Análise: Smelter (Switch) é um desafiante Frankenstein de distintos gêneros de jogos

Apesar de uma fusão malsucedida, trata-se de um dos melhores jogos de ação em plataforma para Switch.

em 22/04/2021



Desenvolvido pela X PLUS e publicado pela DANGEN Entertainment, Smelter traz ao Nintendo Switch um carismático e nostálgico design com claras inspirações na amada era 16-bits do Super Nintendo, incluso uma boa trilha sonora, com uma harmonia simples, ritmo rápido ou de marcha, sempre bem marcado, e timbres sintéticos e elétricos. Em tudo ecoando, acima de tudo, a influência da popular subsérie Mega Man X, da Capcom.


O jogo ainda propõe um interessante experimento: uma conversa entre duas diferentes rotinas de gameplay. Por um lado, de estratégia em tempo real (RTS); por outro, de ação em plataforma. Aquela experiência estética e essas diferentes jogabilidades encontram-se em uma mesma narrativa que volta para os tempos imemoriais da mitologia judaico-cristã para conciliar dois distintos objetivos (para RTS e para ação em plataforma) de dois protagonistas, Smelter e Eva, que estão tanto buscando expandir um império quanto tentando resgatar Adam.

Como se não fosse o bastante unir dois subgêneros (ação em plataforma e RTS) que são extremamente distintos, posto que advindos de gêneros diferentes (ação e estratégia, respectivamente), os desenvolvedores de Smelter ainda elaboraram momentos de gameplay com mecânicas de shoot’em up, mais especificamente de top-down shooter; tiro com visão aérea do cenário, ainda que seja uma forma de gameplay bem pouco explorada. Valendo observar que utilizamos aqui "top-down" em um sentido lato, e não no sentido estrito, em que o personagem encontra-se perfeitamente alinhado à câmera na vertical, como em Hotline Miami.

Todavia, apesar da mescla dessas mecânicas parecerem de difícil harmonização, a ousadia e as premissas para tal não são ruins; a execução, no entanto, falha em muitos aspectos. Desse modo, após uma análise detida dos pontos a que o jogo se propõe, o saldo final não é muito positivo.

Contudo, redime-o em parte o gameplay divertido, preciso e desafiador de ação em plataforma que, apesar de alguns poucos defeitos nesse âmbito, torna-o uma indicação fácil a todo aquele que deseja algo como um “sucessor espiritual” da jogabilidade de Mega Man X (SNES) e seus sucessores; inclusive em seus defeitos, como na dificuldade para mirar na diagonal (segundo vídeo abaixo).

Uma reimaginação do paraíso?

Apesar de Adam (Adão) e Eve (Eva), personagens centrais na trama, sugerirem que o jogo dialoga, de alguma forma, com o momento da criação bíblica, essa conversa, se existe para além dos rótulos dos personagens, é superficial e muito pouco explorada.

Infelizmente, salvo umas raras cenas, como a do início do jogo, durante a jogatina não se estranharia sequer se o nome da protagonista, Eve, fosse qualquer outro. Isso por si só mostra uma fraqueza criativa dos desenvolvedores para se apropriarem de um tema tão caro ao Ocidente, à medida que parecem utilizá-lo mais como vitrine do que como motivação artística.

Confira abaixo alguns momentos do início do jogo:




Com o passar do tempo, nota-se que a narrativa como um todo não é o forte do título, e nem o que compelirá o jogador a prosseguir e enfrentar as fases que se tornam cada vez mais difíceis. Ao mesmo tempo, os personagens são poucos e nenhum deles possui um encanto em particular.

Quanto ao conteúdo em si da história, o enredo, é simples, facilmente esquecível, mas que guarda alguma surpresa mais para o final. E a trama, apesar de não totalmente linear, é inexpressiva e previsível, só que com um tempero de bom humor de vez em quando; por exemplo, em falas e reações de seu aliado felino Takten.











Ótimas mecânicas e level design de ação em plataforma

Como dito, Smelter é um jogo que possui três principais camadas de gameplay. A principal delas consiste nos momentos de ação em plataforma protagonizados por Eve, cujas armaduras, habilidades e move set não escondem sua inspiração na série Mega Man (especialmente a subsérie Mega Man X). Também é durante os momentos de ação em plataforma que o jogador enfrentará os chefes do jogo.

