Hyrule Field Theme: conheça a música ambiente e minimal de The Legend of Zelda: Breath of the Wild

Entenda como o silêncio, os sons atmosféricos e uma harmonia minimalista fazem parte da região mais memorável de Breath of the Wild.

em 16/04/2021



Talvez você já tenha experimentado cenas de jogos ou de filmes com pouca ou nenhuma música, mas com marcantes efeitos sonoros. Essa é uma característica notável dos jogos do Team Ico, e foi empregada em The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Wii U/Switch), com clara influência de Shadow of the Colossus (Multi), assim como muitas outras características, como comentou Eiji Aonuma em entrevista ao Gamekult (2017).

Desse modo, parte substancial das músicas de Breath of the Wild, em vez de se sobreporem aos sons dos efeitos sonoros, foram feitas de tal forma a complementarem os sons e ruídos do vento, dos insetos etc. Para tal, várias composições de Koji Kondo foram arranjadas por Manaka Kataoka em função de cumprir esse propósito de forma integrada aos efeitos do ambiente, inclusive levando em conta as variações das ações do jogador e de efeitos do dia e da noite. Um exemplo notável é justamente o tema de Hyrule Field, confira:


A música acima será o objeto de nossa atenção neste texto, e como se trata de algo empírico, e não um conceito abstrato, é bem importante que você tenha uma experiência prévia dela. Caso não conheça a música, sugiro que a ouça ao menos por 1 minuto com atenção antes de prosseguir com a leitura. Feito isso, ou no caso de já tê-la ouvido antes, também pode-lhe cair bem deixá-la para lhe acompanhar no resto da leitura.

Se não estiver acostumado com esse estilo musical (especialmente em jogos), pode tê-la achado leve demais, ritmicamente pobre e, em termos de melodia, um amontoado de notas aleatórias e esparsas. Se teve essa impressão, não se preocupe, você não foi o único.

Por razões como essas que muitos que ouviram essa e outras músicas de Breath of the Wild no decorrer de sua jornada sentiram falta do clássico estilo musical da série The Legend of Zelda, de músicas que acobertam os efeitos sonoros em vez de se misturar com eles. A título de exemplo, compare sua experiência da música anterior com a de Hyrule Field Theme de Ocarina of Time (N64):


Os estilos das duas músicas acima não apenas são completamente distintos entre si, em termos de técnica de composição, mas também proporcionam experiências diferentes. No primeiro caso, por exemplo, a música convida o jogador a explorar Hyrule Field de maneira mais livre, relaxada e pacífica, tornando-o mais paciente, curioso e contemplativo em sua aventura.

Já no segundo caso, o jogador tenderá a se sentir mais engajado no curso pré-determinado da história épica em que se encontra, em Ocarina of Time, e poderá ficar impaciente mais facilmente no caso de permanecer por muito tempo no mapa. Isso ocorre tanto pela repetitividade das linhas melódicas fortes e marcantes quanto pelo volume da música como um todo.

Depois de se perceber o poder da musicalidade de Breath of the Wild, você provavelmente já começará a suspeitar que, na verdade, o engenho de sua composição vai muito além de uma sequência esparsa de notas aleatórias. Mas, para compreendermos como a música de Breath of the Wild propicia tal experiência e conecta-se à proposta geral do jogo, precisamos falar um pouco sobre o que é uma “música ambiente”.

E, aliás, você sabia que, em Breath of the Wild, a música ambiente pode tocar ao mesmo tempo que uma música de fundo? Então... puxe na memória as ocasiões em que aparecem o amável Kass:




Música ambiente e música de fundo

Por incrível que pareça, o conceito de “música ambiente”, tal como conhecemos hoje, é muito recente na história da música e não deve ser confundida com “música de fundo”. Outro tipo de música, aliás, que também é relativamente recente.

É claro que a prática de ouvir música durante uma atividade é algo muito antigo, mas a ideia de uma técnica de composição voltada especificamente para ser “música de fundo” remonta ao que Erik Satie chamou, em 1917, de “música de decoração” ou “música de móveis” (musique d’ameublement). E só por volta de 1960/1970 que a música ambiente, enquanto um desdobramento da música de fundo, passou a ser um gênero musical independente.

