidades especiais que podem causar dano de diferentes elementos e status positivos (como aumento de defesa física) ou negativos (confusão, envenenamento, etc.). No caso de efeitos negativos, também como de hábito, eles podem ser curados por determinados consumíveis.
Contudo, SMT III trouxe novidades significativas nas batalhas de turnos da franquia. De modo geral, tratou de torná-las mais dinâmicas com o sistema de batalha Turn Press, que faz com que cada personagem que participa do combate, aliado ou inimigo, forneça um ou mais Press Turns, representados por ícones no canto superior direito da tela.
De modo um pouco mais detalhado, o sistema Turn Press faz com que qualquer ação (atacar, usar habilidades, itens...) custe um turno completo, mas prevê muitas regras específicas — e não muito claras — para se habituar rapidamente. Por exemplo: se um ataque cura um inimigo, todos os turnos restantes são perdidos; se alguém acertar um golpe crítico, em circunstâncias que podem ser previstas pela habilidade Analyse, explorará a fraqueza de seu oponente, de tal modo que o jogador ganhe um turno adicional. Os turnos adicionais permitem, entre outras implicações, que os personagens executem todas as suas ações disponíveis dentro dos turnos normais.
Ainda que tenha variações, esse sistema é profundamente influente na série desde então, incluso na popular subsérie Persona. Todavia, ainda que não mais com ar de novidade, ele continua bem funcional em Shin Megami Tensei III, apesar de poder ser cansativo utilizá-lo tantas e tantas vezes no constante e estressante grinding que perpassa praticamente toda a experiência do jogo.
Um difícil segundo round para os antigos fãs da série e uma continuação desafiadora para os novos
Há a todo momento em Shin Megami Tensei III uma constante sensação de opressão. O jogador está constantemente em um ambiente inóspito onde não só ele não é bem-vindo como também vulnerável e frequentemente desafiado por todos, além de se encontrar em uma encruzilhada de questões morais e políticas para as quais não há resposta simples.
Contudo, ao lado de alguns problemas da remasterização, a execução dos conceitos de SMT III, por mais promissores e interessantes que sejam, não está isenta de problemas. A narrativa deste título poderia ser mais elaborada e rica, especialmente por volta do meio da campanha, motivando melhor o porquê das posições éticas e políticas tomadas por alguns personagens no tabuleiro da trama, e de modo ainda a aumentar o poder persuasivo de cada posição.
O jogo poderia ter um grinding menos denso e mais inteligente para locais específicos e onde há ameaça real para o nível do personagem, e ainda manter sua atmosfera opressora. O level design de algumas dungeons é pouco interessante, e muitas vezes com puzzles pouco inteligentes, quando não simplesmente cansativos, tendo às vezes que ser resolvidos por pura tentativa e erro.
Por outro lado, o sistema de batalha não só se mostrou um legado duradouro como envelheceu bem neste clássico e, do ponto de vista artístico, trata-se de um título sério e sombrio como poucos, acompanhado de boa trilha sonora e uma narrativa diferenciada e eticamente instigante. Ele possui ambientação e arte cheias de personalidade (entre as melhores da série) frente à maioria dos JRPGs, com temáticas mais típicas de fantasia e/ou de ficção científica e com personagens bem-humorados e traços emotivos e coloridos.
Em suma, por sua coerência de design, importância em mecânicas, alta personalidade artística e profundidade conceitual, Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster é, com certeza, um jogo obrigatório a jogadores mais experientes em dungeon crawlers ou fãs da série Shin Megami Tensei que ainda não o tenham jogado.
Devido à sua alta dificuldade e ritmo extenuante, tanto pelos combates quanto pela exploração, o título não é recomendado a marinheiros de primeira viagem na série, e muito menos a quem ainda não tenha jogado algum RPG do tipo. Para quem quer uma experiência análoga, mas de forma mais acessível, é mais recomendado Shin Megami Tensei IV (3DS).
Prós
- Boa trilha sonora adequada à atmosfera sombria e instável;
- Estética na ambientação e no design de personagens com bastante personalidade;
- Tom narrativo sério como poucos e conceitualmente interessante e único;
- Algumas propostas criativas de dungeon e que se articulam bem com o conceito do jogo;
- Sistema central de batalha bem funcional.
Contras
- Enredo pouco aprofundado em alguns pontos da trama;
- Level design extenuante em puzzles pouco criativos e explorações pouco recompensadoras;
- Excesso de grinding randômico;
- Qualidade de som baixa para uma versão remasterizada;
- Problemas relativamente frequentes de queda de fps;
- Falta de polimento na remasterização de alguns cenários.
Shin Megami Tensei III: Nocturne HD Remaster – PC/PS4/Switch – Nota: 8.5Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Nintendo