Nesse âmbito de gameplay, Eve pode alternar a qualquer momento entre três armaduras, de elementos diferentes, cada qual com suas vantagens e desvantagens. A armadura inicial, por exemplo, confere-lhe muita força física, além de pulo duplo ou impulsionado etc., enquanto que a armadura do elemento raio dá-lhe maior agilidade de movimento e alcance para seus ataques, e a armadura de água permite-lhe, entre outras coisas, planar e atirar à longa distância.


De modo geral, a ação em plataforma de Smelter possui um excelente level design. Há várias fases que são propositalmente muito bem planejadas para dar vantagem a uma armadura específica. Em outros casos, são pensadas para se utilizar duas ou as três. Entretanto, muitas vezes o jogo pode se perder um pouco a mão na dificuldade, às vezes por haver poucos meios de recuperar vida, mas principalmente por alguns action-puzzles que requerem extrema habilidade em tempo de reação.

Tais dificuldades não são problemas por si só, mas o design do jogo não parece justificar e/ou recompensar esses momentos, tais como outros títulos de plataforma, como Super Meat Boy. Ademais, há algo que agrava essa opção por maior dificuldade: é impossível salvar o jogo no meio de uma fase de plataforma; há apenas checkpoints para caso morra.

Tratando-se muitas vezes de fases não só difíceis, mas longas, e até com chefes no final, é extremamente frustrante ter de começá-las desde o início por ter de parar a jogatina por algum motivo de força maior.

Vale observar ainda que esse problema de não poder salvar é especialmente grave no caso do Switch, que é um console facilmente transportável e que deveria ser prático para parar, desligar o console e retornar o gameplay.

Para além desses problemas de design para lidar com a dificuldade do jogo, ainda há alguns poucos bugs que, caso o jogador tenha a desventura de encontrá-los, poderá dificultar ainda mais suas chances de prosseguir, senão até impossibilitar. A títulos de exemplo, veja abaixo um momento em que Eve perde vida várias vezes em um determinado momento de combate sem, no entanto, estar sendo atingida por nenhum projétil ou inimigo.


Por fim, algumas das fases são ainda razoavelmente complexas em level design, podendo deixar o jogador inicialmente um pouco perdido, lembrando um pouco (mas só um pouco) o estilo dos metroidvanias. Essas configurações de cenário costumam ser bem-feitas, mas podem agravar o fato de que não se pode salvar, sair e continuar mais tarde de onde Eve parou.

De todo modo, no decorrer de todas essas fases, sejam elas complexas ou não, haverá ainda itens secretos que servem como recompensas por sua exploração ou por enfrentar desafios à parte (trials). Essas adições são bem-vindas e tais itens podem ser úteis ocasionalmente durante os momentos de gameplay de estratégia com Smelter.

Mecânicas de estratégia bastante limitadas e defeituosas

Umas boas horas de jogatina serão consumidas por outra camada de gameplay, a do gameplay de RTS. Nesses momentos, o protagonista passa a ser Smelter, que procura expandir seu exército por três diferentes caminhos do continente.

Quanto às mecânicas, o jogador pode construir e atualizar casas para aumentar a população do império, também edifícios especializados para prover sua população a fim de que não definhe de fome, e, claro, construções militares.

Basicamente há dois tipos de construções para fins militares defensivos: um para unidades a curta distância e outro para unidades que atacam à longa distância. E pode-se dizer “defensivos” porque suas unidades apenas enfrentam inimigos que se aproximam da base militar em que estão. Há três subtipos de unidades de curto e longo alcance, personalizáveis de forma similar ao que acontece com a alternância de armaduras de Eve.

Fora os combates e a expansão de seu império, por vezes serão requisitadas tarefas especiais, como de colocar várias de suas unidades em uma determinada estrutura no cenário e/ou protege-la por um período de tempo. Nenhuma dessas tarefas é muito criativa, interessante ou cativante, e não raras vezes tornam-se difíceis unicamente pelas limitações das mecânicas de RTS.

Seja nas missões principais, seja na expansão do império, e mesmo nos combates, Smelter oferece uma experiência pobre, monótona e inexpressiva em seus momentos de estratégia. O que é uma pena, pois ocupa uma boa parte do jogo e, dado que é um dos diferenciais do título frente a jogos de pura ação em plataforma, poderia ter sido muito melhor aproveitada e conectada aos momentos de gameplay com Eve.



Durante os momentos de RTS, além de gerenciar as construções e a manutenção delas durante momentos de combate ou de expansão, o protagonista na ocasião, Smelter, também pode atirar projéteis de algum dos três diferentes elementos da armadura; cada qual será útil para diferentes inimigos e podem-lhe servir também para desobstruir passagens para a expansão de seu império, para encontrar ruínas que guardam upgrades para suas habilidades e para chegar às próximas fases de ação em plataforma.