A ideia de Satie era que sua música ocupasse parte de um local como um móvel (cômoda, estante, penteadeira etc.) que embeleza o lugar sem deslocar a atenção das pessoas ali envolvidas. Ou seja, as pessoas apreciam os móveis, mas estão naquele local não especificamente para vê-los, e sim para conversar, beber, dançar etc. (a depender da ocasião). A título de exemplo, confira a Tapisserie en fer forgé (1917) de Erik Satie:


A proposta de Satie foi muito influente nos anos que se seguiram, e passamos a usar música de fundo em elevadores, programas de rádio e TV, em blogs e, claro, em muitos gêneros de jogos, sobretudo MMORPGs. Décadas depois, entre 1960 e 1970, nasceu um gênero de música inspirado nessa proposta, a “música ambiente”, com características muito próprias. Por exemplo, o fato de enfatizar o tom e a atmosfera sobre a estrutura ou ritmo musical tradicional. Assim, uma música ambiente instrumental poderia carecer de batida ou mesmo de uma melodia mais estruturada.

A música ambiente usa camadas texturais de sons gravados e editados que podem recompensar a escuta passiva e ativa e encorajar uma sensação de calma ou contemplação. É nesse sentido que se diz que o gênero evoca metaforicamente uma qualidade "atmosférica”. E, por essa razão, pode sintonizar muito bem com diversas paisagens, tais como as dos campos abertos e verdejantes de Breath of the Wild.




Mas, além de sons concretos, a música ambiente também costuma usar sons de instrumentos acústicos, como piano, cordas e flauta; os quais também podem ser emulados por meio de um sintetizador. E, por fim, tendem a utilizar técnicas minimalistas para a melodia e harmonia nesses instrumentos.

Esses dois aspectos da música ambiente (dos sons pré-gravados e da composição minimalista), os quais podemos chamar, respectivamente, de “atmosférico” e de “minimal”, decorrem de aplicações do que se chama de “música concreta” (concretismo) e de “música minimalista” (minimalismo). Veremos a seguir do que se tratam o concretismo e o minimalismo e como eles aparecem em Hyrule Field Theme.

O minimalismo musical no arranjo de Manaka Kataoka

Comecemos com o básico: não, o componente de piano nas músicas ambiente de Breath of the Wild não consiste apenas de teclas pressionadas ao acaso. A explicação para algumas pessoas ficarem com essa impressão é que a melodia do piano é fragmentada por longos espaços de silêncio que são preenchidos por sons do cenário, como da brisa do mar e do canto das cigarras.

Contudo, os sons em si do piano são muito bem pensados para esse propósito, o que podemos ver mais claramente ao analisar a forma como se valem da harmonia funcional.

As notas musicais, consideradas dentro de um campo harmônico, variam conforme um “nível de tensão”. No campo de Dó Maior, por exemplo, as notas de Dó e Mi sugerem estabilidade (em níveis diferentes), enquanto que as notas de Ré e Fá sugerem maior instabilidade. Para quem conhece um pouquinho de partitura, fiz abaixo um pequeno esquema para mostrar essas relações em uma escala de Dó.




Esses “níveis de tensão” valem também para acordes; aliás, geralmente são estudados com eles. Entretanto, não há tantos acordes em Hyrule Field Theme, mas, mesmo assim, a sequência de notas é pensada em função de suas respectivas tensões no campo harmônico.

Em uma música, a ideia é que essas diferentes tensões propiciem algo como uma “narrativa musical”, oscilando momentos de tensão e de distensão que, no caso de serem trilha sonora de filme ou jogo, tendem a sugerir no cenário uma variação entre controle da situação e suspeita/incerteza, ou mesmo convergir com os momentos de relaxamento ou de conflito dos personagens na trama.

Convém observar que isso ocorre em Breath of the Wild não só quando Link começa uma luta, e a dinâmica da música muda completamente. Variações menores e bem pensadas ocorrem mesmo quando Link está simplesmente sentado olhando para o horizonte. Vou exemplificar apenas com o começo da música.

Abaixo, marco um sinal de ‘soma’ (+) para quando aumenta a tensão e um sinal de ‘menos’ (-) para quando ela diminui, dando uma sensação de relaxamento ou de resolução de um problema.




Se quiser, volte no áudio e ouça essa primeira sequência de notas. Você vai perceber que a sequência foi muito bem pensada; ela vai da estabilidade para a instabilidade. Os momentos de tensão são prolongados durante essa frase musical, enquanto as notas que puxam para a estabilidade surgem e se desfazem rapidamente. No final chega-se ao ápice da tensão, com a nota Ré, e então ela sobe de repente (apontei com uma seta na imagem) para uma nota extremamente estável de seu campo harmônico, a nota Si bemol.