Em alguns momentos, ao entrar em alguma estrutura, há também fases em que você pode jogar exclusivamente com Smelter em perspectiva aérea, tornando-se, nesses casos, um shooter. Infelizmente há pouca novidade no gameplay dessas passagens, se comparado ao de outros shooters no estilo, além de que a trajetória das fases é bastante simples e o jogador não possui praticamente nenhuma variação de ataque.

Uma problemática dissonância entre diferentes rotinas de gameplay

Talvez a questão mais importante a se colocar neste experimento de “shooter-strategy-action-platformer” seja sobre a coerência dos elementos do projeto. Em outras palavras, em que medida Smelter é feliz em suas escolhas de camadas de gameplay e efetivamente consegue criar ou uma unidade ou uma alternância orgânica entre elas?

Uma coisa é certa: os desenvolvedores esforçaram-se para criar relações entre essas camadas. Algumas dessas principais relações são as seguintes:
  • os fragmentos de runas obtidos nas fases por Eve são úteis para Smelter desbloquear caminhos pelo continente;
  • as estruturas em ruínas que são encontradas por Smelter no continente aprimoram as habilidades de Eve;
  • outros itens obtidos nas fases por Eve podem ser usados no império de Smelter;
  • e a jogabilidade de top-down shooter preserva a câmera e os mesmos controles de Smelter usados nos momentos de RTS.
Todos esses itens, no entanto, acabam por não serem suficientes para criar uma relação de dependência entre os três níveis, e muito menos de unidade entre elas.





Podemos dizer que há uma unidade entre dois estilos de gameplay quando resultam em uma única experiência nova; por exemplo, a forma como vários jogos de metroidvania conseguem unir ao mesmo tempo mecânicas de ação em plataforma, action-adventure e RPG. Do contrário, trata-se de um jogo com experiências alternadas de gameplay, como é o caso de Smelter: ora RTS, ora top-down shooter, ora ação em plataforma.

Executar experiências alternadas de gameplay não é um problema por si só, mas convém que haja alguma justificativa narrativa para isso ou ao menos uma dependência entre essas experiências.

A justificativa da história para tal está nos objetivos distintos dos protagonistas, mas o roteiro não parece muito preocupado em aperfeiçoar esse argumento no decorrer da trama. E a dependência, por outro lado, claramente não ocorre.




A razão disso é que é perfeitamente concebível que o jogo Smelter fosse apenas de ação em plataforma sem mexer em nada nesse âmbito de gameplay. Isso porque pouco do que se faz nos momentos de RTS e nada do que se faz como shooter auxiliam no gameplay com Eve.

Inversamente, os momentos de RTS e de top-down shooter também são praticamente independentes. Apesar das relações elencadas acima, a rotina de gameplay com Eve influencia muito pouco nas rotinas de gameplay com Smelter.

Por essa razão, Smelter falha em seu objetivo de integração entre diferentes formas de gameplay, mas nem por isso deve-se concluir que seja um jogo ruim. O título possui uma boa estética visual e sonora e um ótimo gameplay de ação em plataforma, tratando-se ainda de um jogo com controles muito precisos e ótimo level design.

Desse modo, Smelter é facilmente recomendável para quem goste de jogos nesse estilo, mas com a ciência de que terá de conviver com momentos independentes de RTS e top-down shooter; os quais, além de limitados e pouco interessantes, podem-lhe não agradar e serem empecilhos desgastantes meio à sua jornada com Eve para resgatar Adam.

Smelter está disponível para Nintendo Switch a partir de hoje (22/04) no site oficial da Nintendo.

Prós

  • Boa trilha sonora;
  • Ótimo level design de ação em plataforma;
  • Controles precisos;
  • Desafios secundários bem feitos e difíceis;
  • Boas e desafiadoras lutas contra chefes.

Contras

  • Bugs ocasionais que podem dificultar o gameplay;
  • Impossibilidade de salvar o jogo durante rotinas de ação em plataforma;
  • Muita dificuldade e extensão para fases em que é impossível salvar no meio delas;
  • Trama e personagens com pouca expressividade e carisma;
  • Gameplay de RTS bastante limitado, repetitivo e mal-explorado;
  • Gameplay de top-down shooter pouco criativo e bastante limitado;
  • Falta de sintonia entre as três formas de gameplay.
Smelter — Switch/PC/PS4/XBO — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: Switch
Revisão: Diogo Mendes
Análise produzida com cópia digital cedida pela DANGEN Entertainment

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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