Lembro que essa frase musical é apenas um exemplo, mas semelhantes “narrativas musicais” como essa ocorrem o tempo todo durante Hyrule Field Theme, e o interessante em sua construção é que ela é sempre extremamente minimalista.

Diferente da maioria das músicas (populares ou eruditas), uma música minimalista evita utilizar aquilo que não é necessário para o cerne do objetivo da composição. E, nesse caso, Hyrule Field Theme é um excelente exemplar de minimalismo musical. Para uma comparação de composição minimal só em piano, confira abaixo a peça minimalista Escape!, de Philip Glass.


No caso da composição de Hyrule Field Theme, note que se trata de um minimalismo ainda maior, sem haver sequer um som de base, como aquele executado pela mão esquerda do pianista que executa Escape!

Contudo, essa característica do arranjo de Manaka Kataoka pode trazer um problema: ao reduzir uma música à sua essência funcional, sobra muito espaço entre essas sensações aqui-e-acolá que a melodia provoca; algo precisa preenchê-lo.

Mas é aí que entra o que acho mais brilhante na composição de Hyrule Field Theme: utilizar os próprios sons do ambiente (levando em conta o tom e o ritmo em que estão) para preencher essas lacunas. Esse tipo de uso de sons pré-gravados em uma música é bastante comum em música ambiente, e ela vem de seu segundo aspecto: o concretismo musical.



Os sons do ambiente dos campos de Hyrule

‘Música concreta’ é o termo usado para descrever uma música que usa sons gravados como sua matéria-prima, podendo ser sons do motor de um carro, de um relógio de corda ou mesmo de máquinas eletrônicas. Assim, em um segundo momento, esses sons também podem ser tratados e editados em uma espécie de montagem.

Apesar de se tratar, originalmente, de um estilo de música erudita, o qual tomou forma por volta da década de 1940, com Pierre Schaeffer, o concretismo também foi utilizado parcialmente em algumas músicas populares bastante notáveis de Pink Floyd e Frank Zappa, entre outros. Ouça, como exemplo, a música Time, da banda britânica, que utiliza sons de relógio na composição:


De forma semelhante, o arranjo feito por Manaka Kataoka em Hyrule Field Theme utiliza os efeitos sonoros criados para o cenário de Breath of the Wild como parte da música. Dessa forma, a música não está mais “no fundo” do que acontece no cenário, mas sim integrada a ele, de modo que esses sons são importantes para a apreciação da obra.

Se você quiser testar, experimente ouvir Hyrule Field Theme apenas com os sons de piano, sem nenhum som do ambiente, e você sentirá que há alguma coisa faltando; essa falta é um espaço que precisa ser preenchido pelos sons do cenário e das ações do jogador.



O dinamismo da ambientação musical de Hyrule Field

É claro que composições de música ambiente não são apenas feitas para jogos, mas também para filmes, peças cênicas, ou mesmo só para serem ouvidas, sem uma contraparte visual; um exemplo é a bela composição Solari, do álbum async, de Ryuichi Sakamoto (confira no final da matéria).

Ocorre que nos videogames, além do cenário e das ações dos personagens, há também a interação com o jogador, e isso pode elevar a música ambiente a outro patamar.
Enquanto em uma cena de filme a música ambiente é pensada de forma estática para um local específico, ou mesmo um ângulo específico desse local, a música ambiente em jogos frequentemente precisa levar em conta o que o jogador irá fazer. Para onde ele vai? Que criaturas, objetos ou personagens irá encontrar? Como irá interagir com eles? Tudo isso precisa ser pensado em videogames para que os efeitos sonoros conectem-se com os sons instrumentais.




A música ambiente de Breath of the Wild foi muito bem pensada dessa maneira. Ela é flexível, plástica e alterna momentos de música de fundo, em combate ou no Hyrule Castle, por exemplo, com distintas músicas ambientes para o dia, para a noite, e que variam conforme certas interações do personagem, como quando está andando a pé ou galopando velozmente.

Por tudo isso, a composição de Hyrule Field Theme não é apenas uma aplicação de música ambiente, mas uma elevação desse gênero. Ou melhor, ela é apenas uma modesta amostra de como os videogames, enquanto plataformas que pedem por interação e dinamismo, são capazes de redefinir os limites do que é possível se fazer em termos de música ambiente.


Revisão: José Carlos Alves


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Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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